UOL


São Paulo, sábado, 12 de abril de 2003

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Leia trechos do prefácio de Bento Prado Jr. a um livro de Jean-Paul Sartre a ser lançado em breve

A metafísica do romancista


Situações 1
Jean-Paul Sartre
Tradução: Cristina Prado
Cosac & Naify
(Tel. 0/xx/11/3218-1444)
320 págs., preço a ser definido

BENTO PRADO JR.

Publicada em 1947, esta coletânea de ensaios coroava então a fulgurante ascensão do prestígio intelectual de Sartre e a voga internacional do chamado "existencialismo" que já se haviam esboçado no imediato pós-guerra. É certo que a obra de Sartre, tanto a literária quanto a filosófica, já era conhecida e admirada, em círculos mais estreitos, desde a segunda metade da década de 1930 e que a publicação, em 1943, de "O Ser e o Nada" já havia incendiado mais de uma imaginação especulativa. Mas talvez seja com este livro, que reúne textos publicados entre 1938 e 1946, que o autor fixou sua imagem polêmica e fascinante para um público muito mais amplo, dentro como fora da França.
Para bem situar e ponderar a significação e o alcance de "Situações 1" são necessárias duas observações prévias: uma relativa à forma do ensaio, tal como aí a pratica, e outra relativa ao lugar desses ensaios na evolução de sua obra e de seu pensamento, considerados em sua totalidade. [..."
A prática do ensaio que se exprime neste livro não negligencia uma reflexão sobre sua forma: é o que se torna claro na abertura do texto consagrado a Georges Bataille: "Há uma crise do ensaio". Como já o fizera Lukács no início do século, em "A Alma e as Formas" (1911), e como faria Adorno, em "Notas de Literatura", o esforço crítico de Sartre é sempre acompanhado pela reflexão sobre a história desse gênero literário desde as origens do pensamento moderno e sobre seus impasses ou tropeços na cultura contemporânea.
Sendo diferentes, os diagnósticos de Sartre e de Adorno não deixam de ser, inesperada e involuntariamente, convergentes. Onde localizar o cruzamento dos escritos de autores tão diferentes, pelo menos à primeira vista? Seguindo a pista do Lukács pré-marxista, Adorno situa a miséria do ensaio contemporâneo -como que sem lugar entre pura teoria e literatura pura- sobre o fundo do malogro da "Aufklärung" na Alemanha. De sua parte, Sartre diagnostica a pobreza do ensaio contemporâneo na permanência do modelo de escrita fixado no século 18 pelo triunfo da "Aufklärung" na França: "Há uma crise do ensaio. A elegância e a clareza parecem exigir que usemos, neste tipo de obra, uma língua mais morta do que o latim: a de Voltaire".

A mediação do ensaio
A convergência não se limita ao fato de que ambos, aquém como além do Reno, situam o ensaio entre o conceito e a intuição poética, privilegiando sua função mediadora, dando-lhe um lugar semelhante ao que Kant atribuía à imaginação transcendental, que permite o comércio entre o entendimento e a sensibilidade. Além de privilegiar a função mediadora do ensaio (sem a qual, para manter o paralelo com a "Crítica da Razão Pura", o conceito é vazio e cega a intuição), ambos denunciam, na ausência do ensaio, a expressão cultural da alienação social que atravessa toda a sociedade contemporânea.
Essas práticas do ensaio, que trazem consigo uma visão histórico-crítica desse gênero literário, visam essencialmente, portanto, uma crítica do mundo presente. Entre a filosofia e a literatura, trata-se de recuperar o poder de verdade da literatura (mesmo nas formas pelas quais ela oculta a verdade de nossa experiência vivida) e de devolver à filosofia uma linguagem viva que ela perdeu na sua produção/reprodução intramuros nas instituições escolásticas.
Com os ensaios de Sartre, o que temos é a vontade de encontrar um "gênero" que elimine uma certa concepção por assim dizer "separatista" dos gêneros literários. Não se trata de confundir filosofia e literatura, mas de abrir caminho para uma filosofia que seja capaz de exprimir a experiência mais concreta e de valorizar uma literatura que nos permita ver melhor a nós mesmos e o mundo presente. Trata-se de encontrar, na filosofia, obras como as de Husserl, que nos levam para além da mera epistemologia e nos permitem redescobrir "o mundo dos artistas e dos profetas: assustador, hostil, perigoso, com portos seguros de graça e de amor"; ou, na literatura, romances como os de Dos Passos, Faulkner, Kafka ou Stendhal, que, mesmo propondo "mundos impossíveis", fazem um "bom uso" da contradição, velando-a e desvelando-a, ao mesmo tempo. [..]
Abstratamente assim fixado o lugar e a forma do ensaio no quadro geral de seu pensamento, cabe agora indicar o tempo de sua emergência no desenvolvimento da obra: numa palavra, situar historicamente "Situações 1", para mostrar sua posição privilegiada como ponto de acesso e introdução ao pensamento de Sartre.
Comecemos por um grosseiro, mas indispensável, esboço de cronologia, marcando dois períodos: 1933-1938 e 1938-1946. Trata-se, é claro, de mostrar o período da redação de nosso livro, marcando o que traz de novo em relação ao período anterior e sugerindo como aponta já para mudanças que ocorrerão essencialmente a partir do fim da década de 40.
O primeiro período começa com a descoberta da fenomenologia, através de seu colega Raymond Aron, e recobre o tempo da escrita e da publicação de textos tanto literários como filosóficos. Do lado da filosofia, Sartre publica "A Imaginação" e "A Transcendência do Ego" (ambos em 1936). Do lado da literatura, publica o romance "A Náusea" (1938) e alguns contos que aparecerão reunidos num único volume em 1939 sob o título de um deles: "O Muro". Nesse período tudo se passa como se o mesmo hiato que separa a filosofia da literatura se repetisse no interior do campo da própria filosofia.
Da mesma maneira pela qual a ficção está num espaço diferente do espaço do conceito, este último espaço está dividido pela linha rigorosa que separa o certo do provável ou a psicologia fenomenológica (ou pura) da psicologia empírica. [...]
Em contraponto a Espinosa e Hegel (no entanto seus irmãos de alma pensante), Sartre é obrigado a romper com o que definiria como uma "totalização" dogmática. O que é preciso contrapor aos melhores filósofos clássicos, de que nos alimentamos e com a ajuda dos quais pensamos nossa esquálida experiência do presente? Uma totalização sempre finita, incapaz de reabsorver a contingência ou a facticidade, ou ainda o que há de incontornável na subjetividade. Em linguagem mais cotidiana, é preciso explicar que, na iminência da guerra e sobretudo durante a experiência dessa violência absoluta, fomos obrigados a repensar a relação entre a essência e o fato, entre filosofia e política, ente filosofia e literatura, entre a filosofia e nós mesmos: o homem é aquilo que faz na sua contingente situação presente. Temporalidade e liberdade cruzam-se no presente vivo quando, projetando meu futuro, decido sobre o sentido de meu passado. Daí o privilégio do presente situado, onde o homem se divide entre seu poder e seu destino, entre sua liberdade absoluta e a contingência de sua condição histórico-social.

Arqueologia da sociedade
É essa articulação entre ontologia fundamental e situação histórica (só pensável sobre o fundo de uma filosofia que parte da contingência do ser) que permite a permeabilidade entre diferentes formas de linguagem e níveis de conceituação reunidos num movimento único em "O Ser e o Nada". Mas é também essa articulação que permite a Sartre operar a dupla proeza que realiza nesse livro e nos ensaios de "Situações 1": ao mesmo tempo, inventar uma forma de expressão literário-filosófica (a mesma que encontramos no grande tratado e nos ensaios escritos de 38 a 46) e pensar o momento em que escreve, situando essa nova forma sobre o fundo de uma verdadeira arqueologia da cultura e da sociedade européias, do fim do século 19 até a metade do século 20. [...]
Essa ligação interna entre a temporalidade vivida [...] e o tempo da história, através da idéia de "situação", definida em "O Ser e o Nada" (e que faz desse livro mais do que uma soma de materiais heteróclitos), essa "dialética" mostra-se de maneira direta nos diferentes ensaios de "Situações 1". Tratando de temas diferentes (filosofia, romance, poesia, história da cultura etc), em quase todos os ensaios encontramos o mesmo esforço de autocompreensão e de autocrítica, que exige que a reflexão passe necessariamente por uma anamnese da sociedade e da cultura francesas, principalmente a partir do "fin de siècle", mas sobretudo nas transformações das duas décadas do período do entre-guerras. [...]
Começando pelos ensaios consagrados à filosofia, sublinhemos: todos visam à reforma necessária do pensamento francês contemporâneo, situando-o em contraponto com o que havia de vivo em outras tradições, especialmente a do pensamento alemão. Um pouco como, numa década anterior (1928), o jovem Politzer lançara, como uma bomba, contra a tradição espiritualista da psicologia na França, seu livro "Crítica dos Fundamentos da Psicologia", os modelos da psicanálise, da psicologia da forma e do comportamentalismo (isto é, modelos respectivamente importados da Áustria, da Alemanha e dos EUA).
Antes de se impor a regra "pensar contra si mesmo", como exprimirá mais tarde, nestes ensaios Sartre investe contra a tradição em que foi formado. E é por tal razão que, dos ensaios especificamente "filosóficos" pelo objeto escolhido, limitar-nos-emos, aqui, a sublinhar apenas dois: o consagrado a Husserl, que Sartre mobiliza contra a filosofia universitária francesa, e, paradoxalmente, aquele consagrado a Descartes, o pai fundador da filosofia moderna, mas sobretudo o patrono reivindicado pela filosofia que combate no momento. Neste último caso, trata-se de uma operação perversa: roubar, ao adversário, sua arma mais forte, voltando-a contra ele. [...]
Mas é preciso passar da filosofia ao romance, que ocupa posição central nas "Situações 1". Mais da metade do volume é consagrada à análise desse gênero literário, onde está sempre presente um espírito polêmico, animado pela busca da forma de narrativa romanesca que corresponderia à melhor expressão da experiência contemporânea do mundo; ou melhor, que permitiria vermos o que está na cara e que, no entanto, não percebemos. Esquematicamente, poderíamos distribuir esses ensaios entre dois pólos: um positivo e outro negativo. O pólo negativo é muito claro: o texto demolidor dedicado a François Mauriac. A partir dele, poderíamos escolher vários contrapontos, nas avaliações críticas de diversos autores, cujas qualidades são sublinhadas por Sartre. Para simplificar escolhamos, como se fossem índices da direção anti-Mauriac, os ensaios dedicados a Faulkner. A escolha poderia ser diferente, mas, comparando esses ensaios, encontramos uma das linhas essenciais na determinação do mapa do mundo romanesco esboçado por Sartre. O positivo e o negativo são definidos em razão de duas categorias (internamente ligadas): temporalidade e liberdade.
Comecemos por uma advertência: é preciso, na leitura desses ensaios, evitar superpor os juízos críticos positivos e negativos a algo como uma oposição entre verdade e falsidade. Não é impossível seguir essa pista falsa, lendo mal frases como aquela, a propósito de Faulkner, em que Sartre diz: "Uma técnica romanesca sempre remete à metafísica do romancista. A tarefa do crítico é a de destacar esta última antes de apreciar a primeira". A frase, é claro, distingue a exposição da "metafísica" do romancista da apreciação de sua técnica, fazendo do julgamento da obra algo diferente da análise de seu sentido filosófico. Mas essa distinção não fica muito clara no ensaio polêmico contra Mauriac. A frase fulminante que encerra o artigo ("Deus não é artista: senhor Mauriac tampouco") parece derivar o juízo estético negativo de algo como uma concepção errada da liberdade e/ou da temporalidade. O ponto de partida é quase um axioma relativo à essência do gênero romanesco: "Não, não imagino Stravoguine, espero por ele, espero por seus atos, o fim de sua aventura. Essa matéria espessa que manipulo, quando leio "Os Demônios", é a minha própria espera, é meu tempo".

O inferno é o Outro
E é curioso verificar que Bergson (no entanto criticado, às vezes injustamente, em outras partes do livro) e sua noção de duração sejam opostos, aqui, à cegueira de Mauriac para a temporalidade e para a natureza da narrativa romanesca. Cegueira que está ligada a uma outra: àquela diante do abismo que separa radicalmente o ser-para-si do ser-para-outrem. Se "o inferno é o Outro", é porque seu olhar me objetiva, roubando-me o meu ser-para-mim e nenhuma ponte pode permitir a passagem de uma ótica para outra. Deus, é claro, poderia ver-me como me vejo e, ao mesmo tempo, como sou visto (digamos "behavioristicamente") por outrem. Mas, justamente, Deus não é artista...
A distinção essencial entre a reconstrução da "metafísica" do romancista e o esclarecimento das qualidades de sua técnica, no ensaio sobre Mauriac quase imperceptível, é visível em outros ensaios, como o consagrado à temporalidade nos romances de Faulkner. Em Faulkner, também, Sartre aponta para algo como uma "deformação" na descrição do movimento da "temporalização".
Na "metafísica" de Faulkner -ao contrário da de Sartre- o futuro (ou o "projeto") não tem qualquer privilégio. O tempo aparece como uma sucessão de passados, como uma bela metáfora de Sartre caracteriza a temporalidade vivida pelos personagens desse romancista: "Parece que podemos comparar a visão de mundo de Faulkner à de um homem sentado num carro aberto e que olha para trás. A cada momento sombras disformes surgem à sua direita, à sua esquerda, lusco-fusco, tremores difusos, confetes de luz que não se tornam árvores, homens, carros, senão um pouco mais tarde, com o distanciamento".
É claro que tal descrição da experiência vivida do tempo vem chocar-se com a concepção própria de Sartre, que não pode concordar com sua metafísica implícita. Mas isso não o impede de reconhecer o poder de verdade dessa técnica narrativa. Pois ela aponta, aquém ou além da metafísica, para as condições sociais de nossa vida presente. Trata-se da experiência de um futuro barrado, da descrição de um mundo "que morre de velhice" e onde sufocamos. [...]
Para terminar por onde começamos: é preciso ler e reler os ensaios de Sartre. É preciso fazê-lo sem pressa, muito devagar, para poder retomar a questão, agora em nova forma, já que não se pode mais falar nem sequer de uma "crise do ensaio". Esse gênero está, hoje, em estado terminal, agonizante. Ele foi substituído pelo gênero "trash" do "paper", inventado pela universidade norte-americana (segundo o lema "publish or perish") e multiplicado pela indústria dos congressos no mundo globalizado.

Bento Prado Jr. é professor de filosofia da Universidade Federal de São Carlos (SP) e autor, entre outros livros, de "Alguns Ensaios" (Paz e Terra).


Texto Anterior: Renascença plural
Próximo Texto: Design à brasileira
Índice

UOL
Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.