|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
A terceira via de Melsohn
A Psicanálise em Nova Chave
Isaias Melsohn
Perspectiva (Tel. 0/xx/11/3885-6878)
360 págs., R$ 44,00
BENTO PRADO JR.
Comecemos pelo coração da reflexão
de Isaias Melsohn sobre a metapsicologia: a reflexão sobre o estatuto epistemológico e ontológico do conceito de "representação inconsciente". O que importa sobretudo é a originalidade e a riqueza
dessa abordagem de um problema no entanto perfeitamente clássico. Como dizer
algo de novo depois de quase um século
de debate sobre o assunto? Desde já arrisco uma hipótese: a vantagem de Melsohn
foi justamente a de dissolver aporias aparentes por meio da clarificação dos conceitos básicos e conseguir, assim, passar
incólume entre duas formas unilaterais e
simétricas de "reduzir" o conceito de representação inconsciente.
Para amparar tal hipótese, é necessário
esboçar esquematicamente (apenas uma
épura) o horizonte histórico da questão.
Comecemos pelo pequeno e genial "Crítica dos Fundamentos da Psicologia",
que G. Politzer publicou em 1928 (aos 25
anos!). No que concerne a Freud, a tese,
que faria história, era clara e dura: a interpretação psicanalítica é o ponto arquimediano da psicologia do futuro, mas a metapsicologia não passa de uma costura de
noções metafísico-ideológicas a serem
dissolvidas pela crítica. O pecado mortal
da metapsicologia, implicado na idéia de
representação inconsciente, consiste no
seu objetivismo e nos seus esquemas explicativos "na terceira pessoa". Antes de
ser assimilada pela versão francesa da fenomenologia, especialmente de Maurice
Merleau-Ponty, a idéia central de Politzer
já havia sido incorporada na tese de doutoramento de 1932 (tese de psiquiatria,
não de psicanálise) de Jacques Lacan, embora nem o título da "Crítica" nem o nome do autor aí sejam mencionados.
A idéia de expressão
Mais tarde, Lacan, já psicanalista, há de
promover seu "retorno a Freud" e de se
empenhar (já contra Politzer) na reconstituição da necessária metapsicologia.
Mas, após breve namoro com a fenomenologia, encontraria, por intermédio de
Claude Lévi-Strauss, o bom caminho do
"estruturalismo", terminando por "despsicologizar" radicalmente a psicanálise.
Tratava-se de pensar a subjetividade do
sujeito descartando a idéia romântica e
"psicologista" de expressão.
Aquém do sujeito empírico e de sua expressão "fenomenal" está montada uma
estrutura que os explica e relativiza a ambos. Instalava-se assim -para além do
gênio e dos méritos indiscutíveis de Lacan- uma verdadeira ideologia da "autonomia do significante", que desqualificava qualquer forma de fenomenologia e
esvaziava de sentido noções como a de
"totalidade" ou de "expressão". Assim,
partindo de Politzer, mas restaurando a
metapsicologia que aquele condenara,
Lacan parece comprovar, à própria revelia, o diagnóstico do autor da "Crítica dos
Fundamentos da Psicologia": a metapsicologia está necessariamente ligada a
uma forma de pensamento objetivista e
formalista (pensemos nos famosos "matemas", onde terminamos por mergulhar), que não faz justiça à subjetividade
do sujeito e à prática da interpretação psicanalítica.
Ora, mesmo se recorre à fenomenologia (Sartre, Merleau-Ponty, M. Scheler),
Melsohn não precisa a ela se alinhar doutrinariamente para devolver significado e
função à noção de expressão, sem a qual
perde sentido a própria idéia de interpretação (como seria possível mostrar na
parte dois do livro, nas lições clínicas, se
para tanto dispuséssemos de espaço e da
necessária competência técnica). O forte
de sua tese -que ultrapassa o campo da
teoria e da prática da psicanálise- é que,
longe de opor-se, como na tripartição lacaniana (imaginário/real/simbólico), as
idéias de simbolismo e de função expressiva podem e devem ser entendidas como
rigorosamente complementares.
Trata-se de grande proeza, pois a dificuldade enfrentada é enorme. Para expor
a magnitude da dificuldade, recorro aqui
a um antigo texto de Michel Foucault: o
seu prefácio à tradução francesa de uma
obra de Biswanger, "Le Rêve et l'Existence" (Ed. Desclée de Brouwer, 1954). Ele aí
mostra o nó central da revolução freudiana na redefinição das relações entre significação e imagem. Ambiguidade que parece ser susceptível de duas -e apenas
duas- soluções insatisfatórias, como
Foucault exemplifica com a oposição simétrica Lacan/Melanie Klein: num caso,
uma teoria do simbolismo que apaga a
dimensão do imaginário, noutro caso,
uma teoria da fantasia que faz as vezes de
teoria do simbolismo.
Para Foucault, nesse contexto, a psicanálise existencial de Biswanger apareceria como uma espécie de correção do movimento interpretativo, em que a lacuna
aludida é de alguma maneira corrigida
com o recurso à fenomenologia. A teoria
husserliana da significação e da expressão (particularmente na 1ª e na 6ª "Investigações Lógicas") forneceria -sem
completar essa teoria ausente- instrumentos para a desejada teoria da imaginação como linguagem.
Roubo esse esquema de Foucault, para
situar a obra de Isaias Melsohn ou para
amparar a hipótese que estou lançando:
poderíamos dizer que, com nosso autor,
uma "terceira via" é aberta, como aquela
de Biswanger, mas com notáveis vantagens, do ponto de vista da filosofia. Como
pano de fundo, temos o duro debate entre Ernst Cassirer e Heidegger, em Davos,
1922. Sem deixar de recorrer à fenomenologia, Melsohn não é obrigado (como jamais foi de "bon ton") a recorrer a Heidegger para restabelecer uma ponte entre
significação, de um lado e, de outro, imaginação ou percepção (entre o que Kant
chamava de analítica e de estética).
De fato, o Cassirer mais maduro dos
anos 30, com a "Filosofia das Formas
Simbólicas", já tinha sido capaz de restabelecer a unidade da teoria crítica da razão, desarticulada, "disjecta membra",
no século 20 iniciante, entre a pura analítica (filosofia analítica) e a pura estética
(fenomenologia em sua forma final), restabelecendo a continuidade entre o mundo da vida (o famoso "Lebenswelt") e o
mundo objetivado pelo conhecimento
científico; quer dizer, já fora capaz, havia
tempos, de restabelecer a boa continuidade e a necessária descontinuidade entre percepção e expressão imediatas e o
conhecimento objetivo.
E Cassirer é capaz dessa proeza, afastando-se do seu mais puro neokantismo
de origem, aproximando-se surpreendentemente do próprio Hegel, recuperando, como etapa necessária à "Crítica
da Razão", alguma forma de "Fenomenologia do Espírito". Tratava-se, para ele,
de refazer a "Crítica" a partir da descrição
do pré-teórico: descrevendo as formas
mais primitivas da expressão e da simbolização (na percepção imediata e em sua
expressão mítica), podia-se descobrir
que nenhum abismo separa a subjetividade do sujeito da objetividade do objeto.
Mas, para descobri-lo, é preciso reconhecer a cumplicidade entre simbolização e
função expressiva, como o faz Melsohn,
na esteira do pensamento crítico. É preciso reconhecer, para além das ideologias,
que não podemos entender o mundo da
linguagem sem nos reportarmos ao pré-linguístico, assim como é preciso reconhecer que não há nada de pré-linguístico em termos absolutos, pelo menos para
um sujeito humano.
Uma forma viva
Noutras palavras, a contrapelo dos dualismos dominantes no século 20, Melsohn e S. Langer (por cuja obra, "A Filosofia em Nova Chave", nosso autor iniciou seu itinerário quase neokantiano,
que culmina em "A Psicanálise em Nova
Chave") permitem-nos dizer, com a ajuda do excelente Cassirer, que há algo como uma "forma viva", imanente às formas mais primitivas da experiência que
se revela também, mas "sublimada", nos
níveis mais altos da expressão artística,
anterior e posterior, portanto, ao funcionamento puramente objetivante do conhecimento científico. Não fora esse arco
inesperado, como compreender o pequeno Hans ou o curto-circuito pai/cavalo? É
bem com a ajuda de S. Langer e, sobretudo, de Cassirer que Melsohn nos abre essa "terceira via" da interpretação, para
além da falsa alternativa expressivismo
puro/formalismo puro.
Se, como insisti em vários lugares, a filosofia tem muito a aprender com a psicanálise, aqui vemos como um bom uso
da filosofia pode devolver vida à teoria e à
prática psicanalítica. Mesmo se essa revivificação vem necessariamente inquietar
as instituições guardiãs da ortodoxia
doutrinária ou ideológica, como mostra a
polêmica de Melsohn com a redação do
"International Journal of Psycho-Analysis". Mas, neste belo livro, o texto censurado e o próprio trabalho da censura vêm
a público e a um público mais amplo do
que teria, se veiculado pelo indigitado periódico.
Bento Prado Jr. é professor de filosofia na Universidade Federal de São Carlos e autor, entre outros
livros, de "Presença e Campo Transcendental"
(Edusp).
Texto Anterior: Inácio Araújo: Crítica de cinema Próximo Texto: Lygia Sigaud: A antropologia e o mundo aos pedaços Índice
|