São Paulo, Sábado, 13 de Fevereiro de 1999
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A etnografia como gênero literário

GUILHERME S. GOMES JR.

É oportuna a publicação deste livro do historiador James Clifford, coletânea de ensaios organizada por José Reginaldo Santos Gonçalves, que assina a apresentação e conduz uma esclarecedora entrevista com o autor no final do volume. Conhecido nos meios antropológicos brasileiros há pelo menos uma década, faltava uma edição que desse conta, ao menos em parte, de seu trabalho acerca da história das idéias e das práticas que caracterizaram a antropologia do século 20.
O editor brasileiro optou por não traduzir nenhum dos livros publicados originalmente pelo autor, mas, dos seis ensaios de "A Experiência Etnográfica", quatro constam da coletânea de 1988, "The Predicament of Culture: Twentieth-Century Ethnography, Literature and Art". Cabe uma dúvida quanto a essa opção: apesar de Clifford declarar na "Introdução" o caráter exploratório e inacabado da coletânea de 1988, os ensaios que lá estão travam entre si um nítido diálogo, como, por exemplo, "On Ethnographic Surrealism" e "On Collecting Art and Culture". A despeito da natureza complementar dos dois textos, apenas o primeiro é traduzido. Além disso, perdem-se, entre outros, escritos sobre Victor Ségalen, Michel Leiris, Aimé Césaire e Edward Said.
Apesar de suas muitas facetas é possível distinguir no livro dois blocos. O primeiro, composto por "Sobre a Autoridade Etnográfica", "Sobre a Alegoria Etnográfica" e "Sobre a Automodelagem Etnográfica: Conrad e Malinowski", é talvez o que já produziu mais ressonâncias no Brasil, pois apresenta uma visão crítica, bastante ampla, tanto das práticas de campo quanto das práticas textuais que dominaram a antropologia no século 20. Já o segundo bloco tem a aparência de ser mais restrito, pois versa especificamente sobre a antropologia francesa entre as duas grandes guerras e traz ensaios que tratam das relações do surrealismo com a etnografia e das experiências de campo de Marcel Griaule e Maurice Leenhardt, nomes menos conhecidos fora da França. Mas, apesar da especificidade, são um contraponto bastante interessante ao consenso etnográfico dissecado nos primeiros ensaios do livro.
No começo do século, constituiu-se uma rotina que modelou o perfil do antropólogo profissional, de forma quase hegemônica, até os anos 60. A antiga separação entre o pesquisador de campo e o antropólogo foi posta em questão e a experiência de campo (visto como uma espécie de laboratório), com forte caráter iniciático, tornou-se uma exigência. Malinowski em Trobriand foi o modelo para as gerações futuras: um pesquisador solitário em meio aos nativos, dominando sua língua e atento para as rotinas da vida cotidiana, tornava-se apto para produzir um conhecimento holístico da sociedade em questão.
Conhecimento com um duplo fim: por um lado, serviria de base para a ciência do Homem; por outro, garantiria o registro que funcionaria como sucedâneo para uma perda irreparável. Os trobriandeses desapareceriam enquanto tal, mas o registro do etnógrafo resgataria a memória que eles, ágrafos, seriam incapazes de preservar, o que, para Clifford, constitui-se numa das pedras angulares da antropologia do século 20: a construção retórica da idéia do primitivo em extinção.
Os povos que fizeram a fortuna do pensamento antropológico foram assim constituídos enquanto entidades isoladas e descritos em um estado de pretensa pureza. Bastante preocupado em não ser confundido com o missionário, o viajante ou o funcionário do governo colonial, o etnógrafo buscou construir em torno de si mesmo a aura de uma experiência voltada para um conhecimento objetivo.
Para isso, uma estratégia textual decisiva dizia respeito ao apagamento dos indícios que pudessem macular a pureza do encontro entre o pesquisador e os nativos: nada era dito sobre os preparativos da expedição, sobre a eventual posição de força do governo colonial propiciando a estada do etnógrafo, ou sobre as interferências decisivas dos informantes nativos. E ficava de fora, principalmente, o intenso processo subjetivo, pleno de ambivalências, vivenciado pelo etnógrafo. O caráter negociado, polifônico, tateante, do conhecimento produzido em campo dava lugar no texto a um monólogo autoral com um mínimo de fissuras.
Pressionado pelas transformações decorrentes da descolonização e da emergência dos movimentos das minorias e dos direitos civis, esse modelo começou a viver seu ocaso a partir dos anos 60. Nesse novo cenário, marcado por um intenso translado de povos, de experiências e saberes, produziu-se uma fabulosa multiplicação de vozes, e o monólogo que caracterizou a etnografia até então passou a soar como um anacronismo.
De forma bastante abreviada, é esse o eixo de preocupações que conduz a primeira parte de "A Experiência Etnográfica" e que se constitui no núcleo mais conhecido do pensamento de Clifford. Mas há que se falar também de seus estudos franceses.
Até recentemente, a tradição francesa esteve como que sob suspeita, já que suas mais respeitáveis figuras do campo antropológico, Mauss e Lévi-Strauss, não seguiram os protocolos hegemônicos da antropologia anglo-americana.
O primeiro foi um grande incentivador da pesquisa de campo, mas não a praticou; o segundo, apesar de ter escrito um dos mais famosos livros no qual a aventura etnográfica ocupa o centro, não fez no interior do Brasil quase nada daquilo que a rotina etnográfica dos anos 30 prescrevia. No que diz respeito ao campo por excelência da etnografia francesa, o fato de o africanismo ter deslanchado apenas com a Missão Dakar-Djibouti, em 1931, já foi interpretado, por exemplo, como o resultado da morte prematura de muitos discípulos de Durkheim e Mauss na Primeira Guerra Mundial. Mas os dados trazidos à tona pela interpretação de Clifford mostram que talvez o destino da pesquisa antropológica na França deva ser visto por meio de outros parâmetros.
Não é possível considerar como simples coincidência biográfica o fato de os membros mais proeminentes da Missão Dakar-Djibouti, como Marcel Griaule, Michel Leiris e André Schaeffner terem sido colaboradores das revistas "Documents" e "Minotaure" (que dedicou um número especial à missão), editadas por Bataille e egressas da vanguarda surrealista; nem acaso o fato de Bataille ter sido vinculado por toda vida a Alfred Métraux; nem algo aleatório o fato de o museu do Trocadéro ter sido um lugar de inspiração e pesquisa fundamental para Picasso e outros artistas. Paris entre as duas guerras foi um laboratório vivo da "etnografia surrealista". O exotismo não vinha só da África, estava ali mesmo, nas ruas de "Le Paysan de Paris", de "Nadja" ou no mercado das pulgas. A reflexão antropológica era produzida nos seminários de Mauss, Dumézil e Granet, na Sorbonne, na École Pratique e no Collège de France, mas também no café do Quartier Latin, onde se reunia o Collège de Sociologie de Bataille e Caillois.
Clifford não arrisca a idéia de um Marcel Mauss surrealista, mas demonstra muito bem a variedade vertiginosa dos temas de suas aulas, frequentadas por surrealistas e etnógrafos em formação, sua "confusão inspirada", seu caráter boêmio, a ponto de sugerir que uma de suas famosas frases, aquela que incita à procura das "luas mortas ou pálidas no firmamento da razão", poderia ser considerada um sumário da "etnografia surrealista".
O que me parece sugestivo na visada de Clifford sobre a antropologia na França, particularmente seus estudos sobre Griaule, Leiris e Leenhardt, é que não emerge a idéia de uma experiência fracassada, seja porque Griaule teve uma visão performática da etnografia, concebida enquanto um trabalho de equipe, seja porque Leiris fez da etnografia uma viagem altamente subjetiva, seja porque Leenhardt articulou perigosamente o papel de missionário e de etnógrafo e, a despeito disso, foi quem sucedeu Mauss na prestigiosa cadeira de etnologia na École Pratique. A França aparece assim como um espaço dissonante dentro do consenso etnográfico da primeira metade do século, espaço que agora deixa de parecer tão exótico quando ficamos sabendo um pouco mais, por exemplo, sobre as etnografias de Malinowski e de Margareth Mead.
No panorama da etnografia francesa traçado por Clifford resta um ponto de interrogação. Curiosamente, Lévi-Strauss aparece em uma posição secundária, seja quando o assunto é o surrealismo ou quando são abordadas as rotinas de campo dos etnógrafos. No primeiro caso, Lévi-Strauss é referido mais como alguém de fora que, posteriormente, interpretando Mauss como protoestruturalista acaba por subtraí-lo do contexto da "etnografia surrealista", aparentemente avessa aos sistemas. Quanto ao trabalho de campo, não há como não lembrar de "Tristes Trópicos" quando Clifford descreve os protocolos dominantes na época. O fato de nele estarem expostos todos os andaimes da expedição, de ser escrito como autobiografia e ter a forma de narrativa de viagem, faz desse livro um verdadeiro exotismo frente à rotina textual da época.
Lévi-Strauss poderia muito bem ser levado em conta, como um contraponto, nas reflexões que tratam de Griaule e Leiris, pois suas etnografias têm muitos pontos de contato no que diz respeito ao ritmo, às preocupações estéticas e ao objetivo de formar coleções. Além disso, seus vínculos com os surrealistas foram bem mais intensos do que os descritos por Clifford. Não apenas alguns acidentes biográficos, mas algo que, em alguma medida, ficou entranhado no próprio método. Mas, pelo visto, essa é uma história que ainda está para ser desvendada.
James Clifford pertence a uma corrente de estudiosos que se voltou para a interpretação do próprio conhecimento do qual é caudatária. Os trabalhos de Clifford Geertz, no campo antropológico, e de Hayden White, nos estudos históricos, são talvez as principais referências dessa tendência. Deve-se a ela uma consciência aguda da retórica que articula o discurso das ciências humanas, e o resultado dessa consciência, que mescla ironia e ceticismo, tende a ser duradouro. Só espero que não seja paralisante, já que muita consciência da linguagem às vezes pode produzir afasia. E espero que o reconhecimento da etnografia também como "gênero literário" não incite a aventuras pouco rigorosas em fronteiras discursivas.
Mas isso não me parece um grande risco, pois os antropólogos também sabem ser exigentes. Bom exemplo disso talvez seja o comentário de Lévi-Strauss sobre seu mais famoso livro, por acaso aquele que faz uso dos registros literários mais variados. De "Tristes Trópicos", disse ele, certa vez, que parecia coisa de estudante gazeteiro.


A OBRA

A Experiência Etnográfica: Antropologia e Literatura no Século 20
James Clifford Tradução: Patrícia Farias Ed. da Universidade Federal do Rio Janeiro (Tel. 021/542-4901) 319 págs., R$ 28,00




Guilherme Simões Gomes Jr. é professor de antropologia na Pontifícia Universidade Católica (SP) e autor de "Palavra Peregrina: O Barroco e o Pensamento sobre Artes e Letras no Brasil" (Edusp).



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