São Paulo, sábado, 12 de setembro de 1998 |
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VERA DA SILVA TELLES
Mas é por isso também que a atual situação de vulnerabilidade social reabre a aporia fundadora de nossa modernidade. A questão social, diz Castel, "é a aporia fundamental sobre a qual uma sociedade experimenta o enigma de sua coesão e tenta conjurar o risco de sua fratura". Os modos pelos quais essa aporia se realizou no correr da história e os dispositivos mobilizados e inventados para resolvê-la, as figuras historicamente construídas da questão social, são na verdade o que permite colocar a situação atual em diálogo com a história passada, não simplesmente como seus antecedentes, mas como forma de elucidação do próprio presente. É com essa perspectiva que Castel remonta aos primórdios da aventura moderna, quando a questão social se armava em torno das figuras dos indigentes, mendicantes e dos vagabundos que povoavam a paisagem social, sob o signo do infortúnio daqueles que não encontravam lugar nas formas tradicionais de organização do trabalho, tampouco nos critérios estabelecidos de proteção. Essa história é contada para assinalar os vínculos do presente com o passado, a partir de uma mesma problematização, feixe de questões que se reformulam e se redefinem, mas que permanecem vivas ainda hoje. Mas é também contada para conferir inteligibilidade à novidade da moderna questão social, quando esta se reorganiza a partir do trabalho, instalando-se no núcleo mesmo da modernidade liberal, colocando em evidência a impotência do contrato para fundar uma ordem estável e pondo em xeque, por isso mesmo, a utopia liberal de uma sociedade bem-ordenada entre as regulações econômicas do mercado e as regulações morais por via de formas diversas de tutela e patronagem. É essa história que fornece uma medida para avaliar a novidade que representou a montagem do Estado social por via de um conjunto de regulações não-mercantis, pelas quais se tentará um equilíbrio sempre difícil, sempre conflitivo e sempre negociado entre forças sociais em conflito, entre mercado e trabalho, entre a lógica do lucro e as exigências de solidariedade. A partir daí, a condição salarial se redefine por inteiro, na medida em que é inscrita numa ordem de direito que reconhece o trabalhador como membro de um coletivo dotado de status social para além da dimensão individual do contrato de trabalho, de tal modo que o salário deixa de ser retribuição pontual de uma tarefa, pois a ele estão indexadas garantias contra os azares da vida e as prerrogativas para uma participação ampliada na vida social. É essa história que fornece um critério para avaliar, hoje, o sentido da erosão desse conjunto de mediações construídas entre sociedade, economia e Estado -a rigor é o estatuto da condição salarial que está sendo posto em xeque por essa espécie de captura do social pelo econômico e que se expressa na adaptação dos direitos às exigências de eficácia e competitividade do mercado, adaptação que a rigor significa a sua erosão, por conta da multiplicação de situações de trabalho e de vida que escapam aos procedimentos estabelecidos de regulação pública. A questão social não se reduz à constatação da tragédia social dos excluídos, tampouco se confunde com formas de "gestão de problemas sociais" por meio de políticas focalizadas, seletivas e localizadas e vai além do apelo a uma vaga solidariedade moral. Pois o que está em pauta nos tempos atuais é a exigência de renegociar o difícil equilíbrio entre mercado e trabalho e construir uma figura do Estado social à altura dos desafios atuais. A não ser que se aceite como inelutável que parcelas ponderáveis da população sejam colocadas fora do jogo social em nome das exigências da competitividade econômica, isso supõe, de partida, uma aposta quanto à possibilidade de se "viver em conjunto". A questão social, diz Castel, "é um desafio que interroga, põe em questão a capacidade de uma sociedade para existir como um conjunto ligado por relações de interdependência". É esse o desafio que está recolocado nos tempos atuais. em Vera da Silva Telles é professora do departamento de sociologia da USP e pesquisadora do Nedic-USP. Texto Anterior | Próximo Texto | Índice |
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