São Paulo, sábado, 11 de março de 2000


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Uma forma humilde

A Balada do Cárcere de Reading
Oscar Wilde
Tradução: Paulo Vizioli
Nova Alexandria (Tel. 0/xx/11/571-5637)
88 págs., R$ 14,50

PAULO HENRIQUES BRITTO

"A Balada do Cárcere de Reading" foi a única obra que Oscar Wilde escreveu e publicou na fase final de sua vida, entre a prisão em 1895 e a morte prematura no exílio, em 1900. É também seu único poema com caráter de denúncia, cujo vigor, apesar de alguns excessos melodramáticos, destoa da frouxidão que tende a marcar a poesia desse autor, hoje respeitado acima de tudo por seu teatro e sua prosa crítica e ficcional. Boa parte da força do poema deriva da forma escolhida por Wilde: a balada.
A balada inglesa é uma forma poética popular muito usada em narrativas. Nela alternam-se versos de quatro pés (isto é, quatro acentos fortes) e versos de três, com rima somente entre os versos pares (os de três pés). A contagem de sílabas é irregular, e pode haver pequenos desvios ocasionais até na contagem de pés, desde que predomine a oposição quatro/três. Nas baladas escritas por poetas eruditos, a presença de irregularidades na forma é um efeito calculado, uma espécie de selo de autenticidade.
É esse o poema que nos apresenta Paulo Vizioli, recém-falecido tradutor paulista que nos deixou versões de muitas obras poéticas importantes na literatura de expressão inglesa. Como sempre, Vizioli busca em sua tradução uma aproximação formal escrupulosa com o original. Mas esse método, que logrou bons resultados em outras traduções suas, como a de "The Rape of the Lock", de Pope, não funciona tão bem aqui. Se, no caso de Pope -poeta neoclássico que trabalha com pentâmetros (versos de cinco pés) jâmbicos (pés com duas sílabas cada, sendo a segunda acentuada) rigorosamente metrificados e rimados-, a tradução em alexandrinos foi um sucesso, no caso da balada de Wilde a solução encontrada por Vizioli é problemática. Vejamos por quê.

Narratividade e simplicidade
Na "Balada do Cárcere de Reading" também predominam os pés jâmbicos, de duas sílabas. A alternância de versos de quatro pés com versos de três significa, em tese, que os versos longos teriam oito sílabas e os curtos, seis. Mas, como já vimos, na balada a contagem de sílabas é o de menos; o que realmente importa é a sucessão quatro acentos/ três acentos, um ritmo que, para o ouvido de um falante do inglês, está associado a versos populares ou infantis, a todo um "corpus" poético que se caracteriza pela narratividade e a simplicidade.
Em sua tradução, Vizioli usa estrofes em que se alternam versos de doze sílabas e versos de seis. (Justifica-se a escolha de versos mais longos: como as palavras inglesas são mais curtas, o que se pode dizer em oito sílabas inglesas dificilmente cabe em oito portuguesas.) E Vizioli é rigidamente fiel a outras características formais do original; chega até a reproduzir as rimas internas que por vezes ocorrem entre o segundo e o quarto acento dos versos de quatro pés: "Right in we wént, with sóul entént" (os acentos indicam as sílabas fortes) é traduzido como "Reentramos com calma, remoendo n'alma". Porém a estrofe por ele adotada -dodecassílabos entremeados com hexassílabos- não é uma forma tradicional da poesia lusófona, muito menos da nossa poesia popular. E o efeito geral de seus versos pesados, metrificados com mais rigor do que o próprio original, não podia estar mais distante do sabor popular conotado pela balada.
Além disso, a imposição de permanecer sempre colado ao original leva o tradutor a fazer "enjambements" e inversões que afastam seu texto ainda mais do tom de simplicidade buscado por Wilde. Assim, dois versos singelos e diretos como "They thínk a múrderer's heárt would táint/ Each símple séed they sów" são transformados numa passagem de tortuosidade parnasiana: "Julgam que o coração de um assassino os grãos/ Plantados mancha e estanca".

Efeito hipnótico
Que solução teria sido melhor? O que fazer se a balada é uma forma inglesa que não tem correspondente exato em português? Nosso idioma possui formas poéticas que, mesmo não sendo formalmente equivalentes à balada inglesa, a ela correspondem em termos funcionais. É o caso da redondilha maior -o verso popular de sete sílabas, de contagem pouco rigorosa e rimas pobres ou toantes, que João Cabral dignificou em tantos poemas seus. Uma outra opção seria o verso de nove sílabas de ritmo ternário, com efeito hipnótico, que Gonçalves Dias usa em várias seções de seu "I-Juca-Pirama". Podemos imaginar como ficariam em língua portuguesa, adotando-se tais opções, os versos acima citados ("They thínk..."). Em redondilha maior: "Julgam que o coração/ de um assassinato enterrado/ Tem poder de corromper/ O grão que ali for plantado". Ou, na forma de "I-Juca-Pirama": "Coração de assassino, eles pensam/ Contamina a semente plantada".
Uma tal solução certamente obrigaria o tradutor a tomar liberdades ousadas; por exemplo, minha versão em redondilha desdobra dois versos do original em quatro. Porém, ainda que menos fiel à letra do original, uma tradução assim estaria mais próxima do seu espírito. Pois a escolha da forma da balada tem um significado especial aqui: para Wilde, homem requintado e orgulhoso, a prisão representou uma humilhação profunda, o fim de sua carreira literária, seu casamento e sua reputação social; ele terminará convertendo-se ao catolicismo no leito de morte. Sem dúvida, é significativo que, para tematizar essa experiência terrível, em seu último poema, ele resolva adotar a mais despretensiosa, a mais humilde das formas poéticas da língua inglesa. Pois é justamente isso que se perde nesta tradução de resto cuidadosa; e não é pouca coisa.


Paulo Henriques Britto é poeta, tradutor e autor de "Trovar Claro" (Cia.das Letras).


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