São Paulo, sábado, 11 de março de 2000


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Um discurso profético


Autor aposta na pequena burguesia


Democracia Realizada - A Alternativa Progressista
Roberto Mangabeira Unger
Boitempo (Tel. 0/xx/11/3865-6947)
228 págs., R$ 34,00

FERNANDO HADDAD

Um autor que tem como leitores Habermas, Rorty e Perry Anderson. Um cidadão que apoiou a candidatura de Brizola à Presidência da República e, hoje, apóia a de Ciro Gomes. Um professor considerado por alguns "o maior pensador crítico do pós-guerra" e, por outros, "a maior fraude de Harvard". Um cidadão semi-residente no Brasil que se lança a prefeito de São Paulo por telefone. Como decifrar Mangabeira Unger? Os comentários, bondosos ou não, servem de pretexto para uma recusa em conhecer de maneira isenta a obra do nosso personagem. Ninguém como ele enseja tantos preconceitos positivos e negativos. Nada pior, pois "Democracia Realizada" é uma obra notável e criticável.
Nas primeiras páginas do livro, o leitor já se depara com argumentos instigantes contra clássicos do pensamento como Marx, Weber, Rawls ou Habermas, autores que Mangabeira não cita, como aliás, nenhum outro. O livro não tem sequer uma bibliografia, cabendo-nos, portanto, situá-lo frente à tradição.
Um conceito marxista central como o de modo de produção é implicitamente criticado: delimitaria de forma grosseira uma pequena gama de grandes sistemas institucionais (feudalismo, capitalismo e socialismo), tomando-os como realidades institucionais indivisíveis que se sustentam ou caem como um todo único, e define de forma determinista as condições de sua evolução.
Mangabeira propõe, diferentemente, que "as estruturas da sociedade são o resultado de muitas sequências frouxamente interligadas de conflito social e ideológico, e não imperativos funcionais insuperáveis e determinados, que dirigem uma sucessão de sistemas institucionais indivisíveis".
Esse movimento promove a quebra do antagonismo entre reforma e revolução, pois o experimentalismo institucional proposto pode ser radical, a ponto de transformar as estruturas básicas da sociedade -daí seu caráter revolucionário-, e fazê-lo, lidando com uma parte dessa estrutura por vez -daí o seu caráter reformista.
O experimentalismo institucional recusa também o pensamento, inspirado em Weber, que opõe "interlúdios de efervescência, carisma, mobilização e energia ao reinado ordinário da rotina institucionalizada". E mesmo que democracia representativa, economia de mercado e sociedade civil livre sejam consideradas pelo autor instituições desejáveis, como quer Habermas na trilha de Weber, não é verdade que elas componham um conjunto único de estruturas: "Elas podem assumir diversas formas institucionais, com consequências radicalmente diferentes para a sociedade".
Por fim, Mangabeira critica a filosofia política normativa inspirada em Rawls: "Os teóricos supõem que a separação do projeto institucional dos princípios normativos seja necessária para assegurar a transcendência da teoria normativa do contexto histórico"; paradoxalmente, "esses filósofos políticos racionalistas se entregam completamente nas mãos de sua situação histórica. Não é de admirar que sua especulação continue a ser apenas um polimento filosófico das práticas características tanto da redistribuição por meio de impostos e transferências quanto da proteção dos direitos individuais nas democracias industriais do pós-guerra".
A vantagem de Mangabeira é mover-se num contexto em que já é dado como certo que aquelas estruturas históricas que prevaleceram por 50 anos a partir de 1930 -os Estados desenvolvimentista, soviético e social-democrata- se desarticularam, embora ele não seja capaz de explicar o porquê de tão abrupta mudança, de onde o caráter por vezes a-histórico de suas críticas às velhas esquerdas.
Mangabeira recusa as propostas de direita que partem de falsas premissas, como a tese da convergência das economias nacionais e das classes sociais. Para ele, a economia moderna está marcada pelo dualismo crescente entre vanguarda e retaguarda, pautado pelo acesso às novas tecnologias e aos mercados globais.
A política neoliberal, na verdade, reforça esse dualismo, enquanto as esquerdas tradicionais o enfrentam de maneira equivocada: "Para a economia organizada propõem uma economia política corporativa; para a economia desorganizada, oferecem assistência social compensatória". Para Mangabeira, não se trata de aprofundar ou suavizar o dualismo, mas de superá-lo.
O cerne de seu programa econômico é o aumento da poupança pública e privada por meio de uma ampla reforma tributária e previdenciária e a constituição de fundos sociais e centros de apoio, descentralizados e democráticos, que financiem a ação de indivíduos ou coletivos de trabalhadores, para promover empreendimentos eventualmente sob novos regimes de propriedade, que conviveriam numa mesma economia. Sobre esse último tópico, Mangabeira mostra-se cético em relação à propriedade cooperativa tradicional e parece filiar-se ao pensamento de James Meade.
Quanto ao programa político, Mangabeira recupera uma crítica que já havia sido feita por Robert Dahl sobre o caráter conservador do sistema de freios e contrapesos do constitucionalismo americano, mas, descrente na mera disputa eleitoral como fator exclusivo de dinamização da vida política, propõe uma novo relacionamento entre executivo e legislativo. O elemento plebiscitário da democracia é fortalecido com garantias para se evitar o cesarismo.
Muitas outras propostas são consideradas: renda mínima, financiamento público de campanhas eleitorais, acesso aos meios de comunicação, mudanças no direito à herança, reforma do ensino etc. Não há como não concordar com a maioria, mas passo a listar o que acho insuficiente no programa de Mangabeira.
Em países como o Brasil, as reproduções material e simbólica da sociedade estão marcadas pela intermediação distorcida de dois conjuntos de instituições: os bancos e os meios de comunicação. Simplesmente facilitar o acesso, sem considerar a necessidade de imaginar regimes alternativos de propriedade e gestão dessas instituições, não conduzirá, na escala pretendida, ao aprofundamento da democracia ou à promoção do desenvolvimento econômico com justiça social.
Além disso, talvez não precisemos aumentar a poupança por meio do sistema tributário -cuja dimensão deliberativa Mangabeira não desenvolve- e previdenciário, mas tão-somente redirecionar democraticamente o crédito disponível no sistema financeiro, cuja reforma ele negligencia. O fenômeno do crédito lhe escapa completamente; daí, nesse particular, entregar-se ao pensamento conservador e sua cantilena sobre poupança.
Por fim, Mangabeira tem razão em eleger países com as especificidades do Brasil, vitimados pelo neoliberalismo, palcos de possíveis transformações progressistas. Sua teoria de classes, contudo, é precária para entender a política local, tanto no que diz respeito às classes dominantes e seu neopatrimonialismo condominial, turbinado pelas privatizações, quanto em relação à desinstitucionalizada pequena burguesia nacional.
Mangabeira aposta no suposto radicalismo desta, sem atentar para o fato de que, quando ela se expressou, atendendo a um discurso profético, sem mediação e apaixonado como o dele -forma, aliás, adequada ao conteúdo da sua teoria de classes-, assumiu um caráter marcadamente regressivo.
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Fernando Haddad é professor de ciência política na USP e autor de "Em Defesa do Socialismo" (Vozes).


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