São Paulo, Sábado, 12 de Junho de 1999
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Dois olhares profanos



São editados no Brasil livros de história da arte da Pelican que marcaram os anos 60
LORENZO MAMMÌ

Na década de 60, a Pelican History of Art foi um marco na editoria de livros de arte. Atendia a um novo tipo de público e contribuía para criá-lo. A arte estava se tornando (ou voltava a ser) um fenômeno de massa, depois da época gloriosa, mas muito seletiva, do formalismo e das vanguardas. John Kennedy patrocinava com alarde a vinda da "Mona Lisa" para os EUA. Andy Warhol e Robert Rauschenberg gozavam do estatuto de verdadeiras estrelas, aproveitando a brecha aberta por Jackson Pollock, primeiro artista americano a se tornar, ainda que postumamente, um objeto de culto. É a época do livro ilustrado, do slide, do cartão postal, que põe à disposição do público grande quantidade de imagens de arte, graças a um bombardeio parecido com o da publicidade.

Livros austeros
Nesse quadro, os livros da Pelican não se ofereciam como objetos particularmente sedutores: ao contrário, eram bastante austeros, com suas capas severas, cor de tijolo, e os textos ilustrados por grandes pranchas em branco e preto. Mas eram consequência do mesmo processo, na medida em que se propunham organizar e tornar compreensível essa enorme massa de informações que de repente se tornara disponível. Não era literatura de divulgação, nem propriamente científica, mas uma espécie de termo médio: textos sólidos, completos, baseados na confiança tipicamente anglo-saxônica na empiria do fato demonstrável. Algo como um chão firme, sobre o qual se apoiar para aprofundamentos ulteriores. Trinta anos depois, a Yale University reedita a série, com texto ampliado e novas ilustrações, e a Cosac & Naify a publica no Brasil. Sinal que os princípios básicos da coleção são válidos ainda hoje e que, ainda hoje, esses livros "funcionam".
O ponto forte da coleção é a capacidade de estabelecer relações convincentes entre grandes personalidades e figuras menores e de traçar, por essa via, o perfil dos estilos enquanto patrimônio visual coletivo. São vários os caminhos pelos quais uma cultura artística pode ser entendida. No volume sobre a pintura holandesa, não é anedótico informar que Jan Steen era dono de uma cervejaria; que Van Goyen comerciava bulbos de tulipa; que Hobbema quase abandonou a pintura, quando nomeado provador de vinho da aduana de Amsterdã; e assim por diante.
Da mesma forma, no volume sobre a arte francesa no século 18, não são inúteis as informações sobre os percursos tortuosos dos artistas, entre concursos na Academia, encomendas do Estado, salões, bolsas de estudos. É por essas vias que é possível entender, no primeiro caso, o olhar totalmente desprovido de sacralidade pelo qual os holandeses do Século de Ouro encaravam sua própria arte, uma atividade como qualquer outra; e, no segundo caso, é possível reconhecer a vocação pública da arte francesa do século 18, que é um exercício oratório altamente elaborado, mesmo quando se pretende coloquial.

Franceses e holandeses
Com efeito, se abordadas do ponto de vista do sistema de produção, os artistas holandeses dos séculos 17 e 18 parecem se colocar no pólo oposto ao dos franceses do mesmo período. No entanto, lendo os volumes da Pelican cuidados por Seymour Slive e Michael Levey, descobre-se uma rede densa de ligações, como se, num determinado momento da história, tivesse havido uma passagem de tocha entre uma cultura e outra. O caráter burguês e profano da arte, que na Holanda brotava naturalmente de um sistema de guildas artesãs, na França se torna objetivo político, buscado teoricamente pelos filósofos iluministas e realizado na prática pelos primeiros salões, pelas primeiras críticas nas gazetas, pelos primeiros projetos de museu público.
Talvez o momento exato dessa transição possa ser situado em 1713, quando a Paz de Utrecht encerrou a Guerra de Sucessão Espanhola. A partir desse momento, a Holanda ficaria confinada a um papel secundário na política e na economia européia, enquanto França e Inglaterra assumiriam definitivamente as rédeas do continente. E, na França e na Inglaterra, justamente, começa a se cristalizar uma arte burguesa com características modernas, a partir de exemplos holandeses e flamengos e em oposição aos estilos, clássico ou barroco, dos italianos. Não é, naturalmente, um processo linear, nem unívoco: na formação do neoclassicismo revolucionário francês, Roma pesou mais do que Amsterdã. Mas estamos, nesse caso, no ponto terminal de um processo, que começa, bem no início do século, com a moda francesa e inglesa do rubenismo e do rembrandtismo, contra o classicismo "grand siècle" inspirado em Poussin. O neoclassicismo, nesse sentido, não foi uma volta a Poussin, mas a negação de uma negação, que é sempre síntese.
No século 18, Watteau e Chardin foram os que melhor entenderam a pintura holandesa, assim como Reynolds e Gainsbourough, na Inglaterra, foram os que melhor entenderam os flamengos. No entanto, a grande densidade da pintura holandesa do século 17 -a de Rembrandt, Hals, Ruisdael, Vermeer- não é reproduzida senão raramente. Watteau e Chardin (ou até Fragonard) traduzem, de fato, essa grande tradição, mas também a colocam num outro plano. Seymour Slive mostra como a maioria dos quadros holandeses que nos parecem meramente descritivos tinham, na verdade, um segundo significado: as naturezas mortas eram "vanitas", reflexão sobre o perecimento dos prazeres terrenos; as cenas de taverna eram, em muitos casos, variações sobre o tema do filho pródigo; e as tempestades eram metáforas sobre a precariedade da vida. O público da época reconhecia facilmente o subtexto da imagem, mas seria muito ingênuo supor que se limitasse ao significado simbólico, e não atribuísse valor à visão sensualmente prazerosa de frutas tão saborosas, beberrões tão divertidos, ondas tão espetaculares.

Significado ético
Nessa tensão entre o valor atribuído à evidência sensual e a consciência de um imperativo moral que se sobrepõe aos sentidos, a pintura holandesa construiu sua grandeza. Mesmo quando a leitura metafórica é difícil ou impossível (Slive lembra, com muito bom senso, que às vezes um charuto é apenas um charuto), o significado ético está à vista. As árvores e os moinhos de Ruisdael possuem vontade própria: são heróis, não adereços da paisagem; erguem-se, não são postos. Na famosa "Vista de Haarlem", do mesmo pintor, a catedral compacta confere um sentido à paisagem achatada e ao mesmo tempo desafia o céu enorme, que ocupa dois terços da tela. Nunca, talvez, foi tão bem ilustrada a idéia de Heidegger segundo a qual um templo é uma construção que funda um mundo e ao mesmo tempo o reconduz a sua matriz primitiva, à Terra.

Pintura Holandesa - 1600-1800
Seymour Slive Tradução: Miguel Lana e Octacílio Nunes 379 págs., R$ 84,00

Pintura e Escultura na França - 1700-1789
Michael Levey Tradução: Cid Knipel Moreira 318 págs., R$ 92,00



Quanto a Rembrandt, nem precisaria de análise iconográfica: a luta entre o bem e o mal já é evidente no claro-escuro, no esforço das coisas em se manter à luz e escapar da sombra. A luz, para Rembrandt, não é algo que despenca impiedoso sobre os corpos e os desvela, segundo escolhas que só a Providência entende, como em Caravaggio -é uma conquista individual, precária e incerta, que demanda tensão e atenção contínuas. Na Holanda do Século de Ouro, todas as atividades possuem um conteúdo ético, todas contribuem para o caminho do homem rumo à salvação. A pintura não é diferente das outras, a não ser nisso: nela, o conteúdo ético se torna auto-evidente, reflexivo. O lugar em que essa reflexão se revela com maior intensidade é o auto-retrato. Rembrandt pintou seu rosto inúmeras vezes: uma vez, quando jovem, nas vestes do filho pródigo; uma outra, já velho, como Zêuxis, o pintor que literalmente morreu de rir ao pintar uma velha. Entre esses dois pólos, a sequência dos auto-retratos de Rembrandt formam uma das autobiografias mais lancinantes que já tenham sido escritas.

Sexo verbalizado
Transferida para o ambiente francês, a questão, de ética, se torna moral: o que está em jogo já não é a Graça, mas os costumes; não o Bem e o Mal, mas o comportamento social. A ordem que organiza os quartos de Vermeer é uma ordem cósmica, e a luz que banha suas figuras é a luz da Razão; a ordem dos quartos de Chardin é uma ordem doméstica, e sua luz é a luz da Civilização -ninguém como Chardin, aliás, soube dar à palavra "civilização" um significado tão íntimo e convincente. As grandes árvores de Watteau não são heróis, mas caracteres. As personagens que povoam seus quadros, diferentemente das figuras holandesas, não sentem a sensualidade como risco. Estão bem acomodadas em seus corpos elegantes, ainda que uma certa melancolia testemunhe uma interioridade complexa. Não obedecem a um imperativo moral, mas aceitam um conselho: "Sigam suas naturezas".
À medida que avança no século, a arte francesa perde toda escuridão. O corpo se torna discurso; tudo, até o sexo, é verbalizado. A consequência mais evidente é um ar de excitação erótica difusa: qual outra época representaria uma rainha com o decote aberto e a "lingerie" à vista, como fez Lecomte com Maria Antonieta? E em qual outro país poderia se colocar, como fez Mignot, uma bacante adormecida sobre um colchão moderno, retirando assim de sua nudez toda defesa mitológica e clássica?
A "pruderie" erótica e a transparência do desejo chegam ao limite na pintura uniformemente luminosa, até nas sombras, de Boucher e Fragonard. As peles são tão diáfanas que impossibilitam qualquer expressão; os bosques, tão acolhedores que nos repelem. Ninguém gostaria de viver em tão permanente alegria; falta uma sombra borrada à Watteau, para se apartar um momento da festa. O caminho está aberto para a escuridão profunda de Jacques-Louis David: escuridão dramática, por certo, mas ela também discursiva, oratória, totalmente civilizada.


Lorenzo Mammì é crítico de arte e professor na Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP.


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