São Paulo, Sábado, 13 de Março de 1999
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O paradigma de Adorno

JORGE MATTOS BRITO

Não são poucos os desafios enfrentados por quem se propõe a escrever uma tese de doutorado sobre um livro como a "Dialética Negativa", de Theodor Adorno. A conhecida dificuldade dessa obra de Adorno, um autor para quem a forma de apresentação é crucial para a verdade ou falsidade de um pensamento, tem origem no próprio objeto, apresentado assim em suas primeiras linhas: "Filosofia, que pareceu uma vez ultrapassada, mantém-se em vida porque o seu instante de realização foi perdido".
O livro de Marcos Nobre toma essa frase como tema para investigar não apenas a possibilidade da filosofia, mas as condições de possibilidade da crítica imanente defendida por Adorno, com a intenção de "estabelecer em suas grandes linhas o sentido do percurso intelectual de Adorno" e "demarcar o terreno legítimo" de uma investigação de sua obra.
Partindo do célebre prefácio à segunda edição da "Dialética do Esclarecimento" (1969), em que Adorno e Horkheimer, coerentes na defesa de uma teoria que "atribui à verdade um núcleo temporal", apontam o envelhecimento de algumas formulações do livro de 1947, Marcos Nobre desenvolve o argumento de que essa própria advertência é um indício dos problemas teóricos que Adorno teve de enfrentar na "Dialética Negativa", diante da nova configuração da política e da economia no pós-guerra.
Nobre ressalta, em um primeiro momento, a influência que a teoria do "capitalismo de Estado" desenvolvida por Pollock exerceu no pensamento de vários membros do Instituto de Pesquisa Social e argumenta que "Adorno estabelece na década de 1940 um diagnóstico do capitalismo que, por um lado, permanece inalterado nas décadas de 1950 e 1960, mas que, por outro lado, não é inteiramente confirmado pelo desenvolvimento concreto do modo de produção no pós-guerra". Em suma, Adorno teria permanecido atento aos aspectos totalitários presentes na "forma democrática" do capitalismo de Estado, ao contrário de Habermas, que já parte do fato da existência de um Wellfare State.
As consequências do reconhecimento desse problema para a interpretação da obra tardia de Adorno são, para Marcos Nobre, cruciais, mas nem por isso teriam sido tratadas pela maioria dos comentadores de Adorno, apegados ao que ele chama de "paradigma da Dialética do Esclarecimento". A especificidade da "Dialética Negativa" reside justamente no esforço, diante da nova situação histórica, de repensar criticamente a relação entre "exposição e coisa", fundamental para um pensamento que pretende, como diz Adorno, "libertar a dialética de sua essência afirmativa".
As dificuldades subjacentes a um livro como a "Dialética Negativa" estão presentes, em uma chave positiva, na proposta de leitura de Marcos Nobre. O problema é atacado em duas frentes: a discussão entre Adorno e Benjamin sobre a possibilidade de uma teoria do conhecimento materialista baseada no modelo da crítica de arte e o fio condutor da "ontologia do estado falso", tema adorniano recuperado a partir da história da noção de imanência em Kant, Hegel e Marx.
No excurso sobre o período que o autor chama de "fase benjamiana" do pensamento de Adorno, são retomadas teses também desenvolvidas por Susan Buck-Morss em seu livro "A Origem da Dialética Negativa", de 1977: a influência decisiva das obras de juventude de Benjamin para a consolidação do modelo de pensamento dialético baseado no princípio da não-identidade, no qual a crítica deve se impor ao comentário, pois este visa apenas ao "teor de coisa" e não ao "teor de verdade" dos objetos.

A OBRA
A Dialética Negativa de T. W. Adorno - A Ontologia do Estado Falso Marcos Nobre Iluminuras (Tel. 011/3068-9433) 190 págs., R$ 20,00



Nos dois capítulos seguintes, a apresentação das "aventuras" do conceito de imanência na tradição filosófica conduz a um ponto fundamental, já levantado pelo excurso: a relação entre a "Dialética Negativa" e a prática ensaística de um pensamento que defende a primazia do objeto, justamente o ponto maior de concordância entre Adorno e Benjamin. Consciente das dificuldades de pensar a dialética negativa como uma "metodologia" para os ensaios, Marcos Nobre ressalta, entretanto, que não se pode deixar de considerar o impulso sistematizante presente no livro, "que pensa nos interstícios do ensaio".
Na abordagem de Nobre, o impulso em direção ao tratamento conceitual da dialética da identidade e da não-identidade, reconhecido por ele em seu objeto, é assumido pelo próprio comentador, que deixa de lado a prática ensaística realizada sobre objetos específicos para se concentrar nos textos em que o ensaio e o discurso filosófico próprio da dialética são elevados a tema.
Quando o próprio Adorno faz isso, a forma da exposição pretende evitar a configuração de uma abordagem positiva, totalizante e a-histórica do momento de "autocrítica" dos conceitos. A crítica imanente tomada como objeto exige a si mesma como meio de exposição. E para isso mantém em suspenso sua própria possibilidade.
A abordagem realizada no livro de Marcos Nobre, entretanto, talvez em razão da forma de rigor acadêmico que se espera de uma tese de doutorado, acaba se impondo "do alto" junto ao método tradicional, essencialmente não-dialético, de estudo e comentário da história da filosofia (formalmente avalizado, por exemplo, pela enorme quantidade de citações), justamente o que Adorno procurava combater. Assim, apesar de todas as ressalvas, Marcos Nobre acaba caindo no paradoxo de um "paradigma da Dialética Negativa", que coroa e ilumina retrospectivamente a prática ensaística exercida por Adorno, ao buscar um "sentido" para um percurso intelectual sempre atento ao caráter contraditório de seus objetos.


Jorge Mattos Brito de Almeida é doutorando no departamento de filosofia da USP.


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