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Certo, justo e belo
Ferreira Gullar escreve sobre o lugar de Amilcar de Castro (1920-2002) na arte brasileira
FERREIRA GULLAR
Já muito se escreveu sobre a
obra de Amilcar de Castro, mas
talvez nenhum crítico tenha procurado situá-la como um dos pólos da experiência neoconcreta e,
consequentemente, como uma alternativa oposta à que adotaram
Lygia Clark e Hélio Oiticica. Acredito que esse enfoque ajudará a
entender melhor o significado de
sua obra e o que ela representa no
âmbito da arte brasileira dos últimos 40 anos.
Antes de mais nada, devemos
entender que o movimento neoconcreto, por razões que ainda
merecem ser estudadas, representou um momento extremo da experiência de vanguarda em âmbito internacional e que, por isso
mesmo, tanto no plano da realização como no plano da teoria, se
antecipou a outras propostas que
representaram uma mudança importante na arte contemporânea.
Para falar de modo bem resumido, pode-se dizer que o movimento neoconcreto assumiu de
maneira radical as propostas de
uma certa tendência da vanguarda que, deflagrada pelo cubismo,
alcançou sua máxima radicalidade no neoplasticismo de Mondrian e no suprematismo de Malevitch. Tratava-se de fundar uma
linguagem pictórica que nada
mais devesse à velha pintura figurativa, que fosse de fato uma nova
arte. Esta proposta conduziu, no
caso de Malevitch, à tentativa de
eliminar a contradição figura-fundo (o célebre quadro "Branco
Sobre Branco"). Lygia retoma esse desafio e decide, em vez de pintar, agir sobre a tela, transformando-a afinal nos seus famosos "Bichos".
Radicalidade equivalente é a de
Amilcar de Castro, ao assumir a
herança da moderna escultura,
mas recuando até a simples placa
bidimensional, que é o oposto do
volume e, portanto, da escultura.
Assim como Lygia não aceita retornar à tela como lugar onde
construir um espaço simbólico
(ainda que abstrato), Amilcar
também não admite lançar mão
de qualquer recurso, seja figurativo, seja abstrato, da antiga linguagem escultórica. Assim, enquanto
Lygia corta a tela, estufa-a e depois a reconstrói em placas que,
deslizando umas sobre as outras,
criam volumes virtuais mutáveis,
Amilcar apenas corta e dobra a
placa de metal para dela extrair a
expressão plástica possível. Trabalha com o mínimo de recursos,
como a desafiar sua própria inventividade.
Por trás dessas experiências está
o questionamento de toda a arte
anterior que, à luz da modernidade científica e tecnológica, aparece como algo atrasado e superado:
a intuição, a sensibilidade, a fantasia deveriam ser substituídas pela
racionalidade, pelos princípios
científicos e pela nova tecnologia.
A essa questionamento, os artistas buscaram diversas respostas: o
construtivismo russo optou pela
nova tecnologia, enquanto o dadaísmo aderiu à irracionalidade e
o concretismo suíço se voltou para construção matemática.
No final da década de 40, a arte
brasileira se reencontra com as
tendências internacionais de que
se alheara durante a Segunda
Guerra Mundial, que terminou
em 1945. A adesão à arte concreta
foi um salto enorme que implicou
a ruptura com o que até então significava a modernidade (a arte
modernista surgida em 22) e o defrontar-se com o impasse: é que o
concretismo já era uma experiência limite.
A ruptura abrupta da arte brasileira com o figurativismo modernista levou-a (no caso neoconcreto) a reassumir o radicalismo de
um Mondrian ou de um Malevitch e a se defrontar com o mesmo impasse. Malevitch, depois de
tentar construções no espaço tridimensional, retornaria à figura;
Mondrian, em Nova York, inicia
com o "Broadway Boogie-Woogie" e o "Victory Boggie-Woogie"
a dissolução de suas estruturas
verticais e horizontais. No Brasil,
bem mais tarde, repetiu-se o desafio já abandonado.
Mas a arte do Terceiro Mundo
não repete os passos da arte herdada do primeiro mundo, mesmo
porque isso é impossível. Assim, o
neoconcretismo brasileiro deu ao
antigo problema uma resposta
nova e bem mais radical que a de
seus antecessores. Lygia e Oiticica
terminaram por romper os limites da linguagem da arte e retrocederem à experiência meramente
sensorial, menos visual que táctil,
olfativa e auditiva. Amilcar fez
uma opção diferente, que preservou o compromisso com o objeto
visual no espaço real.
Essa é uma diferença fundamental, reveladora da atitude de
Amilcar em diante da arte que
-ao contrário da de Lygia e Oiticica, experimentalista- é irredutivelmente ética. O que há de comum entre eles é a rejeição da arte
como construção do imaginário.
Lygia e Hélio, o máximo que se
permitem de afastamento do real,
é o mergulho na noite das sensações; Amilcar, objetivo e racionalista, concebia a beleza como resultado da exatidão formal e da limitação dos recursos expressivos,
entendida como exigência ética.
Por isso, afirmava: "O que é certo
é justo e o que é justo é belo".
Amilcar pertence, portanto, à
família dos artistas que seguiram
a lição da vanguarda racionalista;
despojou sua arte de todo e qualquer romantismo, de quase toda a
subjetividade, para, sem concessões à efusão emocional, fazer dela uma construção impessoal,
produto das possibilidades objetivas do material que utilizava.
Ferreira Gullar é poeta e crítico, autor,
entre outros livros, de "Relâmpagos"
(Cosac & Naify, no prelo).
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