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São Paulo, sábado, 11 de outubro de 2003

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O mito do gosto inato

MARCELO RIDENTI

"O Amor pela Arte", estudo minucioso sobre o público de arte dos museus europeus nos anos 1960, é fruto de uma vasta pesquisa coletiva coordenada pelo sociólogo francês Pierre Bourdieu, que teve como principal colaborador Alain Darbel, responsável pelo plano de sondagem e pelo modelo matemático usado para análise da frequência das visitas a museus.
A primeira coisa que salta aos olhos é a preocupação com o rigor científico da abordagem sociológica, a um tempo lógica e empírica. Entre 1964 e 1965, a equipe de Bourdieu aplicou milhares de questionários (9.226 só na França) a frequentadores de museus de cinco países: Espanha, França, Grécia, Holanda e Polônia. Constata-se algo aparentemente paradoxal: os museus estão abertos a todos, mas não são visitados pela maioria das pessoas. A pesquisa revela que a frequência aos museus aumenta consideravelmente à medida que o nível de instrução é mais elevado e corresponde a um modo de ser das "classes cultas".
Ao interpretar os dados, Bourdieu questiona o "mito do gosto inato", desmonta a "ideologia do dom natural", que daria uma aparência de legitimidade ao privilégio de classe. Segundo essa ideologia, como os museus são públicos e o acesso a eles é franqueado até aos mais pobres, seriam "excluídos apenas aqueles que se excluem", havendo uma desigualdade natural das necessidades culturais. Bourdieu [1930-2002] demonstra que somente alguns -aqueles que tiveram a oportunidade de aprender com a família e com a escola- têm a possibilidade real de concretizar a possibilidade aberta com o acesso público aos museus de arte.
A necessidade cultural seria produto da educação, não de dons supostamente inatos de indivíduos bem-dotados por natureza, pois a obra de arte só existe para quem tem os meios para decifrá-la, o que depende de familiaridade com ela, só adquirida pelo ensino. Os sujeitos menos cultos estariam condenados a "apreender a obra de arte em sua pura materialidade fenomenal", isto é, estariam desarmados do conhecimento das tradições e das regras da linguagem artística, excluídos das significações organizadas de um conjunto de saberes acumulados. De modo que a estética estaria em geral limitada ao etos de classe.
Bourdieu desvenda as condições históricas e sociais da plena posse da cultura e também do desapossamento cultural. Desnuda a sacralização da cultura e da arte, cuja função seria legitimar os privilégios herdados, reduplicando as diferenças propriamente econômicas (posse de bens materiais), com as diferenças dadas pela posse de bens simbólicos. O amor pela arte -que não é um amor à primeira vista, mas fruto de um convívio prolongado, revelado, por exemplo, na frequência a museus- seria a marca da eleição de poucos, reforçando o sentimento de filiação ou de exclusão social, tratando aptidões herdadas como se fossem virtudes naturais e meritórias próprias de cada pessoa.
A escola seria a única instituição capaz de exercer uma ação metódica e continuada para universalizar o conhecimento, quebrando o monopólio da distinção culta. Mas ela estaria abdicando desse poder de "quebrar o círculo que faz com que o capital cultural leve ao capital cultural". Possibilitaria assim a "reduplicação das desigualdades".
Por si sós, a quebra do "mito do gosto inato" e as considerações sobre a importância cultural e artística da educação já justificariam a publicação do livro quase 40 anos depois de lançado na França. Evidentemente, no que se refere a vários tópicos específicos, só uma outra pesquisa poderia avaliar a pertinência nos dias de hoje dos resultados obtidos pela equipe de Bourdieu ainda antes do Maio de 1968, portanto, num momento anterior à massificação da educação superior, ao desenvolvimento enorme do turismo como negócio, às transformações da museologia e da era da informática etc.
Não obstante o livro não perde seu interesse metodológico, ao expor detalhadamente como foram produzidos os dados analisados na pesquisa, passando pela elaboração do questionário, depois a amostra e a sondagem, a codificação e a análise dos resultados, o estudo comparativo entre os países estudados e assim por diante. Tudo devidamente documentado em mais de 50 páginas num apêndice que inclui vários gráficos, tabelas e fórmulas matemáticas, também presentes em abundância no corpo do próprio livro, o que não facilita a leitura.
Apesar do uso farto de dados estatísticos na busca de uma "definição científica das condições sociais e culturais da frequência de museus" -fugindo assim do senso comum e das "representações da sociologia espontânea"-, em nenhum momento o trabalho sucumbe ao empirismo, como se os dados falassem por si. O Bourdieu dos anos 1960 é imensamente atual ao questionar os pesquisadores que se deixam levar pelas pesquisas de opinião ou de consumo cultural, como se elas expressassem aspirações autênticas, "esquecendo não só os condicionamentos econômicos e sociais que determinam tais opiniões ou consumos, mas também as condições econômicas e sociais que podem tornar possível um outro tipo de opinião ou consumo".
Aqueles que gostam de teoria sociológica encontrarão no livro um diálogo com os clássicos, explícito em relação a Durkheim (ao tratar das representações e da educação) e também a Weber (nas referências a ética, salvação, classe definida pela posse de bens) e apenas implícito no que se refere a Marx -ideologia, capital cultural que redunda em mais capital cultural.
Alguém poderia perguntar: essas lições de Bourdieu -sobre método, educação e arte- estão mais desenvolvidas e amadurecidas em obras posteriores, já traduzidas e disseminadas no Brasil, então por que publicar esse estudo já antigo, detalhado e às vezes maçante, cheio de fórmulas matemáticas?
A resposta talvez passe por algo que, parafraseando o título da obra, pode-se chamar de "amor por Bourdieu", pelo seu pensamento social. O livro foi publicado originalmente quando o autor era um pesquisador de 36 anos, muito talentoso e com enorme capacidade de trabalho, mas ainda longe de se tornar a principal figura no campo da sociologia francesa, quiçá mundial, que nos últimos anos levava centenas de discípulos e admiradores a suas conferências no Collège de France.
Então, a publicação não deixa de ser uma espécie de "retrato do artista quando jovem", que serve para avaliar certo momento de uma trajetória intelectual que deixou muitos adeptos, desde os mais estritamente sociólogos profissionais -afinados com seu perfil de intelectual acadêmico de carreira-, até os mais próximos da tradição marxista, que realçam na obra de Bourdieu o aspecto de desmistificação dos mecanismos de dissimulação da dominação, desvendando "o que se passa por detrás do pano", além de valorizar sua atitude combativa contra o neoliberalismo nos anos mais recentes.
Assim, o livro vem a calhar para estudiosos do devir das pesquisas e do pensamento de Bourdieu. Para nós outros -que vemos de fora essa numerosa e polissêmica confraria-, o livro contribui para que nos eduquemos no intrincado e multifacetado mundo da "arte" de Bourdieu. Se não pudermos amá-la, que ao menos compreendamos suas regras.


Marcelo Ridenti é professor de sociologia na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e autor de "Em Busca do Povo Brasileiro, Artistas da Revolução" (ed. Record).

O Amor pela Arte
Os Museus de Arte na Europa e Seu Público
Pierre Bourdieu e Alain Darbel
Tradução: Guilherme João de Freitas Teixeira
Edusp (Tel. 0/xx/11/3091-4156)
244 págs., R$ 30,00


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