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Conhecimento livre
A história do saber de Gutemberg a Diderot
ANA PAULA TORRES MEGIANI
Por seu empenho em fazer da
história um conhecimento mais
acessível e circulante, escolhendo
temas e objetos de interesse multidisciplinar, as obras de Peter
Burke encontram grande popularidade no Brasil e em vários outros países. Mas essa fácil difusão
pode ser um risco no caso deste livro. Como afirma o próprio autor
no prefácio, trata-se de um trabalho que reúne textos de muitos
anos de pesquisa e conferências
feitas em várias partes do mundo,
graças à insistência de colegas e
amigos, que viram nesse corpo de
anotações de aulas um importante conjunto de dados e reflexões
acerca da problemática da relação
da sociedade ocidental com o conhecimento e a informação, entre
o Renascimento (Gutemberg) e o
Iluminismo (Diderot). A questão,
portanto, não é simples, e por isso
a obra deve ser lida com cautela.
Ao longo dos nove capítulos, filósofos, astrônomos, viajantes,
poetas, geômetras, geógrafos, historiadores, clérigos, soldados, impressores e toda sorte de "estudiosos" são tratados como indivíduos que se ocupam do ato do conhecimento na época moderna,
ao lado de secretários, embaixadores, espiões, inquisidores, oficiais e funcionários gerais das
monarquias francesa, inglesa, espanhola, austríaca ou hispânica,
sem qualquer distinção de categoria social ou discussão da identidade de grupo.
Na história social do conhecimento escrito e impresso de Burke, as centenas de homens e mulheres europeus referidos não são
identificados socialmente e parecem levados pelos mesmos interesses gerais em conhecer e tornar
públicos os seus conhecimentos,
exceto quando a vinculação a um
determinado Estado ou religião
específicos surge com a função de
vigilância, espionagem, limite,
censura e controle da vontade de
conhecer dos outros indivíduos.
Em contrapartida, afloram empreendedores que empenham
seus interesses e capitais na mercantilização desse conhecimento,
o que, para Burke, foi o grande
instrumento de libertação do conhecimento controlado e vigiado.
A comercialização do conhecimento foi a única maneira de libertá-lo do poder de reis e igrejas.
Certas observações demonstram o esforço ingênuo de Burke
em aproximar a sociedade do Antigo Regime com a nossa época,
tais como: "No século 16, as cartas
para casa escritas das mais importantes cidades comerciais da Europa e da Ásia por membros das
famílias de comerciantes de Gênova, Veneza, Florença e outras
cidades constituíam bancos de
dados virtuais"; ou: "Sem exagerar nas semelhanças entre o início
da era moderna e o século 20, poderíamos dizer que as companhias já atuavam como patrocinadoras da pesquisa".
A obra, contudo, é de primorosa erudição, trazendo ao leitor um
número incontável de casos de
pessoas envolvidas com o conhecimento, como uma espécie de rio
caudaloso que não pára nunca de
correr, mas que não sabe aonde
vai chegar. Somente o recurso ao
índice onomástico pode ajudar o
leitor leigo na história da época
moderna a ter uma superficial dimensão das pessoas tratadas e de
suas atividades.
Nesse sentido, é extremamente
oportuna a discussão da necessidade de ordenação do conhecimento, sobretudo a partir do século 17, quando a quantidade de
textos impressos nas tipografias
européias começa a ultrapassar a
capacidade dos sistemas de registros até então conhecidos. Uma
das maneiras de resolver o problema foi a criação de fichários,
obras de referência, dicionários,
enciclopédias e a substituição do
sistema temático pelo alfabético.
A adoção da ordem alfabética
explicita, contudo, o quanto há de
limitação na passagem da prática
de leitura para a prática de consulta, segundo ele ocorrida a partir das últimas décadas dos Seiscentos, problema que também leva à invenção da nota de rodapé.
Assunto aparentemente sem importância, foi na nota de rodapé
ou de fim que os autores e editores europeus do Antigo Regime
encontraram um meio de conduzir o leitor aos caminhos por eles
trilhados e, sobretudo, indicar as
fontes de consulta utilizadas.
Muitas práticas nascidas na
época moderna são, de fato, duradouras. Trata-se de práticas organizativas, originadas do crescimento da informação circulante,
que constituem a grande novidade do fenômeno do conhecimento impresso. A ampliação dos mecanismos e instrumentos de veiculação da informação, entretanto, jamais pode ser considerada
um aumento da qualidade do conhecimento veiculado, já que este
não deve ser medido pela rapidez
ou acessibilidade. Pelo contrário,
à medida que aumenta o volume
de informação circulante, surgem
instrumentos de consulta rápida
que alienam o indivíduo do conhecimento contido, simplificando a busca e generalizando a prática da referência. Nesse novo método entra até mesmo a invenção
da resenha, no final do mesmo século 17.
Um dos pontos altos do livro é
quando Burke traça a comparação entre Montaigne e Monstesquieu, detectando uma alteração
do método de leitura e consulta
desses dois eruditos. Enquanto o
primeiro usava o sistema de leitura intensiva, o segundo adotava o
sistema de leitura extensiva, consultando as milhares de obras de
sua biblioteca por meio das referências, dicionários e enciclopédias.
Observar a organização do livro
de Burke revela ainda outras generalidades. Adotando uma estrutura mais sociológica do que
histórica, recheia-a de dados, fatos, obras e autores, referidos numa temporalidade histórica inconsistente. Somente dois desses
capítulos podem ser lidos na perspectiva da transformação.
O caso mais limitante encontra-se no sexto capítulo, em que a presença do Estado e da Igreja, sejam
católicos ou protestantes, na Europa central, do norte, no Mediterrâneo ou na Inglaterra, é tratada indistintamente como limitadora da liberdade de conhecer, reducionismo que aparece também
quando compara os empreendimentos da imprensa européia
com a chinesa.
Ao indicar que na China se tentou publicar uma obra reunindo
todo o conhecimento tradicional,
o que inviabilizou o maior livro
do mundo, contendo 750 mil páginas com cópias manuscritas em
sete lugares diferentes, realizadas
entre 1772 e 1780, Burke compara
superficialmente as duas culturas;
nesse momento, pende para uma
análise arriscada, induzindo o leitor ao engano, pois afirma que a
organização burocrática da China
torna o conhecimento extremamente coercitivo, em contraste
com o caráter empresarial, e por
isso mais aberto, do conhecimento na Europa. Daí conclui que foi
o processo de incorporação do
conhecimento como produto de
mercado através da imprensa o
responsável pela abertura dos canais de informação e pela sua
maior acessibilidade.
Finalmente, ao recorrer à justificativa teórica da sociologia do conhecimento, Peter Burke isenta-se da responsabilidade de historiador em problematizar mudanças e permanências na relação do
homem ocidental com o conhecimento, seja na curta, seja na longa
duração. No limite, acaba realizando um livro superficial para os
especialistas, e inacessível para
quem gostaria de saber, afinal,
um pouco da história social do
conhecimento na Europa, desde a
invenção da imprensa até o advento da "Enciclopédia".
Ana Paula Torres Megiani é professora
de história na USP e autora de "O Jovem
Rei Encantado" (Hucitec).
História Social do
Conhecimento:
De Gutemberg a Diderot
Peter Burke
Tradução: Plínio Dentzien
Jorge Zahar
(Tel. 0/xx/21/2240-0226)
244 págs., R$ 36,00
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