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A revolução passiva
Uma interpretação original e inovadora da história moderna italiana
Cadernos do Cárcere. Vol. 5
O Risorgimento. Notas
Sobre a História da Itália
Antonio Gramsci
Tradução: Luiz Sérgio Henriques
Civilização Brasileira
(Tel. 0/xx/21/ 2585-2000)
448 págs., R$ 42,00
MODESTO FLORENZANO
Para expressar, numa fórmula
lapidar, a espécie de pontificado
exercido por Benedetto Croce na
historiografia italiana da primeira
metade do século 20, o historiador Ruggiero Romano, num livro
pequeno, mas precioso, "La Storiografia Italiana Oggi", de 1978,
afirma: "Porque não podemos
não ser crocianos" (parafraseando um ensaio do próprio Croce,
"Porque Não Podemos Não Ser
Cristãos"). Ora, tendo em vista a
hegemonia, para usar um conceito caro a Gramsci, que este passou
a exercer na historiografia italiana
a partir da segunda metade do
mesmo século, impõe-se a afirmação "porque não podemos não
ser gramscianos" (acrescente-se
que as duas paráfrases se aplicam,
em menor grau, evidentemente,
também à historiografia não-italiana).
Já em 1956, menos de dez anos
depois do início da publicação
dos "Cadernos do Cárcere", em
1948 (os que tratam do "Risorgimento" vieram à luz em 1949), o
historiador Giorgio Candeloro escrevia, no prefácio à sua "Storia
dell'Italia Moderna", que, graças a
Gramsci, tornava-se possível
"uma nova interpretação da história da Itália moderna, concentrada na análise do desenvolvimento do Risorgimento e da conclusão liberal-moderada, que
condicionou a seguir todo o desenvolvimento sucessivo da história da Itália".
Mas isso, evidentemente, no
campo da esquerda e do marxismo. Porque, do lado liberal-conservador, resistia-se a reconhecer
a originalidade e a inovação trazidas pela reflexão gramsciana.
Nas "Interpretazioni del Risorgimento", o grande livro (em tamanho e qualidade), de 1962, do
historiador crociano Walter Maturi, não só os escritos de Gramsci
não recebiam nenhum destaque
ou tratamento especial, mas também se criticavam as implicações
de sua interpretação do Risorgimento, bem como seu conceito de
jacobinismo, e resumia-se a crítica que o então jovem historiador
Rosario Romeo fizera, em 1956 e
1958 (reunidas em 1959 no livro
"Risorgimento e Capitalismo"), à
historiografia marxista, em geral,
e a Gramsci, em particular.
Romeo criticava a tese gramsciana sobre a "mancata rivoluzione agraria nel Risorgimento" (a
"revolução agrária não realizada
no Risorgimento"), sugerindo
que, se esta tivesse ocorrido, a via
italiana para o capitalismo teria
sido ainda mais lenta e retardada,
pois, sem a exploração dos camponeses, a acumulação capitalista
ficaria bloqueada. Dir-se-ia que
Romeo adaptava ao Risorgimento, isto é, à revolução burguesa
italiana, invertendo-as, as interpretações, coincidentes, dos historiadores conservadores ingleses
Trevor-Roper e Alfred Cobban
(apresentadas entre 1951 e 1955),
segundo as quais as revoluções inglesa de 1640 e francesa de 1789,
em vez de terem tornado possível
o desenvolvimento capitalista naqueles dois países, como sustentava desde sempre o marxismo, não
fizeram mais do que retardá-lo,
visto que o capitalismo já estava
em curso desde antes.
Historiadores gramscianos
Nascia, assim, o revisionismo
que, duas décadas depois, iria dominar a historiografia tanto da revolução inglesa quanto da francesa. Mas não a historiografia do Risorgimento, e isto, pode-se sustentar, tanto graças a Gramsci e ao
nutrido grupo de historiadores
que passou a se inspirar nos seus
escritos e sugestões (já se observou que, se não se pode falar na
existência de filósofos ou de críticos literários gramscianos, pode-se falar em historiadores gramscianos), quanto graças a historiadores como Franco Venturi
(1904-1994, integrante do "Partito
d'Azione", durante a Resistência)
e Gaetano Salvemini (1873-1957,
um dos fundadores do movimento "Giustizia e Libertà", em 1929).
Sobre Salvemini, um nome desconhecido no Brasil, bastante criticado por Gramsci nos escritos
sobre o Risorgimento, é preciso
que se saiba que seu lugar na cultura política e historiográfica italiana do século 20 só é inferior ao
de Croce e de Gramsci. Embora
ele próprio se visse como um intelectual e político franco-atirador,
foi considerado como um intelectual orgânico (outro termo caro a
Gramsci) da pequena burguesia,
assim como os dois primeiros o
foram da burguesia e do proletariado, respectivamente.
O que serve para demonstrar a
riqueza e complexidade da vida
política -e historiográfica- italiana no século 20, ou melhor, como bem lembrou Ruggiero Romano, no livro já citado, "a estreita relação entre política e história
que caracteriza toda a historiografia italiana de todos os tempos" e, em especial, Salvemini e
Gramsci. Indo um pouco mais
longe, sugiro que a originalidade e
a fecundidade do marxismo
gramsciano radicam de alguma
maneira nessa estreita relação entre política e história, mais precisamente na recusa por parte de
Gramsci em destronar o político
do centro da história, substituindo-o pelo social (e econômico),
como fizeram tanto o positivismo
quanto o materialismo histórico
e, um século depois, a chamada
Escola dos Annales.
Em outras palavras, em Gramsci (bem como em Salvemini e em
Venturi) o centro sempre foi ocupado pelo político e não pelo social (e econômico), como, em geral, entre marxistas (não gramscianos) e "annaliens". Daí porque
não faz sentido falar, em termos
de historiografia italiana, em reabilitação da história política, a
partir da década de 1980, como no
caso da historiografia francesa,
depois de meio século de predomínio absoluto da história social.
O que não significa que Gramsci
não perseguisse, como os fundadores e seguidores dos Annales,
uma história total, como se pode
ver na nota da pág. 256 (desta irrepreensível e digna de todos os méritos edição brasileira): "Camponeses e vida do campo. Elementos
orientadores para uma investigação: condições materiais de vida:
habitação, alimentação, alcoolismo, práticas higiênicas, vestuário,
movimento demográfico", segue-se um longo parêntese -discriminando taxas de natalidade e
mortalidade, casamentos, migração, questões de propriedade e
criminalidade etc.- e a frase:
"Orientação da psicologia popular nos problemas de religião e de
política, frequência escolar das
crianças, analfabetismo dos recrutas e das mulheres".
Há nessa passagem, bem como
em outras deste livro (que reúne
dois "cadernos especiais" e 14 "cadernos miscelâneos", escritos entre 1929 e 1935), mais do que um
programa de história social e do
cotidiano e não só para as classes
subalternas. Há uma interpretação genial do Risorgimento (eixo
central de toda a produção de
Gramsci no campo da história),
uma mina preciosa para o historiador, em termos de insights, formulações, procedimentos teóricos e conceituais.
Eis uma pequena amostra da
aguda visão histórica de Gramsci:
"O Risorgimento é um desenvolvimento histórico complexo e
contraditório, que se torna um todo a partir de todos os seus elementos antitéticos, de seus protagonistas e de seus antagonistas, de
suas lutas, das modificações recíprocas que as próprias lutas determinam e até mesmo da função
das forças passivas e latentes, como as grandes massas agrícolas,
além, naturalmente, da função
eminente das relações internacionais". Ele "se realizou sem "Terror", como "revolução sem revolução", ou seja, como "revolução
passiva'", gerando um "Estado
moderno... algo bastardo" e um
"transformismo "molecular'". E
da sua visão política do ofício do
historiador: "E, se escrever história significa fazer história do presente, é grande livro de história
aquele que, no presente, ajuda as
forças em desenvolvimento a se
tornarem mais conscientes de si
mesmas e, portanto, mais concretamente ativas e operosas".
Modesto Florenzano é professor de
história da USP.
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