São Paulo, Sábado, 13 de Março de 1999 |
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Os "mãos sujas"
ANA LUISA ESCOREL
Sem esquecer que o olhar de "designer", lançado por Cunha Lima, confere uma tonalidade nova ao tema já bastante explorado da produção de livros no Brasil. É justamente essa ótica particular que permite ao autor não só sugerir uma forma mais completa de catalogação bibliográfica, incluindo nela dados como a autoria do projeto de design, a quantidade e a técnica das ilustrações, a composição e a impressão do texto, como também comentar com extrema segurança aspectos das publicações examinadas relativos à concepção visual e à fabricação. É de fato surpreeendente que num país ainda marcado pelos códigos e pelos valores de uma produção artística que parece resistir até hoje à revolução trazida pela indústria, na década de 50, distante da arrogância do eixo Rio/São Paulo, tenha surgido esse grupo originalíssimo. "O Gráfico Amador" contava em seu núcleo com as figuras ímpares de Aloisio Magalhães, Gastão de Holanda, Jose Laurenio de Melo e Orlando da Costa Ferreira. Com exceção de Aloisio, nesse período ainda um artista plástico, os outros três eram poetas e ficcionistas e pretendiam, ao fundar a editora, criar condições para publicar e distribuir seus próprios textos. No entanto a maneira como se desenvolveu a experiência atesta a qualidade intelectual desses quatro "mãos sujas", apelido que pretendia classificar os membros do grupo: os "mãos sujas" punham a mão na massa e a sujavam com as tintas e a lida dos serviços de projeto, composição e impressão; os "mãos limpas" eram os que se limitavam à conversa, ao apoio, à troca intelectual e à criação de material para as edições. Pois bem, não por acaso, entre os "mãos sujas" parece ter se desenvolvido uma consciência aguda das riquíssimas relações existentes entre a produção artística e a seriação industrial. Se bem que as tiragens dos impressos produzidos por "O Gráfico Amador" fossem pequenas, e o processo de reprodução utilizado, basicamente o tipográfico, fosse operado de forma artesanal, esse momento da juventude parece ter introduzido no horizonte dos quatro cavalheiros a chave para a compreensão do sentido profundo das formas de manifestação artística no mundo de hoje. Aloisio e Gastão se tornaram designers. Orlando acumulou uma enorme erudição bibliológica, publicando textos importantes como "Imagem e Letra - Introdução à Bibliologia Brasileira". Jose Laurenio acrescentou às atividades de poeta, ficcionista e requintadíssimo tradutor do inglês a de especialista em editoração, passando a colaborar nessa atividade com algumas das maiores editoras do país. Muito ainda se poderia extrair do livro de Guilherme Cunha Lima, certamente a pesquisa e a exposição mais abrangentes e documentadas que já se fizeram no Brasil sobre tema semelhante, por alguém cujo ponto de vista parte do universo do design. Poderia se lembrar a extrema qualidade gráfica e, em certos casos, a ousadia dos livros e impressos de caráter efêmero fabricados por "O Gráfico Amador". Poderia se enumerar a incrível diversidade dos que, de uma maneira ou de outra, estiveram ligados ao grupo, ou como membros ativos ou como sócios da editora. E essa lista incluiria gente do tope de Ariano Suassuna, Artur Lício Pontual, Francisco Brennand, João Alexandre e Ana Mae Barbosa, Reynaldo Fonseca, Sebastião Uchoa Leite e os irmãos Henrique e José Mindlin, para lembrar os que talvez tenham se tornado mais eminentes. Concluindo, fica a ardorosa recomendação de leitura e a esperança de que textos como esse contribuam para abrir espaços de cidadania aos "mãos sujas" de qualquer origem, nos restritivos terrenos da produção cultural brasileira. Ana Luisa Escorel é designer e integra a equipe de planejamento, projeto e assessoria do "19 Design". Texto Anterior: Abílio Guerra: O véu e a mortalha Próximo Texto: Milton Hatoum: Sem trama nítida Índice |
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