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Vislumbres epifânicos
JOSÉ PAULO PAES
Ao transpor do domínio
da religião para o da literatura o conceito de
epifania, James Joyce
enriqueceu com ele o vocabulário
da crítica. "Epiphania" significa
em grego "aparição, manifestação", mas Joyce o definiu, mais
estritamente, como "uma súbita
manifestação espiritual" que em
momentos "delicados e evanescentes" faz aflorar, "na vulgaridade da fala ou do gesto", a essência de um ser ou situação humana, donde tais momentos deverem ser registrados com "extremo cuidado" pelo ficcionista.
Esse cuidado não faltou ao ficcionista João A. Carrascoza nos
melhores contos de "O Vaso
Azul". Pela finura com que fixam
vislumbres da condição humana,
merecem eles ser chamados epifânicos, quando mais não fosse por
a "súbita manifestação espiritual" a que dão voz tácita ocorrer
sempre na "vulgaridade" da vida
cotidiana. Voz tácita porque, em
vez de sair da boca do narrador ou
dos personagens, sai mais comumente dos próprios fatos, como é
de esperar na boa ficção, seja ela
ou não de índole realista.
A de Carrascoza o é, e privilegia
amiúde, em seu enfoque, o
dia-a-dia da pequena classe média, na tradição do Marques Rebelo de "Cenas da Vida Brasileira",
ou do Dionélio Machado de "Os
Ratos". Mas isso com uma originalidade cujo vigor exclui "in limine" qualquer idéia de epigonismo. A originalidade se ostenta
sobretudo no tratamento intensivo de situações do cotidiano. Embora as situações nada tenham de
insólitas, mas sejam, ao contrário,
típicas da vulgaridade desse cotidiano, a intensidade do enfoque
acaba por trazer à luz suas virtualidades epifânicas.
Tome-se, por exemplo, o conto
que dá título ao volume. Seu tema
é o mesmo de "Coração Materno", ou seja, o contraste moral
entre o desvelo da mãe pelo filho e
o descaso deste por ela. Mas aquilo mesmo que, na canção melodramática de Vicente Celestino
sobre esquecidos versos de Henri
Murger, só alcança provocar no
ouvinte menos ingênuo o riso de
superioridade habitualmente associado ao "kitsch", provoca no
leitor de "O Vaso Azul" um obscuro sentimento de remorso, como se ele também, em algum momento de sua vida, tivesse sido réu
do crime de ingratidão filial cometido pelo protagonista do conto.
A substituição do riso superior
pelo remorso empático se deve,
no caso, à simétrica substituição
do melodramático, cujo clangor
só serve para reforçar a obviedade
do lugar-comum, pelo sugestivo,
cuja surdina faz aflorar o epifânico. Este é que atualiza, dando-lhes
novas figurações, as pulsões arquetípicas latentes no óbvio. "O
Vaso Azul" realiza tal proeza pelo
hábil recurso ao pormenor signicativo: os óculos da mãe remendados com durex, a televisão quebrada há muito tempo, a lâmpada
que ela não alcança trocar etc. A
seriação de pormenores culmina
na metáfora opositiva asas/cruz,
em que se condensa emblematicamente a semântica da fábula.
Epifanias não menos reveladoras ocorrem em alguns outros
contos de "O Vaso Azul". Em
"Iluminados", se a falta de luz
elétrica transtorna a rotina de vida
de um casal, a luz das velas que
precariamente a substitui estabelece entre os cônjuges um clima de
intimidade de cujo sabor estavam
quase esquecidos. Já os protagonistas plurais de "Casais", com
simplesmente arrolarem sob a
égide do "nós" os pormenores de
suas vidas rotineiras, transformam-se em parcelas de uma soma
de resultado zero. A primeira
menstruação de Ana, no conto
homônimo, faz da sua viagem de
trem para ir visitar a avó agonizante um rito de passagem entre o
aconchego da infância e os temores da puberdade. Há também algo de rito de passagem no momento em que o menino de "Antes do Almoço" vê, com surpresa,
as lágrimas furtivas do pai e percebe o sentido do "carinho resignado" que há no toque da mão dele
sobre o seu ombro.
AS OBRAS
O Vaso Azul
João A. Carrascoza
Ática (Tel.011/278-9322)
96 págs., R$ 19,90
Os Saltitantes Seres da Lua
Nelson de Oliveira
Relume Dumará (Tel.021/564-6869)
88 págs., R$ 13,00
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Conquanto se voltem para o
mesmo dia-a-dia de que se nutrem os contos de João A. Carrascoza, os contos de Nelson de Oliveira focalizam-no por outro ângulo que não o da verossimilhança realista. Seu viés é o do onírico,
do surreal, do fantástico, amiúde
entremesclados a ponto de se tornarem indistinguíveis um do outro -se é que a distinção tem alguma utilidade prática. Vistas por
tal viés, as cenas da realidade sofrem uma inversão radical que
torna o familiar insólito, quando
não francamente absurdo.
Por esse lado, "Naquela Época
Tínhamos um Gato" (Cia. das Letras) e "Os Saltitantes Seres da
Lua" se filiam a uma linha do
conto brasileiro que teve seus iniciadores em Murilo Rubião e José
J. Veiga. Aqui tampouco cabe falar
em epigonismo, visto as histórias
de Nelson de Oliveira serem inventivas quer na concepção quer
na escrita. As mais bem logradas
dão a perceber um tipo de epifania
diverso das de " Vaso Azul". Em
vez de atualizar, por refiguração,
o estrato arquetípico do óbvio, a
inversão fantástica abre uma rua
de mão dupla entre a ordem da
realidade e a ordem do desejo. Como ambas as ordens se interpenetram livremente nos sonhos, não é
de estranhar que eles sejam amiúde tematizados nos contos de Nelson de Oliveira. É o caso, por
exemplo, da louca batalha entre
caipiras e metropolitanos sonhada pelo protagonista de "Saltitantes Seres da Lua" do livro do mesmo nome, ou do sonho a dois de
" Intervalo" em "aquela Época
Tínhamos um Gato" em que os
mundos separados que os dois
personagens habitam em estado
vígil passam a se unificar no estado onírico.
Mesmo num conto como " Peste" também deste último livro, a
atmosfera de dissolução física e
moral em que Rodolfo e Antônia
chafurdam e que acaba por contaminar a própria ortografia da escrita narrativa é uma típica atmosfera de pesadelo, se bem não haja
na história qualquer referência explicita ao onírico. E em "Lá", outro dos contos de "Naquela Época", o ambíguo desaparecimento
das pessoas que, à procura de uma
rua qualquer, são encaminhadas
pelos camelôs para além do final
da sua estranha feira, põe em xeque a univocidade do real, abrindo-a, como os sonhos, num leque
de intrigantes possibilidades.
É por aberturas assim que o leitor dos contos de Nelson de Oliveira tem vislumbres epifânicos
de tudo quanto, não obstante
confine com o fantástico e o absurdo, serve para irisar as mesmices do vulgar com as invulgaridades da fantasia -essa filha pródiga da razão.
José Paulo Paes é ensaísta, poeta e tradutor,
autor, entre outros, de "A Meu Esmo" (Noa Noa),
"De Ontem para Hoje" (Boitempo) e de "Os Perigos da Poesia e Outros Ensaios" (Topbooks)
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