São Paulo, sábado, 11 de novembro de 2000

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Um poeta erudito


Sebastião Uchoa Leite traduz François Villon


Poesia
François Villon
Organização e tradução: Sebastião
Uchoa Leite
Edusp (Tel. 0/xx/11/3818-4008)
456 pág., R$ 38,00


JÚLIO CASTAÑON GUIMARÃES

Em uma conferência sobre "Villon e Verlaine" (1937), Paul Valéry chama a atenção para os problemas das aproximações entre vida e obra. "Acrescento que o sistema Villon e Verlaine, essa relação aparente e sedutora de dois seres excepcionais com que vou entretê-los, embora capaz de se sustentar e se fortificar bastante por certos traços biográficos, se enfraquece ou se desloca em sentido contrário se quisermos aproximar as obras como se faz com os homens."
Apesar da ressalva, as aproximações entre vida e obra dos dois escritores estão presentes na conferência, o que ressalta de observações como: "A vida de François Villon é, como sua obra, bastante tenebrosa em todos os sentidos dessa palavra. Existe muita obscuridade em ambas e no próprio personagem". Em outro trecho, Valéry diz que o que ele faz nessa conferência é exatamente o que ele em geral critica muito: "Acho -este é um de meus paradoxos- que o conhecimento da biografia dos poetas é um conhecimento inútil, se não prejudicial, ao uso que se faz de suas obras e que consiste no prazer ou nos ensinamentos e problemas da arte que delas retiramos".
Na verdade, as aproximações acima se impõem, não só a Valéry, mas a todo leitor, no caso, de Villon. E o de Villon é bastante especial. Sua biografia efetiva ou as lendas que passaram a compô-la exercem grande fascínio. No entanto, o Villon que hoje se tem disponível para leitura é evidentemente resultado de um enorme trabalho de erudição, de pesquisa histórica, de filologia, de crítica textual. Seria uma simplificação, portanto, supor que a leitura de Villon dispensaria o contexto histórico, até mesmo porque boa parte de sua produção está evidentemente relacionada com incidentes de sua biografia.

Um poeta gótico

Assim, a traição que Valéry faz a seus princípios é, em certa medida, inevitável. Lembremos ainda que esse contexto histórico requisitado será também o das formas poéticas. Michel Butor, no estudo "Prosódia de Villon", aborda de modo minucioso e exclusivo as relações entre os sistemas rítmico e estrófico de Villon, mostrando que "Villon é certamente o mais "gótico" de todos os poetas de seu tempo; ele acentua mais que qualquer outro a solidez de sua arquitetura estrófica". Esse aspecto "construtivo" da obra permite a Butor observar que "de todas essas análises, ressalta uma imagem do poeta bem diferente daquela que corre em nossos cabarés. Trata-se de uma obra erudita ao extremo, o que não a impede, tanto quanto a de Rabelais, de ser paródica e burlesca, carnavalesca, e não nos permite de modo algum recusar seu valor autobiográfico".
As questões postas pela lírica de Villon -a relação da obra com dados incertos da biografia, a mescla entre forma erudita, os temas da tradição, os episódios infames, a linguagem rebaixada, o personagem de contornos imprecisos que surge a partir dos poemas- são não somente o que a vivificam e a tornam duradoura, mas também o que a tornam desafiadora e intrigante tanto para seu próprio tempo quanto para o nosso.
No caso de sua tradução, todos esses elementos são realçados. E o foram no caso do excepcional trabalho realizado por Sebastião Uchoa Leite, agora reeditado. Há uma evidente afinidade (via ironia, sarcasmo, rispidez e o que mais) entre a obra poética do tradutor e a de Villon. Todavia, o complexo trabalho de tradução naturalmente não se produziria apenas graças a essa afinidade. A esclarecedora introdução e as minuciosas notas do tradutor revelam a carga de conhecimento especializado que uma empresa de tal porte exige. A massa de informações operacionalizadas e a perícia de tradução resultaram num trabalho que se insere no percurso das raras obras traduzidas que adquirem vitalidade na literatura com que passam a conviver.

Questões de tradução

A toda essa situação, porém, preside uma noção de tradução. Ela pode ser depreendida não somente a partir do resultado, mas também, em certa medida, da introdução ao trabalho. Todavia, o tradutor, posteriormente à primeira edição de seu trabalho, publicou um estudo intitulado "O Paradoxo da Tradução Poética. Notas Sobre o Pequeno e o Grande Jogo na Poesia de François Villon" (incluído em seu livro "Jogos e Enganos"). Enquanto, na introdução à tradução, cuida-se de apresentar a obra de Villon, nesse estudo posterior o tradutor se detém especificamente em questões da tradução.
Se não se estende preponderantemente sobre questões teóricas relativas a uma noção de tradução, discute o texto de Villon tendo em vista o trabalho de tradução a ser executado para dar conta desse texto. Sebastião Uchoa Leite desenvolve uma microanálise de várias passagens do texto de Villon, descendo a numerosas minúcias que exemplificam as dificuldades oferecidas, o trabalho desenvolvido e as soluções propostas. Naturalmente, do conjunto de dados apresentados e de seu comentário, depreende-se, se não uma teoria, uma posição crítica consistente em relação à tradução.
No que toca à concepção de tradução, dado importante é a informação, nesta reedição, de que o tradutor introduziu modificações neste novo texto. Elas não são de grande monta, no sentido de que não alteram grandes extensões de textos, nem trazem mudanças substanciais decorrentes de alteração da concepção de tradução. Trata-se, porém, de modificações em consonância justamente com a noção de tradução exposta pelo estudo e que se depreendem do trabalho realizado. As modificações, que em alguns casos podem se resumir apenas a acréscimo ou eliminação de uma vírgula, são, no entanto, em número considerável. Ocorrem na maioria dos poemas. Chegam a se constituir em substituição de palavras, em inversão na ordem de frases. Naturalmente, o objetivo foi melhorar o texto traduzido, o que se efetiva com a busca de uma palavra que capte melhor o sentido do original, com a eliminação de artigos que tornem o verso metricamente mais cerrado, e assim por diante.
Na primeira estrofe do "Legado", o verso "Que ouvir conselhos é prudente" passa a "Que pensar bem é mais prudente"; na segunda estrofe, o verso "Veio-me a vontade de romper" passa a "Veio-me o anseio de romper"; na terceira estrofe, o verso "Decidi. E a coisa foi feita" passa a "Decidi. E a ação foi feita". Na "Balada da Boa Doutrina", o verso "Vestidos, pregas femininas" passa a "E muitas outras vestes finas"; na estrofe 159 do "Testamento", os versos "Que tisna os mortos (é concorde; / Evitai o perigo que morde", passam a "Mancha os mortos, há quem discorde? / Evitai esse mal que morde".
O próprio texto de Villon, como todo texto, passou originalmente por tais modificações, que em sua produção serão certamente suposições, mas que no trabalho de edição de sua obra ao longo dos séculos surgem como decorrência do estudo dessa obra. As oscilações entre diferentes lições do texto têm equivalente (e continuidade) nas traduções que se sucedem, sobretudo se essas traduções são norteadas por princípios que encaram a tradução não apenas como uma transposição possível de elementos de determinado texto, mas como leitura criativa.

Crítica e versão

Em seu estudo "O Paradoxo da Tradução Poética", Sebastião Uchoa Leite, depois de afirmar a tradução como crítica e, portanto, como interpretação, sendo então a tradução uma forma de leitura do texto, "a leitura mais atenta a suas peculiaridades menos transparentes", afirma: "No caso da tradução enquanto interpretação, cada tradução é uma variação de um mesmo objeto". Essa variação tem, é claro, afinidades com as variantes que um texto apresenta ao longo de sua vida (seja durante seu processo de produção, seja durante sua vida pública, via cópias ou edições). Assim, na vida do texto, a tradução tem participação como produção de texto, no sentido em que Henri Meschonnic fala da tradução como texto, ou seja, que traduzir um poema é escrever um poema. A obra de Villon pode ser encarada como um processo -que Butor aponta como a subversão de aplicar uma forma erudita à linguagem popular (e não como uma deformação popular de uma linguagem erudita)- de exploração das possibilidades líricas, exploração que atravessa os séculos, moderna, problematizadora e renovadoramente (inclusive por meio das traduções, como a de Sebastião Uchoa Leite, que em sua árdua tarefa alcançam seu objetivo -o de se inserir nesse processo).

Júlio Castañon Guimarães é poeta e crítico, autor de "Matéria e Paisagem" (Sette Letras) e "Territórios/Conjunções: Poesia e Prosa Críticas de Murilo Mendes" (Imago).



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