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A Ilíada pernambucana
PEDRO PUNTONI
Em 1615, Antoine de
Montchrétien escreveu:
"É impossível fazer a
guerra sem soldados,
sustentá-los sem soldo, pagar os
seus soldos sem tributos e criar
tributos sem comércio". Essa é a
nova epígrafe da segunda edição,
revista e aumentada, de "Olinda
Restaurada". Quando foi publicado pela primeira vez, em 1975, o
livro de estréia de Evaldo Cabral
de Mello trazia por mote um trecho de um sermão do padre Antônio Vieira. A mudança já nos diz
muito: a sentença do economista
francês, em seu "Tratado de Economia Política", revela mais o livro do que a parábola barroca do
jesuíta.
Muito já se escreveu sobre
"Olinda Restaurada". Em 1979,
Fernand Braudel, no terceiro volume de "Civilização Material e
Capitalismo", reparava como a
história da guerra luso-holandesa
no Brasil era "brilhantemente
apresentada no livro recente de
um jovem historiador brasileiro".
Charles R. Boxer, autor das melhores abordagens supranacionais
da história luso-brasileira, alertava que "essa obra pressupõe no
leitor algum conhecimento da história narrativa da "Ilíada pernambucana', mas, para aqueles
que a conhecem, ela é inegavelmente o mais satisfatório e esclarecedor estudo neste campo".
Contudo, modificar um livro
que se tornou um clássico não parecerá um contra-senso? A tentação está aí, para todos os autores,
ainda mais para aqueles tão próximos de seus textos, quer dizer, tão
entretidos em seu ofício -coisa
não muito comum nos dias que
correm. Laborioso, Cabral de Mello tratou de ajustar suas teses e
movimentos explicativos. Rematou minuciosamente a pesquisa
documental e atualizou o diálogo
com a historiografia. Além disso,
fez correções de estilo e realocou
as tabelas em um anexo ao final.
Por fim, é patente a maior preocupação com a dimensão narrativa:
várias passagens foram reordenadas para tornar o movimento analítico mais adequado à cronologia.
Com isso, o livro ganhou um frescor surpreendente.
No ano passado, o autor já havia
publicado uma revisão de "Rubro
Veio" (originalmente de 1986),
estudo do imaginário da restauração pernambucana. A oportunidade de apuração de sua obra não
significa um apego conservantista,
muito pelo contrário. Cabral de
Mello destaca-se também como
um dos mais produtivos historiadores de nossa seara. Após publicar sua história da "fronda dos
mazombos", em 1996, ele acaba
de dar à estampa uma história das
negociações luso-neerlandesas em
torno do domínio do Nordeste
açucareiro ("O Negócio do Brasil:
Portugal, os Países Baixos e o Nordeste, 1641-1669", Topbooks,
1998). Disto decorre, com certeza,
o cuidado da nova edição de
"Olinda Restaurada" em melhor
descrever o contexto europeu e as
questões diplomáticas envolvidas.
Além disso, percebe-se a cautela
no uso de alguns conceitos que ele
mesmo fez por superar em outros
trabalhos. Pode-se observar, por
exemplo, o abandono do termo
"absolutismo" para descrever a
monarquia portuguesa no Seiscentos.
A tese central do livro está mantida, é claro. Trata-se de mostrar
que o sentido último da dominação holandesa encontra-se na
guerra, e de compreender seu impacto na sociedade do Nordeste
açucareiro. Neste sentido, o escopo de "Olinda Restaurada" é
uma história social da guerra no
contexto colonial. Excluindo-se o
breve episódio na Bahia
(1624-1625), a guerra dos luso-brasileiros contra os holandeses pode ser dividida em dois períodos: a guerra de resistência
(1630-1637) e a guerra de restauração (1645-1654). Isto significa que,
dos 24 anos da dominação da
Companhia das Índias Ocidentais,
o Nordeste assistiu apenas oito
anos de paz, sendo que apenas
quatro foram de paz efetiva. Baseado em pesquisa documental
formidável, o autor demonstra como essas foram "guerras pelo
açúcar, vale dizer, pelo controle
das suas fontes brasileiras de produção, mas também no sentido,
que é o deste livro, de guerras sustentadas pelo açúcar, ou antes, pelo sistema econômico e social que
se desenvolvera no Nordeste com
o fim de produzi-lo e exportá-lo
para o mercado europeu".
O primeiro capítulo trata das diversas estratégias militares de ambos os lados da contenda. A equação entre a iniciativa terrestre ou a
marítima condicionou o grau da
utilização dos recursos locais. O
olho do historiador volta-se, então, para o financiamento da guerra. Os dois capítulos seguintes tratam do regime do comércio luso-brasileiro e de como o prosseguimento das relações mercantis
permitia o financiamento da guerra, seja nas condições do comércio
"livre", seja com a Companhia
Geral do Comércio do Brasil, criada em 1649. Segundo Cabral de
Mello, a guerra foi "uma empresa
predominantemente local, dependendo quase exclusivamente dos
rendimentos obtidos na terra, sobretudo do imposto extraordinário sobre o açúcar".
O quarto capítulo, "O Dever e o
Haver", faz um balanço das finanças da resistência e da restauração e revela como a segunda foi
muito mais do que a primeira uma
guerra do açúcar, uma vez que esse "donativo do açúcar" foi seu
verdadeiro nervo. Esse capítulo
encerra a melhor análise do sistema fiscal do Estado do Brasil como um todo. Isso é um bom
exemplo de como, no ambiente de
carência que particulariza nossa
historiografia, questões específicas impõem às vezes que o historiador desfie análises mais compreensivas capazes de dar sentido
ao caso.
A composição das tropas é estudada no quinto capítulo, "Gente
de Guerra", e revela a presença
superior do contingente local. No
capítulo seguinte, o autor analisa
as divergências que existiam entre
as concepções militares convencionais e as da "guerra do Brasil", como era chamada o modo
peculiar de "guerra volante" ou
de guerrilhas praticada pelas tropas locais, compostas sobretudo
de mulatos e índios. A "guerra do
Brasil" diferia das técnicas científicas de guerra tão em voga na Europa moderna. O autor analisa o
processo de marginalização da arte da guerra em Portugal -muito
em razão de ter sido poupada, pelo menos até a guerra de restauração com a Espanha (1640-1668),
de conflitos em escala no continente- e seu desdobramento, em
segundo grau, na América portuguesa. Com efeito, a superioridade
obtida pelas forças luso-brasileiras
fora garantida pela capacidade de
assimilação e de acomodação de
técnicas e estratégias nativas,
adaptando-as aos contextos ecológicos e sociais mais diversos.
O último capítulo, "A Querela
dos Engenhos", trata das disputas
de interesses entre os proprietários dos engenhos confiscados pelos holandeses e os novos proprietários luso-brasileiros; para, então, discutir as razões sociais da
restauração, originada de uma
"constelação de interesses no Reino, na Bahia e em Pernambuco",
e suas consequências na política
da sociedade colonial no imediato
pós-guerra. Abre-se aqui a temática de "Rubro Veio" e da "Fronda dos Mazombos".
Evaldo Cabral de Mello é um dos
nossos mestres mais atentos ao específico do fazer historiográfico.
Em sua obra podemos apreender
como a diferença da história em
relação às demais ciências humanas é de método e de forma do discurso. Neste sentido, seus estudos
têm procurado relacionar sistematicamente os eventos militares
e políticos com as estruturas sociais e econômicas, nos termos
que articulem a narrativa à história social, isto é, as duas abordagens predominantes na historiografia do século 20. Não é outra a
proposta de "Olinda Restaurada".
A OBRA
Olinda Restaurada: Guerra e Açúcar no Nordeste, 1630-1654
Evaldo Cabral de Mello
Topbooks (Tel. 021/233-8718)
470 págs., R$ 40,00
Pedro Puntoni é doutor em história social pela
USP.
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