São Paulo, Sábado, 11 de Dezembro de 1999


Envie esta notícia por e-mail para
assinantes do UOL ou da Folha
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Nossas cidades



Obra chama a atenção para desprezo pela estética urbana no Brasil
FLÁVIO VILLAÇA

A crescente urbanização do Brasil tem feito com que, cada vez mais, nossas cidades se tornem um cenário privilegiado para a observação e compreensão da moderna sociedade brasileira. Compreensão das políticas públicas, dos conflitos de classe, da exclusão social, da opressão da maioria excluída, da alienação de nossas elites diante de nossos problemas sociais, da chamada "violência urbana" e dos enormes desníveis de riqueza e poder político entre as classes sociais.
Esses processos tornam-se mais visíveis em nossas cidades e na ação do Estado sobre elas. Tão visíveis que é possível entender por que as elites brasileiras se segregam cada vez mais em espaços urbanos próprios, em condomínios fechados e shopping centers, numa única região geral das cidades. Para não enxergar a miséria e a injustiça que essas cidades exibem.
Nossa história urbana é não só a história da espoliação da maioria popular, mas também a da participação do Estado nessa espoliação, por intermédio das obras públicas que privilegiam os bairros dos mais ricos; da transferência dos órgãos públicos para esses bairros; da legislação urbanística que privilegia esses mesmos bairros; da história das prioridades na destinação dos recursos públicos -como, por exemplo, da priorização das obras que atendem ao transporte individual privado, em detrimento daquelas que atendem ao transporte público. Não menos eloquente é a história da habitação que nos revela que a população favelada do município de São Paulo passou de 1,1% da população total, em 1973, para 19,2%, em 1993.
A visão de nossa sociedade está apenas começando a ser feita, e "Urbanismo no Brasil: 1895-1965" é uma importante contribuição nesse sentido. Chama a atenção nesta obra o desprezo a que foi relegada a estética urbana nas últimas décadas. Do final do século passado às primeiras décadas deste, o "embelezamento" era uma função pública de maior destaque, presente em todos os programas de governo de nossas cidades. Nas décadas recentes, a estética passou a ser ignorada pelas administrações municipais, como mostram, por exemplo, os horrendos minhocões comuns em nossas metrópoles.
A construção de fontes, chafarizes, repuxos, estátuas, monumentos e jardins decorativos simplesmente extinguiu-se. Claro que a escultura mudou. No entanto, as obras de embelezamento urbano não mudaram. Simplesmente acabaram. Estaríamos diante do fim do amor por nossas cidades? O embelezamento urbano morreu e nada tomou seu lugar. Nossos artistas, poetas e cronistas não cantam mais nossas cidades nem suas ruas, como outrora cantaram a rua do Ouvidor, no Rio, ou a rua da Praia, em Porto Alegre... Ou melhor, quando cantam, falam de suas misérias e da destruição de suas coisas belas, como em "Sampa", de Caetano Veloso.

Falta de passado
O urbanismo retratado nesta obra, embora sendo uma atividade de elite, mostra a pobreza da cultura urbanística que herdamos de nossos colonizadores. A cidade brasileira, se comparada com outras metrópoles da América Latina, é uma cidade sem passado urbanístico, pois nossos colonizadores não só foram pobres, mas também pobres construtores de cidades.
Essa falta de passado urbanístico privou nossas cidades de uma cultura urbana que tenha influenciado gerações posteriores, de tal maneira que, mesmo nos séculos 19 e 20, os brasileiros produziram cidades urbanisticamente pobres. Isso passou de geração para geração, e nossas cidades não têm espaços urbanos com a qualidade, a monumentalidade e a riqueza (portanto, com a respeitabilidade social e a durabilidade) que têm a Cidade do México ou Buenos Aires. Nessas cidades, a herança de uma Espanha rica se fez sentir até hoje, através do século 19.

Urbanismo no Brasil: 1895-1965
Maria Cristina da Silva Leme Studio Nobel (Tel. 0/xx/11/257-7599) 600 págs., R$ 40,00



Compare-se, por exemplo, Salvador -especialmente construída por Tomé de Souza, em 1549, para ser a capital do Brasil- com a da Cidade do México, também de meados do século 16. Compare-se a monumental catedral dessa cidade, sua Plaza Mayor e seu Palácio Presidencial, com a atual Praça 15 de Novembro e o Paço dos Vice-Reis, no Rio. Incidentalmente, esse foi o único palácio construído pelos portugueses no Brasil, e a Praça 15, a única obra de urbanismo digna de nota. A Quinta da Boa Vista veio da casa de um ricaço doada a d. João 6º. Mesmo nossas igrejas eram ricas apenas na decoração, mas pobres na arquitetura e mais ainda no urbanismo e certamente na monumentalidade. Então, não é surpreendente que as tenhamos demolido, como aconteceu com a capela que marcou a fundação de São Paulo. Salvador foi capital do Brasil durante 214 anos. No entanto, os portugueses nela não construíram nenhum conjunto arquitetônico e urbanístico digno de nota.
Com tal passado, não é surpreendente que, no século 19, quase não tenhamos construído palácios envolvendo ou não grandes obras de urbanismo. Em São Paulo e no Rio, os palácios foram casas (ou edifícios) de milionários compradas pelo governo -Palácio Itamaraty, do Catete, Guanabara, Campos Elíseos, Morumbi etc. Consequentemente, não apresentam uma integração e uma importância urbanística comparáveis à da Casa Rosada de Buenos Aires ou à dos palácios presidenciais ou "plazas mayores" da Cidade do México ou de Lima. É significativo que o único conjunto urbanístico brasileiro, cívico e religioso, semelhante a uma "plaza mayor", esteja justamente em Porto Alegre, nossa metrópole de maior influência espanhola. Obras deste século (o palácio Piratini e a catedral da cidade), mas certamente resultado de uma herança dos tempos coloniais.
"Urbanismo no Brasil: 1895-1965" reúne material indispensável para a compreensão não só de nossas cidades, mas de toda a sociedade brasileira. Em primeiro lugar, mostra a formação de uma equipe com interesses comuns, investigando várias metrópoles e cidades, superando o isolacionismo que predominou em nossos historiadores urbanos nas últimas décadas.
Em segundo, revela um esforço ordenado na coleta de um material indispensável para incursões mais ambiciosas no pouco explorado campo de uma história urbana que supere a história da arquitetura. Finalmente, é uma obra de história que ajuda a produção da história, na medida em que fornece informações sobre centros de pesquisa, revistas especializadas e biografias de urbanistas importantes, informações essas de grande valia para outros pesquisadores.
0


Flávio Villaça é professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP.


Texto Anterior: Ricardo Fabbrini: Preto no branco
Próximo Texto: Henrique Fleming: Profecias e miragens
Índice

Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Agência Folha.