São Paulo, sábado, 12 de setembro de 1998 |
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice O poeta impossível
YUDITH ROSENBAUM
A destruição do mundo perfeito, herdado das culturas estranhas ao poeta ("o urso de Nürnberg,/ (...)/ o carrinho português/ (...)/ o polichinelo italiano/ (...)"), possibilita a emergência de um universo outro, que aponta inicialmente para a brasilidade das imagens: "Brinca com sabugos de milho,/ caixas vazias,/ tacos de pau,/ pedrinhas brancas do rio.../ (...) / E os tacos que deveriam ser/ soldadinhos de chumbo são/ cangaceiros de chapéus de coro...". Mas não só. O que parece também estar em jogo é a impossibilidade de um repouso ("Xô!Xô! Pavão!/ sai de cima do telhado/ Deixa o menino dormir/ Seu soninho sossegado!"), após revirar o mundo, extraindo da matéria bruta novos e diversos significados. Os objetos se transformam sob a influência da emoção lírica, que desfigura seres e coisas, para que o poeta deles se aproprie: "E os sabugos de milho/ Mugem como bois de verdade...". O menino, que brinca "com o mundo maravilhoso/ que ele tirou do nada", está sozinho enquanto todos dormem. Talvez essa solidão seja a própria condição da existência da poesia, que se afasta do que é familiar para experimentar o frescor do novo. Mas que "pavão" é esse que não deixa o menino dormir? É a própria infância que se vê ameaçada por esse símbolo da perfeição destruída para que o humano poético surja. Símbolo, ainda, e por outra visada, do material inconsciente que alimenta e atormenta a pulsão poética, pedindo expressão. Esta ressurge nos versos de "Livro de Sonetos" (1949): "Tempo de infância, cinza de borralho/ tempo esfumado sobre vila e rio/ e tumba e cal e coisas que eu não valho,/ cobre isso tudo em que me denuncio". Esse menino, que dialetiza com o mundo como um artista moldando o barro, sugere-nos uma cena emblemática da psicanálise: a brincadeira do "Fort da", jogo infantil de uma criança observada por Freud, que brinca de fazer desaparecer ("fort", do alemão "ir embora") e reaparecer ("da", que significa "ali") um carretel preso a um cordão. A interpretação freudiana revela que o menino se compensava da partida da mãe, reencenando ele mesmo o desaparecimento e o seu retorno. No caso do poema, não estaria o poeta, afastado de tudo e de todos, exercitando o seu domínio ativo de um mundo que ele destrói e constrói sozinho como senhor absoluto? O tempo perdido da infância guarda as experiências mais essenciais. Daí, talvez, tantas tentativas de Jorge de Lima em resgatá-las -pintura, romance, fotomontagem-, todas insuficientes, afinal, na busca proustiana das vivências fundamentais. Uma delas não seria o suicídio inexplicável da ama negra que cuidou do poeta? Em "Ancila Negra", de "Poemas Negros" (1947), ecoa a experiência irrespondível e atordoante: "(...) Há muita coisa a recalcar e esquecer:/ o dia em que te afogaste,/ sem me avisar que ias morrer,/ negra fugida na morte/ contadeira de histórias do teu reino.(...)". A última estrofe acena para o que carece de significação: "Depois: nunca mais os signos do regresso./ Para sempre: tudo ficou como um sino ressoando". O poeta reconhece a cal encobridora, "cinza de borralho", como se fosse impossível revelar um tempo de desejos, enevoados pela própria poesia que os denuncia no som ininterrupto do sino/signo. Diferentemente de Manuel Bandeira, que ritualizou os lutos e fez da ausência a matéria prima de sua criação, Jorge de Lima parece incapaz de se aproximar de seus núcleos traumáticos e apaziguar-se no repouso dos versos. Ao contrário, sua poesia envereda, labiríntica, pela pletora imagística. As perdas se disfarçam na plenitude (inalcançável) das formas plurais dos significantes em eterna metamorfose. Ou, como diz Mário Faustino, "(...) Jorge dá todas as mostras de um desespero de mágico incapaz de fazer o coelho sair do chapéu". O "impulso de dominação" do que se mostra rebelde à significação se frustra, embora seja, paradoxalmente, uma das molas propulsoras da poesia jorgiana. De fato, não foi possível ao poeta revelar seu próprio mundo impossível nem decifrar o que lateja no escuro. Em Jorge de Lima, Orfeu desce aos infernos para se esconder da luz. Yudith Rosenbaum é psicóloga e autora de "Manuel Bandeira: uma Poesia da Ausência" (Edusp/Imago). Texto Anterior | Próximo Texto | Índice |
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