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São Paulo, sábado, 11 de outubro de 2003

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Conhecimento livre

A história do saber de Gutemberg a Diderot

ANA PAULA TORRES MEGIANI

Por seu empenho em fazer da história um conhecimento mais acessível e circulante, escolhendo temas e objetos de interesse multidisciplinar, as obras de Peter Burke encontram grande popularidade no Brasil e em vários outros países. Mas essa fácil difusão pode ser um risco no caso deste livro. Como afirma o próprio autor no prefácio, trata-se de um trabalho que reúne textos de muitos anos de pesquisa e conferências feitas em várias partes do mundo, graças à insistência de colegas e amigos, que viram nesse corpo de anotações de aulas um importante conjunto de dados e reflexões acerca da problemática da relação da sociedade ocidental com o conhecimento e a informação, entre o Renascimento (Gutemberg) e o Iluminismo (Diderot). A questão, portanto, não é simples, e por isso a obra deve ser lida com cautela.
Ao longo dos nove capítulos, filósofos, astrônomos, viajantes, poetas, geômetras, geógrafos, historiadores, clérigos, soldados, impressores e toda sorte de "estudiosos" são tratados como indivíduos que se ocupam do ato do conhecimento na época moderna, ao lado de secretários, embaixadores, espiões, inquisidores, oficiais e funcionários gerais das monarquias francesa, inglesa, espanhola, austríaca ou hispânica, sem qualquer distinção de categoria social ou discussão da identidade de grupo.
Na história social do conhecimento escrito e impresso de Burke, as centenas de homens e mulheres europeus referidos não são identificados socialmente e parecem levados pelos mesmos interesses gerais em conhecer e tornar públicos os seus conhecimentos, exceto quando a vinculação a um determinado Estado ou religião específicos surge com a função de vigilância, espionagem, limite, censura e controle da vontade de conhecer dos outros indivíduos.
Em contrapartida, afloram empreendedores que empenham seus interesses e capitais na mercantilização desse conhecimento, o que, para Burke, foi o grande instrumento de libertação do conhecimento controlado e vigiado. A comercialização do conhecimento foi a única maneira de libertá-lo do poder de reis e igrejas.
Certas observações demonstram o esforço ingênuo de Burke em aproximar a sociedade do Antigo Regime com a nossa época, tais como: "No século 16, as cartas para casa escritas das mais importantes cidades comerciais da Europa e da Ásia por membros das famílias de comerciantes de Gênova, Veneza, Florença e outras cidades constituíam bancos de dados virtuais"; ou: "Sem exagerar nas semelhanças entre o início da era moderna e o século 20, poderíamos dizer que as companhias já atuavam como patrocinadoras da pesquisa".
A obra, contudo, é de primorosa erudição, trazendo ao leitor um número incontável de casos de pessoas envolvidas com o conhecimento, como uma espécie de rio caudaloso que não pára nunca de correr, mas que não sabe aonde vai chegar. Somente o recurso ao índice onomástico pode ajudar o leitor leigo na história da época moderna a ter uma superficial dimensão das pessoas tratadas e de suas atividades.
Nesse sentido, é extremamente oportuna a discussão da necessidade de ordenação do conhecimento, sobretudo a partir do século 17, quando a quantidade de textos impressos nas tipografias européias começa a ultrapassar a capacidade dos sistemas de registros até então conhecidos. Uma das maneiras de resolver o problema foi a criação de fichários, obras de referência, dicionários, enciclopédias e a substituição do sistema temático pelo alfabético.
A adoção da ordem alfabética explicita, contudo, o quanto há de limitação na passagem da prática de leitura para a prática de consulta, segundo ele ocorrida a partir das últimas décadas dos Seiscentos, problema que também leva à invenção da nota de rodapé. Assunto aparentemente sem importância, foi na nota de rodapé ou de fim que os autores e editores europeus do Antigo Regime encontraram um meio de conduzir o leitor aos caminhos por eles trilhados e, sobretudo, indicar as fontes de consulta utilizadas.
Muitas práticas nascidas na época moderna são, de fato, duradouras. Trata-se de práticas organizativas, originadas do crescimento da informação circulante, que constituem a grande novidade do fenômeno do conhecimento impresso. A ampliação dos mecanismos e instrumentos de veiculação da informação, entretanto, jamais pode ser considerada um aumento da qualidade do conhecimento veiculado, já que este não deve ser medido pela rapidez ou acessibilidade. Pelo contrário, à medida que aumenta o volume de informação circulante, surgem instrumentos de consulta rápida que alienam o indivíduo do conhecimento contido, simplificando a busca e generalizando a prática da referência. Nesse novo método entra até mesmo a invenção da resenha, no final do mesmo século 17.
Um dos pontos altos do livro é quando Burke traça a comparação entre Montaigne e Monstesquieu, detectando uma alteração do método de leitura e consulta desses dois eruditos. Enquanto o primeiro usava o sistema de leitura intensiva, o segundo adotava o sistema de leitura extensiva, consultando as milhares de obras de sua biblioteca por meio das referências, dicionários e enciclopédias.
Observar a organização do livro de Burke revela ainda outras generalidades. Adotando uma estrutura mais sociológica do que histórica, recheia-a de dados, fatos, obras e autores, referidos numa temporalidade histórica inconsistente. Somente dois desses capítulos podem ser lidos na perspectiva da transformação.
O caso mais limitante encontra-se no sexto capítulo, em que a presença do Estado e da Igreja, sejam católicos ou protestantes, na Europa central, do norte, no Mediterrâneo ou na Inglaterra, é tratada indistintamente como limitadora da liberdade de conhecer, reducionismo que aparece também quando compara os empreendimentos da imprensa européia com a chinesa.
Ao indicar que na China se tentou publicar uma obra reunindo todo o conhecimento tradicional, o que inviabilizou o maior livro do mundo, contendo 750 mil páginas com cópias manuscritas em sete lugares diferentes, realizadas entre 1772 e 1780, Burke compara superficialmente as duas culturas; nesse momento, pende para uma análise arriscada, induzindo o leitor ao engano, pois afirma que a organização burocrática da China torna o conhecimento extremamente coercitivo, em contraste com o caráter empresarial, e por isso mais aberto, do conhecimento na Europa. Daí conclui que foi o processo de incorporação do conhecimento como produto de mercado através da imprensa o responsável pela abertura dos canais de informação e pela sua maior acessibilidade.
Finalmente, ao recorrer à justificativa teórica da sociologia do conhecimento, Peter Burke isenta-se da responsabilidade de historiador em problematizar mudanças e permanências na relação do homem ocidental com o conhecimento, seja na curta, seja na longa duração. No limite, acaba realizando um livro superficial para os especialistas, e inacessível para quem gostaria de saber, afinal, um pouco da história social do conhecimento na Europa, desde a invenção da imprensa até o advento da "Enciclopédia".


Ana Paula Torres Megiani é professora de história na USP e autora de "O Jovem Rei Encantado" (Hucitec).

História Social do Conhecimento: De Gutemberg a Diderot
Peter Burke
Tradução: Plínio Dentzien
Jorge Zahar (Tel. 0/xx/21/2240-0226)
244 págs., R$ 36,00


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