São Paulo, Sábado, 12 de Junho de 1999
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Os bardos da nação

LILIA MORITZ SCHWARCZ

Não foram poucos os momentos em que grupos de intelectuais e políticos reuniram-se em torno de certos órgãos com o objetivo de pensar a nação. Também é certo que, em determinados contextos da história, criaram-se modelos ou arriscaram-se diagnósticos para o país, de forma ainda mais premente. Nos anos posteriores à independência, e em torno do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, a elite carioca encontrou espaço para desenhar um Império nos trópicos, refletir sobre novos ícones nacionais, que encontravam no indígena romântico e nas florestas virginais símbolos de autenticidade e origem. Já no ocaso da monarquia, novos expoentes se apresentam tendo no realismo e na crítica à mestiçagem temas em que reconheciam uma nova nacionalidade.
Também a intelectualidade brasileira de finais do século 19 e inícios do 20 procurou refletir sobre sua nação, buscando encontrar o que havia de mais comum e específico em sua conformação. A pesquisa incessante de elementos que pudessem particularizar o país deu a esses intelectuais um perfil quase que missionário, já que esses personagens tomaram para si o papel de "bardos", cuja reflexão tomava uma forma de instrumento de combate e (boa) ação.
Dentro desse perfil, a escolha que fez Tania Regina de Luca, ao analisar a "Revista do Brasil", não poderia ser mais oportuna. Fundada e editada por Júlio Mesquita em 1918, quando a direção passa para as mãos de Monteiro Lobato, esse mensário tornou-se a principal publicação de caráter cultural da República Velha. A revista circulou de forma ininterrupta durante sua primeira fase -1916-25- quando, com a falência de Lobato, é adquirida por Assis Chateaubriand, que passa a editá-la no Rio.
A partir de então a publicação teria várias direções e formatos, mas essa é outra história. Na verdade, a autora de "Um Diagnóstico" selecionou a primeira fase paulista da revista como foco de análise, período em que um grupo mais coerente de intelectuais congregou-se em torno da publicação que serviu para que se debatessem temas que envolviam a "realidade nacional".
É sobretudo a partir da direção de Lobato -além de proprietário, também seu colaborador mais assíduo- que a revista multiplica pontos de venda, torna-se aberta aos temas do momento, assim como funciona como vitrine para os projetos e o culto à personalidade do próprio Lobato. Mas, se a revista teve sua marca, não ficou resumida à imagem desse intelectual. Tendo como meta enfrentar a crise em que se via mergulhado o país e na tentativa de encontrar saídas para o futuro, na "Revista do Brasil" um amplo grupo de articulistas discutia um temário vasto. A geografia deixava de ser reduzida à sua condição de simples "nominata" e passava a significar um argumento poderoso para imaginar o porvir. Por meio da história, refletia-se sobre a juventude do país ou preparava-se a "consciência nacional". Na verdade, reabilitava-se a geografia e o passado procurando investir numa leitura confiante de nossa origem, ou mesmo na afirmação da imagem de um povo aguerrido e heróico, simbolizado na figura do Bandeirante, aquele que restituía positividade ao período colonial e dava primazia a uma história paulista.

A Revista do Brasil: Um Diagnóstico para a (N)ação
Tania Regina de Luca Ed. da Unesp (Tel. 011/232-7171) 322 págs., R$ 29,00



A velha questão racial encontrava acolhida na revista. A descrença na composição mestiçada da população, a ausência de uma base étnica estável e a conclusão de sua fragilidade, faziam com que, na "Revista", essa "falta" se transformasse em nosso maior problema, atestado em todos os aspectos da vida nacional. Mas Tania de Luca faz mais. Percebe oscilações desse tipo de discurso que, a partir dos anos 1910/20, passa a ver a miscigenação com novos olhos, na medida em que a interpretação apoiava-se em princípios agora higiênicos. Significativa nesse sentido é a "conversão" de Jeca Tatuzinhos, que aparece associado a Fontoura, um pioneiro da indústria farmacêutica nacional. Com a divulgação do Biotônico e demais produtos do laboratório contra verminoses, as prescrições eugênicas infiltram-se no cotidiano -de uma interpretação racial migrava-se para uma explicação sanitária do tema. O caipira não "era" assim, mas "estava" assim.
Mas, se as temáticas eram variadas, como bem mostra a autora, acima de todas essas dimensões, São Paulo é que parecia estar em questão. Afinal, junto com a representação de um local próspero, berço do café, palco da independência e habitado por uma raça superior -manifesta na própria figura do Bandeirante-, somava-se a imagem do guardião da língua dos descobridores, pura apenas nesse local. Fazendo jus às pretensões da elite, que tencionava conduzir politicamente o país, a "Revista" afirmou-se como porta-voz da paulistanidade, que nunca negou a origem do empreendimento.
Enfim, o maior mérito de Tania de Luca está em reler a revista a partir de seus diferentes ângulos de análise. No entanto, o acerto do recorte carrega também armadilhas. A autora dá tal centralidade à publicação que acaba por condicionar, em alguns momentos, todos os embates a esse local. Principalmente quando o livro se remete ao tema racial, fica difícil discernir entre a produção local e o debate realizado alhures. Além disso, ilumina-se de tal maneira o cenário selecionado que mal se percebe como a publicação também funcionava como veículo em que se escoavam temas e perspectivas presentes de forma anterior, e talvez mais complexa, em outros estabelecimentos. A análise ganharia em amplidão se estabelecesse relações mais evidentes com a reflexão que se realizava em outras instituições, como as faculdades de medicina e de direito, os museus de etnografia de onde provinha boa parte desses mesmos intelectuais.
No contexto paulista, mais particularmente, é relevante a atuação do Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo, que, ao questionar a preponderância carioca nessas searas, passava a definir a história do país como um empreendimento paulista e de seus bandeirantes. Isso para não falar da Escola de Direito ou do Museu Paulista, que pretendiam acumular para São Paulo símbolos de cultura e de tradição, até então monopolizados pelos centros do Rio. Nesses estabelecimentos o debate, ora mais darwinista, ora mais liberal, dividiu essa intelectualidade que sempre acreditou que fazer ciência era imiscuir-se, diretamente, nos destinos da nação.
Colocada assim, em contexto, a "Revista do Brasil" talvez diga ainda mais. Fala de forma exponencial da afirmação de uma nova hegemonia cultural e de uma geração que fez a cama, mas não puxou os lençóis. Nada como a modernidade cantada antes de seus mais conhecidos sinaleiros.


Lilia Moritz Schwarcz é professora de antropologia na USP e autora de "As Barbas do Imperador" (Companhia das Letras).


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