São Paulo, sábado, 10 de outubro de 1998 |
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice À espera da redenção nacional
EVALDO CABRAL DE MELLO
Dois momentos me parecem especialmente felizes no livro de Jacqueline Hermann. O primeiro diz respeito ao bandarrismo como a resposta à expansão ultramarina de uma cultura popular eivada não só de messianismo judaico, mercê da intensa interação entre cristãos-velhos e novos, mas também de messianismos europeus: o celta, do ciclo arturiano, o do Rei Encoberto, de raízes difusas, e o joaquimista, que em Portugal seria reelaborado pelos franciscanos e desembocaria no culto do Imperador do Divino. (Uma tese cuja validade não se pode garantir pretenderia mesmo que a escolha por Pedro 1º do título de Imperador teria visado sobretudo a mobilizar em favor da nova monarquia americana o culto popular ao Imperador do Divino.) O segundo momento é a revisão realizada pela autora na versão tradicional, avalizada pela historiografia liberal e oitocentista, de que D. Sebastião fora a vítima de uma educação beata, dos irmãos Camaras e dos jesuítas. Na realidade, como demonstra a autora, El Rei foi o prisioneiro voluntário de um mito e da política impingida por um grupo de nobres que visava a realizá-lo: a conquista do norte da África. Menos convincente, embora digna de ser devidamente aprofundada, pareceu-me a tese da elaboração de uma sacralidade específica dos reis portugueses para conpensá-los da carência da sacralidade pela unção dos Santos Óleos. Que houve essa sacralidade específica é evidente, mas que ela tenha sido geralmente percebida como a compensação de uma carência levanta problema, tanto assim que, havendo o Regente D. Pedro obtido do Papa o direito à unção (pág. 137), ele não foi jamais exercido. A iniciativa de solicitá-la pode ter constituído (mas isto é uma mera hipótese que avanço) um dos cavalos-de-batalha da luta pelo poder que se travou, entre o falecimento de D. Duarte e a aclamação de D. Afonso 5º, entre facções da família real e da alta nobreza e que teve o desfecho trágico da batalha da Alfarrobeira. Por outro lado, não se pode descartar a tese de José Mattoso acerca da possibilidade de ter havido unção no tocante aos reis da primeira dinastia. Uma releitura da bula "Sedes Apostólica" talvez esclareça o problema. Se os monarcas borgonheses gozaram do privilégio, o provável é que a bula faça alusão ao fato, pois neste caso se trataria apenas para o Vaticano de confirmar um precedente e não de criar direito novo. Dito o que, permito-me entrar no menos importante, isto é, no varejo historiográfico. Se as trovas da Bandarra foram redigidas entre 1520 e 1530, o provável é que o D. João nelas profetizado tenha sido efetivamente D. João 3º e não seu filho homônimo, pai de D. Sebastião. D. João 3º foi aclamado em 1521, mas sua decisão de abandonar algumas praças marroquinas, signo do refluxo imperial, datou de mais de 20 anos depois. O cognome de "o Africano" não foi aplicado a D. João 2º, mas a D. Afonso 5º, seu pai, devido aos seus projetos bélicos no norte da África. Quanto ao infante D. Duarte, mencionado no processo de Maria de Macedo, não parece tratar-se do rei D. Duarte, mas do infante e irmão de D. João 4º que, como o Infante Santo, terminou seus dias numa masmorra, no caso espanhola. O Antônio de Sousa de Macedo que aparece denunciando a citada Maria de Macedo não era apenas o familiar do Santo Ofício e membro do Conselho de Fazenda, mas um mais importantes homens de Estado da Restauração. Havendo sido representante de D. João 4º em Londres e em Haia, ocupava, quando da denúncia, a secretaria de Estado de D. Afonso 6º. Como tantos portugueses ilustres do seu tempo, Sousa de Macedo era sebastianista. Por fim, o mosteiro de Yuste, aonde o imperador Carlos 5º retirou-se no fim da vida, não se localiza na Alemanha, mas na Extremadura espanhola, podendo ser visitado. Evaldo Cabral de Mello é historiador e autor, entre outros livros, de "Rubro Veio" (Topbooks). Texto Anterior | Próximo Texto | Índice |
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