São Paulo, quinta, 13 de agosto de 1998 |
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HENRIQUE FLEMING
Esses, porém, não são os problemas da ciência, para Horgan. Para ele a ciência carrega inevitavelmente a semente de sua morte, e essa semente é o seu sucesso: é a teoria de Bloom transportada à ciência. Como método para comprovar a sua tese, apresenta várias entrevistas com cientistas de renome, em sua maioria (segundo Horgan) apoiando a sua tese; alguns são contrários ou mesmo veementemente contrários. Sua idéia original, diz o autor, era deixar que o leitor tomasse sua própria decisão. No fim, resolveu deixar sempre bem clara a sua posição e o conseguiu, às vezes com alguma truculência. Nas entrevistas acontece de se perceber que o autor não está à altura do entrevistado. Isso é claro, por exemplo, na entrevista com o grande físico estatístico Kadanoff. Diz este que a tarefa mais importante da ciência é demonstrar a existência de leis naturais e que, uma vez isto feito, está feito; fazê-lo de novo não constitui progresso nessa empreitada. Horgan considera então Kadanoff como um apoiador de sua tese. No entanto, são coisas inteiramente diferentes! Em nenhum momento diz Kadanoff que não haverá a descoberta de leis mais sofisticadas e abrangentes do que as que temos hoje. Apenas que a descoberta de que a natureza obedece a leis já foi feita. E possivelmente considere que essa descoberta foi feita por Isaac Newton! O melhor exemplo dos abusos de Horgan está na entrevista com Edward Witten, um dos líderes da física teórica contemporânea. Witten é um físico de partículas elementares e o principal motor da teoria das supercordas. Esta propõe um progresso essencial para a física da microestrutura da matéria, para lá do famoso modelo padrão (que é o que temos de melhor hoje em dia). A teoria das supercordas padece do seguinte problema: as experiências cruciais para testá-la (e distingui-la do modelo padrão) não podem ser atualmente feitas, tal o porte do equipamento necessário para realizá-las. Ou seja, não sabemos se essa estrutura matemática é física. Vou usar o nome de "pré-teoria" para ela e suas congêneres. Antes de seu primeiro teste experimental, a teoria geral da relatividade, por exemplo, era também uma pré-teoria. O que pode atrair um físico para uma pré-teoria? No caso de Einstein havia, pelo menos, dois fatores: era uma generalização mais ou menos inevitável da relatividade restrita e resolvia o problema da igualdade entre a massa inercial e a massa gravitacional. No caso de Witten, ele mesmo explica claramente a Horgan que o que o ligou inexoravelmente à teoria das cordas foi perceber que nela a interação gravitacional era uma consequência inevitável das outras interações. Esse é um dos temas centrais da física: a busca da unificação das várias interações. E aqui a gravitação aparecia sem mesmo ter sido convidada! O difícil é explicar como um físico poderia ficar indiferente a esse pequeno milagre. A existência de uma pré-teoria é um sinal de vida, uma objeção clara à existência de uma paralisia da capacidade criativa no domínio do abstrato. Propõe idéias novas, novos caminhos. Pesquisas de Witten prévias às supercordas, mas igualmente pré-teóricas, levaram-no a resolver problemas tão importantes na matemática, que lhe foi concedida a medalha Fields, o maior dos prêmios a que um matemático pode aspirar, até então jamais outorgada a um físico. Uma riqueza em pré-teorias não invalida diretamente a tese de Horgan, mas mostra que o pilar no qual ela assenta está rachado: não há paralisia detectável em consequência do sucesso das teorias atuais. Compreensivelmente Horgan investe contra as pré-teorias, que ele chama de "ciência irônica". São rotuladas de física irônica a teoria das supercordas, o modelo inflacionário do universo, a cosmologia quântica. Não concede a Witten o direito de se dedicar à teoria das supercordas. Usa argumentos perigosos: ninguém conseguiu me explicar o que é, efetivamente, uma supercorda... Pode-se entender a sua fúria: deixara a crítica literária por causa da ironia; tornara-se um empirista radical. Seus inimigos são, agora, as pré-teorias. Seu relato da entrevista com Witten pode ser resumido assim: Witten é feio (tem um queixo enorme), arrogante e, o que Horgan imagina ser um insulto, aquilo que fez na matemática é mais importante do que o que fez na física. No final da entrevista, Witten, para lhe explicar o que considera a inevitabilidade das supercordas, imagina uma outra civilização e as diferentes maneiras pelas quais poderiam chegar às supercordas. É um recurso didático comum entre físicos. Eu mesmo o usei, nesta resenha, para explicar a descoberta de Yang e Lee. Pois bem, no sumário do livro encontra-se o item: "Edward Witten fala sobre supercordas e alienígenas"! O leitor terá notado que eu não gostei do livro. No entanto, ele tem suas virtudes: apresenta os cientistas como gente normal, com os defeitos comuns, na proporção usual, salvo talvez a vaidade. Várias histórias são deliciosas, sobretudo a do cheque de Gell-Mann. Murray Gell-Mann é um dos monstros sagrados da física das partículas elementares. Entre outras coisas, inventou os quarks, que julgamos ser os constituintes dos prótons e dos neutrons, ou seja, da matéria que pesa. Durante mais de uma década dominou a cena nessa área da física, quase como um oráculo (que difundia suas profecias, porém, em linguagem muito clara e precisa). Tornou-se um nome popular após a publicação de seu livro de divulgação "O Quark e o Jaguar" (Rocco), que versa sobre a área da ciência denominada "complexidade" (cujo fim também está incluído no "Diktat" horganiano). Após a entrevista, Horgan o acompanha ao aeroporto e aí Gell-Mann descobre que chegará ao seu destino sem dinheiro para o táxi. Horgan dá-lhe 50 dólares em troca de um cheque. Gell-Mann se afasta, retorna sobre seus passos e lhe diz: "Pense bem antes de descontar esse cheque: minha assinatura pode vir a valer bem mais do que 50 dólares". Nesse caso creio que a narrativa seja fiel. Gell-Mann é assim mesmo. Há muita informação no livro e uns poucos erros que só irritarão os especialistas. Embora eu tenha me atido à física, Horgan tem o mesmo a dizer sobre todas as ciências e até sobre a filosofia da ciência. Esta é outra objeção comumente feita à sua tese: como é possível que todas as ciências tenham chegado simultaneamente ao fim, se tiveram histórias e cronologias tão diferentes? Mas a opinião final deve ser a do leitor. O volume é bonito, a tipografia é de qualidade. Ótima lista de referências, que estende a utilidade do texto. Quanto à tese de Horgan, ninguém sabe se é verdadeira. E não é nem mesmo muito relevante, pois o progresso da ciência provém de lugares inesperados, não necessariamente da chamada "big science". Henrique Fleming é professor do Instituto de Física da USP. Próximo Texto | Índice |
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