São Paulo, Sábado, 13 de Março de 1999
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Imaginário e poder

ANGELA DE CASTRO GOMES

A historiografia brasileira das últimas décadas vem privilegiando os estudos de história política e cultural, acompanhando, aliás, tendência internacional dessa área de conhecimento. Essa "outra" história, que fortaleceu-se a partir dos anos 70, surgiu como uma forma de reação, quer a abordagens mais estruturais dos processos históricos, quer a interpretações mais deterministas, que ressaltavam basicamente a força dos constrangimentos sociais, eliminando, na prática, a presença e as escolhas de atores individuais e coletivos. Portanto ela acabou trazendo "de volta" para os historiadores uma especial preocupação com as dinâmicas conjunturais, com "o tempo presente" e com as variáveis subjetivas, reconhecidas como fundamentais para a compreensão das expectativas e valores que orientam o comportamento dos sujeitos históricos.
No caso do Brasil, essa autêntica renovação de temas, conceitos e enfoques associou-se a um momento muito denso e específico de nossa própria história política, que vivia uma nova transição entre regime autoritário e democrático, colocando as questões da relação entre ambos na ordem do dia para o país e para sua comunidade acadêmica. Ou seja, a natureza do movimento militar de 1964 e o endurecimento do regime, somados aos desafios da abertura política que se anunciava, impunham uma reflexão cuidadosa sobre experiências autoritárias anteriores, particularmente quando foram capazes de criar um instrumental que lhes assegurou bases de legitimidade para a manutenção de um Estado ao mesmo tempo forte e popular.
O Estado Novo e a figura de Getúlio Vargas tornaram-se assim momento e tema centrais de muitas análises, que não só abordaram questões relativas aos novos arranjos institucionais e às políticas de modernização e industrialização então implementados, como também deram destaque a suas políticas sociais e culturais, até então pouco contempladas. Esse tratamento, teoricamente reorientado e bem mais diversificado, gerou uma nova perspectiva interpretativa do período, mais complexa e sofisticada, pela qual nele se reconhecia uma nítida ambiguidade, tanto no que se referia às vivências e avaliações de seus contemporâneos, como ao legado do que se convencionou chamar de Era Vargas.
É com referência a esse contexto mais amplo que se pode situar o recente livro de Maria Helena Capelato, que retoma Vargas e o Estado Novo, mas com uma dupla especificidade, o que justamente qualifica sua contribuição. Como o subtítulo -"Propaganda Política no Varguismo e no Peronismo"- esclarece, trata-se de um estudo comparado entre Brasil e Argentina, no qual o objeto de análise é a propaganda, assunto ainda muito pouco explorado em nossa historiografia, pelos desafios e riscos que envolve.
Num terreno em que política e cultura são indissociáveis, a autora vai tratar a propaganda como uma forma de representação política especialmente voltada para a produção de imaginários sociais, isto é, para a conformação de idéias, valores, imagens, símbolos e mitos, capazes de ser compartilhados por amplas parcelas de uma sociedade de massas. O que ela vai analisar, de forma comparada, é a sofisticação e importância dos investimentos políticos voltados para a propaganda, como indicadores preciosos do quanto os dois regimes acreditavam na força do imaginário como fundamento da legitimidade do poder. A intencionalidade e a intensidade com que o varguismo e o peronismo se aplicam nessa nova área de atuação pública ficam evidentes, posto que o livro destaca iniciativas que abarcam o campo da mídia (jornais, revistas, cinema, rádio, teatro), o campo da educação, artes e ciências (livros escolares, subsídios a editoras e iniciativas culturais) e também o das manifestações rituais cívicas, dentre os exemplos mais significativos.
Contudo a maior virtude no tratamento do tema talvez não esteja no preciosismo com que tantos elementos são sistematizados e expostos pedagogicamente ao leitor, mas em sua abordagem, que se afasta tanto da tentação "totalitária" quanto da "populista". Dessa forma, a autora esclarece, já na introdução, que, a despeito do varguismo e do peronismo -mais o primeiro que o segundo- terem investido na criação da imagem de uma sociedade una, homogênea, harmônica e integrada pelo Estado, estiveram longe de produzir esse resultado, não apenas porque sempre conviveram com resistências políticas significativas, como igualmente porque enfrentaram divergências nada desprezíveis no interior dos próprios projetos ideológicos que orientavam aquelas novas experiências.
Assim, se havia uma certa receptividade da sociedade a imagens e símbolos com o sabor totalitário da época, a aceitação do nazi-fascismo estava distante de alcançar maiores simpatias e afastar críticas enquanto modelo exemplar de organização da sociedade e do Estado. Por outro lado, o livro também deixa claro que, se a propaganda tem um papel político chave na sustentação de ambos os regimes e na construção dos mitos de Vargas, de Peron e de Eva Peron, sua eficácia é ininteligível quando não associada a um grande conjunto de políticas públicas -econômicas e sociais, com destaque-, que efetivamente foram concebidas e vivenciadas como formas de beneficiamento de amplas parcelas da população, no Brasil e na Argentina. A propaganda não emerge do trabalho, portanto, como uma peça de mera manipulação ou de "traição" do povo, mas como um dos instrumentos mediante os quais se construiu um certo tipo de comunicação entre governantes e governados, de marca autoritária, mas nem por isso desprovida de bases sociais.

A OBRA
Multidões em Cena - Propaganda Política no Varguismo e no Peronismo Maria Helena Capelato Papirus (Tel. 019/272-4500) 312 págs., R$ 33,00



Quanto ao emprego da estratégia comparativa, o que se pode destacar é como a análise das conjunturas políticas dos dois países pode nos esclarecer sobre as características específicas dos dois regimes, apesar das aproximações de que são, com razão, alvo. Em primeiro lugar, o momento político internacional em que os dois líderes ascendem ao poder é inteiramente distinto, bem como a forma com que o fazem. Vargas torna-se o chefe do Estado Novo por meio de um golpe de estado, sustentado pelas forças armadas do Brasil, exatamente nos albores da Segunda Guerra, quando o nazi-fascismo ainda estava longe do descrédito. Já Peron torna-se presidente argentino pelo voto popular, quando os procedimentos liberal-democráticos voltavam à ordem do dia e as experiências totalitárias sofriam duro ataque, emolduradas pelos ventos gelados da guerra fria.
Além disso, a composição dos apoios políticos de ambos é muito diferenciada, o que obviamente interfere na temática da propaganda, nos meios operacionais mais privilegiados para operacionalizá-la e em seu público destinatário por excelência. O que o livro mostra é como Vargas pode negociar e contar com bases mais amplas, nas quais as presenças dos militares, dos empresários e da Igreja Católica foram fatores fundamentais. Fazendo um contraponto, Peron não teve as mesmas possibilidades, precisando investir muito mais profunda e radicalmente em sua aliança com os setores populares e, em particular, com o movimento sindical, de onde emergiriam fortes lideranças peronistas. Essas questões de fundo, que remetem às conjunturas políticas nacionais e internacionais, são materializadas em estratégias de propaganda que precisam trabalhar de forma distinta com certas idéias, imagens e símbolos.
Mas, com frequência, a virtude e o vício habitam o mesmo lugar e, se a estratégia comparativa é um dos pontos fortes do livro, pode ser vista também como um seus pontos fracos. Isso porque, a autora, no geral, opera com a comparação utilizando-se fundamentalmente de uma escala "quantitativa", em que se assinala que um tema ou questão é mais ou menos presente, importante, prioritário, radical etc. O que quero observar aqui, considerando-se as singularidades de cada experiência, é que a comparação seria mais produtiva se seguisse uma lógica configuracional, isto é, se procurasse mapear o lugar e a feição específicos de um determinado tema, situando-o num certo campo de posições e significados.
Para tornar mais clara a observação, a questão da justiça social, por exemplo, não precisaria ser vista como menos prioritária no Brasil do que na Argentina, mas sim como tendo uma forma diferente e compreensível de tratamento, o que lhe confere um sentido particular, mas nem por isso menos central ao conjunto do projeto ideológico de ambos os países. Justicialismo e trabalhismo, decerto, não são "iguais" no que se refere à mobilização popular ou ao uso de apelos emocionais. Mas a questão do trabalho, com todos os seus desdobramentos, é capital na formulação das duas ideologias políticas, a despeito de ocupar um espaço particular em cada uma delas.
Como se vê, ganha-se muito com a leitura desse livro, que se embeleza e fortalece com a utilização de uma raro material iconográfico. Além disso, e para concluir, ele chega até nós em momento muito oportuno, já que as reflexões e a luta pela consolidação da democracia no Brasil se impõem mais uma vez.


Angela de Castro Gomes é professora de história do Brasil na Universidade Federal Fluminense (UFF).


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