São Paulo, sábado, 12 de setembro de 1998

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O poeta impossível

YUDITH ROSENBAUM

Mário de Andrade, em 1939, afirmou: "Jorge de Lima é um mundo de contradições por explicar e de dificuldades por resolver", constatando, assim, a complexa personalidade do chamado "príncipe dos poetas alagoanos". É oportuno percorrer um pouco essas contradições a partir das recentes reedições de sua "Poesia Completa" e de quase todos os romances (pouco conhecidos do público), pela Civilização Brasileira, como "A Mulher Obscura" (1939) e "Calunga" (1935).
O "caso Jorge de Lima" é desafiador em vários sentidos, como nos mostra a leitura atenta da "Fortuna Crítica", que acompanha a edição das poesias. Há muitas divergências entre os ensaios incluídos na edição, como também entre outros críticos importantes dela excluídos. O primeiro desafio que enfrentamos é encontrar, na diversidade das experiências poéticas de Jorge de Lima, uma unidade temático-estilística que o caracterize. Para Alfredo Bosi, por exemplo, o caráter unitário da obra residiria no que chamou de sentimento "organicamente lírico, isso é, enraizado na própria afetividade mesmo quando aparente dispersar-se em notações pitorescas, em ritmos folclóricos, em glosas dos grandes clássicos". Já Otto Maria Carpeaux considerou Jorge de Lima um poeta "em caminho" e sua poesia uma espécie de "work in progress". Mais recentemente, após longo silêncio da crítica, Fábio de Souza Andrade mostrou, em rigoroso ensaio, que a poesia propriamente metafísica do poeta nasceria da descoberta "do conflito entre a experiência da pluralidade sensível do mundo e a idéia de uma fonte transcendente única e acima das contingências do tempo".
São todas tentativas de articular as aparentes descontinuidades da obra do poeta, que caminha do neoparnasianismo dos "XIV Alexandrinos" (1914), ao surrealismo épico de "Invenção de Orfeu" (1952), passando antes pela descoberta modernista em 1925 e pela escrita católica da obra "Tempo e Eternidade" (em parceria com o amigo e poeta Murilo Mendes, em 1935), religiosidade reafirmada em "A Túnica Inconsútil" (1938). Um outro desafio refere-se a uma certa impenetrabilidade das imagens, o que rendeu ao poeta a fama de hermético e até de barroco, e que ainda hoje afasta leitores mais apressados.
Elegeu-se, aqui, um possível mirante do percurso do autor, capaz de condensar algumas de suas importantes contradições. Trata-se do poema de adesão ao modernismo, "O Mundo do Menino Impossível", publicado em "Poemas" (1927). A partir desse centro irradiador, delineiam-se algumas pulsões de onde emergem sua poesia, bem como uma relação problemática de Jorge de Lima com o "moderno" na literatura, tensão que é marca de sua escrita.
O poema em questão nasceu como paródia de "Evocação do Recife", de Manuel Bandeira, publicado em "Libertinagem" (1930). No entanto, a pilhéria logo significou alforria em relação aos cânones retóricos, custando ao poeta a perda da coroa real conquistada com o soneto "O Acendedor de Lampiões". A arte modernista impulsiona o poeta, à sua revelia, ao mundo inusitado da fala coloquial, da temática cotidiana, do desregramento gramatical que afronta o academismo. Pode-se dizer que a adesão ao moderno ajudou a corrigir a tendência escultórica excessiva de um poeta (também pintor e escultor), que esgrimia versos para tamponar a poesia. A corrente imagética, construída pela enumeração de 74 versos cursos, mimetiza a vivência infantil e sua lógica particular. Na "boquinha da noite", enquanto as demais "crianças mansas dormem", (...) "ainda vela/ o menino impossível/ aí do lado (...) O menino impossível/ que destruiu/ os brinquedos perfeitos/ que os vovôs lhe deram".

A OBRA
Poesia Completa
Jorge de Lima
Oraganização e Introdução de Alexei Bueno
Nova Aguilar (tel. 021/537-8275)
904 págs. R$ 73,00



A destruição do mundo perfeito, herdado das culturas estranhas ao poeta ("o urso de Nürnberg,/ (...)/ o carrinho português/ (...)/ o polichinelo italiano/ (...)"), possibilita a emergência de um universo outro, que aponta inicialmente para a brasilidade das imagens: "Brinca com sabugos de milho,/ caixas vazias,/ tacos de pau,/ pedrinhas brancas do rio.../ (...) / E os tacos que deveriam ser/ soldadinhos de chumbo são/ cangaceiros de chapéus de coro...".
Mas não só. O que parece também estar em jogo é a impossibilidade de um repouso ("Xô!Xô! Pavão!/ sai de cima do telhado/ Deixa o menino dormir/ Seu soninho sossegado!"), após revirar o mundo, extraindo da matéria bruta novos e diversos significados. Os objetos se transformam sob a influência da emoção lírica, que desfigura seres e coisas, para que o poeta deles se aproprie: "E os sabugos de milho/ Mugem como bois de verdade...". O menino, que brinca "com o mundo maravilhoso/ que ele tirou do nada", está sozinho enquanto todos dormem. Talvez essa solidão seja a própria condição da existência da poesia, que se afasta do que é familiar para experimentar o frescor do novo. Mas que "pavão" é esse que não deixa o menino dormir?
É a própria infância que se vê ameaçada por esse símbolo da perfeição destruída para que o humano poético surja. Símbolo, ainda, e por outra visada, do material inconsciente que alimenta e atormenta a pulsão poética, pedindo expressão. Esta ressurge nos versos de "Livro de Sonetos" (1949): "Tempo de infância, cinza de borralho/ tempo esfumado sobre vila e rio/ e tumba e cal e coisas que eu não valho,/ cobre isso tudo em que me denuncio".
Esse menino, que dialetiza com o mundo como um artista moldando o barro, sugere-nos uma cena emblemática da psicanálise: a brincadeira do "Fort da", jogo infantil de uma criança observada por Freud, que brinca de fazer desaparecer ("fort", do alemão "ir embora") e reaparecer ("da", que significa "ali") um carretel preso a um cordão. A interpretação freudiana revela que o menino se compensava da partida da mãe, reencenando ele mesmo o desaparecimento e o seu retorno. No caso do poema, não estaria o poeta, afastado de tudo e de todos, exercitando o seu domínio ativo de um mundo que ele destrói e constrói sozinho como senhor absoluto? O tempo perdido da infância guarda as experiências mais essenciais. Daí, talvez, tantas tentativas de Jorge de Lima em resgatá-las -pintura, romance, fotomontagem-, todas insuficientes, afinal, na busca proustiana das vivências fundamentais.
Uma delas não seria o suicídio inexplicável da ama negra que cuidou do poeta? Em "Ancila Negra", de "Poemas Negros" (1947), ecoa a experiência irrespondível e atordoante: "(...) Há muita coisa a recalcar e esquecer:/ o dia em que te afogaste,/ sem me avisar que ias morrer,/ negra fugida na morte/ contadeira de histórias do teu reino.(...)". A última estrofe acena para o que carece de significação: "Depois: nunca mais os signos do regresso./ Para sempre: tudo ficou como um sino ressoando". O poeta reconhece a cal encobridora, "cinza de borralho", como se fosse impossível revelar um tempo de desejos, enevoados pela própria poesia que os denuncia no som ininterrupto do sino/signo. Diferentemente de Manuel Bandeira, que ritualizou os lutos e fez da ausência a matéria prima de sua criação, Jorge de Lima parece incapaz de se aproximar de seus núcleos traumáticos e apaziguar-se no repouso dos versos. Ao contrário, sua poesia envereda, labiríntica, pela pletora imagística. As perdas se disfarçam na plenitude (inalcançável) das formas plurais dos significantes em eterna metamorfose. Ou, como diz Mário Faustino, "(...) Jorge dá todas as mostras de um desespero de mágico incapaz de fazer o coelho sair do chapéu". O "impulso de dominação" do que se mostra rebelde à significação se frustra, embora seja, paradoxalmente, uma das molas propulsoras da poesia jorgiana.
De fato, não foi possível ao poeta revelar seu próprio mundo impossível nem decifrar o que lateja no escuro. Em Jorge de Lima, Orfeu desce aos infernos para se esconder da luz.


Yudith Rosenbaum é psicóloga e autora de "Manuel Bandeira: uma Poesia da Ausência" (Edusp/Imago).



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