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RÉPLICA
Resíduos do tempo
CILAINE ALVES
Ainda hoje, a desorganização do mercado editorial brasileiro impõe a
muitos autores formas
alternativas de difusão de textos.
Um bom exemplo é o livro recém-publicado de Modesto Carone, "Resumo de Ana", cuja primeira parte saiu em 1989 na revista "Novos Estudos Cebrap".
No século passado, a prática de
repassá-los de mão em mão ou de
reproduzi-los em periódicos era,
obviamente, ainda mais corriqueira. Dada a precariedade do
sistema editorial, o estudioso do
século 19 sempre leva em conta as
revistas e os jornais, na época os
principais órgãos de divulgação
da produção literária e do debate
intelectual. Paira ainda sobre o período a forte suspeita de que a recente história das edições brasileiras arrefeceu, mas não sepultou
completamente antigas práticas
de difusão, a oral e a manual entre
elas, como evidencia a consagração em vida de Laurindo Rabelo,
cuja obra é toda póstuma.
Na resenha em que discute o livro de minha autoria (Jornal de
Resenhas, nº 42), Carlos Secchin,
ao discordar da interpretação de
"É Ela", confunde a data da publicação em livro de "A Confederação dos Tamoios" (1856) com
sua difusão. Não se sabe se por
desconhecimento de causa ou por
omissão, deixou de informar que
partes desse texto, redigido em
1836 ou 1837, circularam nos primeiros e terceiros números da
"Revista Nacional e Estrangeira", de 1839 e 1840 (cf. Hélio Lopes "A Divisão das Águas", Conselho Estadual de Artes e Ciências
Humanas).
1856 foi uma data programada
por Magalhães e Porto Alegre visando à reprodução da expectativa criada em torno de "Suspiros
Poéticos e Saudades" como a primeira poesia nacional. Nesse sentido, certas notas da "Revista
Guanabara", anteriores àquela
data oficial, reproduzem a informação de que determinado canto
já teria sido concluído (nº 8/1851:
sétimo canto pronto; nº 4/1852:
nono canto pronto; nº 7/1854: Magalhães traz o poema sobre os tamoios). Como em 1836, nesse período da publicação das notas, o
autor encontrava-se fora do país,
agora enquanto cônsul no reino
das Duas Sicílias. Sua passagem
pelo Brasil, antes de ser transferido para a Sardenha, especialmente para lançar o livro, coincide
com um momento em que se discutia a possibilidade de se desenvolver um épico nacional. A edição em livro esperava consolidar a
fama do autor também nesse gênero.
Princípio fundamental da poesia
de Álvares de Azevedo, a binomia
pretendia, dito sumariamente,
tanto abalar as bases fundamentais do indianismo quanto criticar
a própria poética, desembocando
na autoparódia. A remissão de "É
Ela" (cuja interpretação que produzi difere substancialmente daquela oferecida pelo poeta Secchin
no poema "É Ele", Revista
"Poesia Sempre") à personagem
Lindóia é apenas uma das peças
que satirizam não apenas Magalhães, como também Gonçalves
Dias e o próprio sátiro. Nesse sentido, a aposta de Secchin que os
estilos da representação, em "Lira dos Vinte Anos", se encontrem
"a léguas de distância" da ironia,
contraria essa poética, já que a
mistura estilística decorre naturalmente da famigerada "reflexão" romântica. Dizendo o mesmo com outras palavras, o afastamento da ironia engessa a obra
nos padrões tradicionais da poética, acabando por recusar seu aspecto binômico.
Entretanto a negação do aspecto
crítico é bastante coerente com a
perspectiva contemporânea. No
plano moral, a recepção dessa
obra (para um estudo sobre essa
recepção, ver João Adolfo Hansen
- "Etiqueta, Invenção e Rodapé.
Introdução a Sousândrade. O
Guesa", inédito) renova a higienização da binomia pela estupidificação da conduta de Azevedo
enquanto leitor. Os argumentos
de certa tendência da crítica em
favor de que o poeta não tivesse
lido Kant, Herder, Schiller e, agora, o insignificante Magalhães,
tornam-se fundamentais para remetê-lo a um suposto período primordial na pré-história da inteligência brasileira. Só assim os clichês "precursor" e "sucessor"
puderam produzir um nacionalista melancolicamente afeminado e
outro debochado e viril, e uma gênese do pensamento brasileiro
outrora ingênuo contra a perspicácia do contemporâneo. Diante
do desmanche das economias nacionais, parece que chegou o tempo de transformarem a binomia
corrosiva em precursora do desconstrutivismo.
Cilaine Alves é autora de "O Belo e o Disforme:
Álvares de Azevedo e a Ironia Romântica"
(Edusp).
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