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O CISNE DE ARISTÓTELES
Um clássico de Pierre Aubenque sobre a ética aristotélica
MARCO ZINGANO
Nos primeiros anos da década de 60, Pierre Aubenque
publicou, na França, dois livros de grande impacto nos
estudos aristotélicos contemporâneos. O primeiro foi
editado em 1962: é o célebre "O Problema do Ser em
Aristóteles", que renovou profundamente os estudos
sobre a metafísica aristotélica. No ano seguinte, em
1963, saiu o não menos importante "A Prudência em
Aristóteles", que igualmente influenciou de modo decisivo os estudos sobre a ética aristotélica. Em ambos,
uma interpretação de fôlego, uma rara lucidez e sensibilidade aos problemas filosóficos, uma linguagem elegante, sóbria e ao mesmo tempo entusiasmador, exemplo por excelência dessa "art d'écrire" que somente os
franceses manejam com destreza. Tudo isso em dois
anos: dois clássicos que todo leitor imbuído de filosofia
terá enorme prazer ao consultar.
O livro "A Prudência em Aristóteles" ganha agora
uma tradução brasileira. E já no título revela sua força.
Na época, vigorava o anátema kantiano: a prudência é
uma noção espúria da moral, um jesuitismo prático que
no máximo pode aspirar à astúcia das cobras, mas jamais ao querer de uma boa vontade, cuja lei máxima,
impressa no coração de todos os homens, é o imperativo categórico.
Com a paciência do filólogo e a sensibilidade do filósofo, Aubenque, ao examinar por que a doutrina da
prudência é central no pensamento ético de Aristóteles,
vai lenta, mas indefectivelmente, reconstituindo, por
entre os escombros de uma doutrina abandonada, a estátua grega que estava em sua origem.
Pacientemente, repensa o homem que se vale da prudência, o conhecimento que está em questão, a natureza da norma a que faz apelo; revisita a cosmologia da
prudência, a contingência em que está imersa e o tempo
oportuno em que se exprime; esmiúça suas manifestações, sua antropologia, examinando o procedimento
deliberativo, a escolha e a verdade prática que por ela é
alcançada.
O resultado é uma revalorização penetrante da prudência, seu enraizamento em um mundo humano
aberto às incertezas, frágil diante do acaso, mas no qual
a inteligência, embora não possa mais apelar ao transcendente, não se perde no relativismo, devendo de agora em diante buscar a verdade prática no juízo do homem que, imerso nas circunstâncias cambiantes em
que ocorre a ação, mesmo assim vê o que deve ser feito e
serve de critério para o agir moral.
Se hoje não surpreende mais encontrar o termo "prudência" no título de uma obra sobre a moral, é porque,
em grande parte, Aubenque conseguiu, com sua sólida
reflexão, retirá-la do limbo filosófico em que se encontrava no início do século 20.
DEUS LONGÍNQUO
Para tanto, Aubenque contava com duas grandes armas. Primeiro, ele tinha visto
que, na metafísica aristotélica, Deus está por demais
distante, é um primeiro motor longínquo, causa última,
por certo, mas recluso em seu domínio. O homem está,
em um sentido moral relevante, abandonado. Segundo,
este mundo em que o homem está jogado é um mundo
da contingência, no qual o acaso pode alterar para sempre a ordem aparentemente perene até então vigente.
É nessa instabilidade radical que o homem deve encontrar as regras para bem agir. Daí Aubenque percebeu a relação íntima, o parentesco inescapável entre a
ética aristotélica e o sentimento trágico dos gregos. A
tragédia põe em cena a necessidade de pensar humanamente para encontrar, neste mundo instável, uma certa
estabilidade moral. A tragédia viu no "phronein", no
pensar em medida humana, o único procedimento capaz de tirar o homem das incertezas sem cair na desmedida, na "hybris", o grande mal que ronda insistentemente a potência humana; Aristóteles tomou como noção central de sua ética a "phronêsis", a prudência, para
pensar filosoficamente os limites do conhecimento
(prático), marcado pela contingência de um mundo delimitado por um Deus distante. Filosofia e tragédia respondem, assim, cada uma em seu registro, a uma mesma experiência existencial fundamental.
Barthélemy Saint-Hilaire escrevia, em 1856, em uma
nota à sua tradução da "Ética Nicomaquéia", de Aristóteles, que "a moral tem leis imutáveis e universais; Aristóteles parece esquecer-se seguidamente disso".
Os tempos mudam, as experiências são outras; os
horrores que o século 20 viveu nos colocaram diante de
desmedidas inimaginavelmente cruéis; aumentaram
assim nossa sensibilidade à contingência, à falibilidade,
à necessidade de voltarmos a um padrão humano de saber prático.
Em 1962, nas ondas da BBC, Renford Bambrough
anunciava que, como ensinara Aristóteles, "não há regras universais, sem exceção, para nos guiar moralmente; há, no entanto, um modo correto de responder a cada situação em que nos encontramos". É isso o que faz o
prudente, receptivo aos limites do conhecimento humano e imerso na contingência do mundo. Bambrough
intitulou sua fala de "o patinho feio de Aristóteles"; um
ano depois, em 1963, já se podia ver, na obra de Pierre
Aubenque, o cisne que dali crescera.
MARCO ZINGANO é professor de filosofia antiga no departamento de filosofia da
USP.
A Prudência em Aristóteles Pierre Aubenque
Tradução de Marisa Lopes
Discurso Editorial (Tel. 0/xx/11/3814-5383)
352 págs. R$ 35,00
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