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Os argumentos pré-socráticos
ALBERTO ALONSO MUÑOZ
Reconstruir os
argumentos dos filósofos pré-socráticos? Para
quem está habituado à
abordagem tradicional da aurora
do pensamento filosófico e científico ocidental, isso pareceria o
maior dos sacrilégios. Primeiro,
porque a maioria das antologias
tradicionais que recolhem os fragmentos dos pensadores que antecederam Platão (e não apenas Sócrates, já que muitos lhe foram
contemporâneos) recolhem apenas um conjunto de frases desconexas e enigmáticas. Querer encontrar nessa floresta de resíduos
a forma, ainda que rudimentar, de
um encadeamento argumentativo
pareceria temerário e, quem sabe,
até mesmo insano.
Segundo, porque esse não seria
o método adequado para analisar
a "alvorada" ou a "origem profunda" do pensamento no Ocidente. Além de só termos acesso a
fragmentos, e sobretudo por causa
disso mesmo, o fundamental seria
concentrar-se em examinar os
"recortes conceituais" que esses
pensadores produziram sobre o
real. Isto é, fazer filologia, mas
uma filologia que não se interessaria pela sintaxe, mas apenas pela
morfologia lexical. Ou, como diz
Heidegger em suas análises dos
pré-socráticos, caberia examinar
como eles começaram a história
das interpretações do Ser e, assim,
da longa história de seu esquecimento. E, além disso, o que garantiria que a forma argumentativa já
estaria caracterizando esses filósofos tão distantes no tempo?
Em "Filósofos Pré-Socráticos",
J. Barnes rompe com os postulados das interpretações correntes
desse período. Para ele havia, sim,
argumentos por detrás desses misteriosos fragmentos e é justamente
isto o que permite distinguir os
pré-socráticos das interpretações
mágico-religiosas que os precederam. E não é só, pois tais explicações distinguem-se das precedentes por várias outras características. São internas, já que evitam recorrer à intervenção arbitrária de
elementos extrafísicos (religiosos
ou mitológicos) para explicar os
fatos do universo: já não se afirma
que Zeus é o responsável pela chuva e pelo trovão, ou Poseidon o
causador dos terremotos. São,
além disso, sistemáticas, pois
"explicam a soma total dos eventos naturais empregando os mesmos termos e os mesmos métodos". Nada, portanto, de multiplicar os recursos explicativos
com novos elementos levantados
para cada novo caso. Finalmente,
essas explicações são econômicas:
com um par de operações (rarefação e condensação) e um único
elemento natural (o ar), Anaxímenes tentou explicar o conjunto dos
fenômenos físicos.
Certo, dirá o leitor tradicionalista, a maioria dos fragmentos dos
pré-socráticos parece de fato apresentar essas características. Mas
como reconstituir argumentos se
tudo o que se tem são fragmentos
-frases desconexas, soltas, na
maioria das vezes sem muito sentido? Não seria melhor, por prudência, sublinhar e comentar o
processo pelo qual eles criaram as
"categorias conceituais" com
que recortaram o mundo? Afinal,
qualquer tentativa arqueológica
de reencontrar os argumentos que
poderiam ter sustentado as teses
que esses fragmentos expressam
seria sempre provável e mesmo
mera elucubração.
Essa é, seguramente, a impressão de um leitor que folheie o volume clássico de H. Diels e W.
Kranz, "Die Fragmente der Vorsokratiker" ("Os Fragmentos dos
Pré-Socráticos") e muitas coletâneas que surgiram a partir dessa
obra. Afinal, ali a grande maioria
dos "fragmentos" aparece como
uma frase solta, muitas vezes enigmática, arrancada do contexto em
que aparecia citada ou parafraseada por outro autor da antiguidade.
Nessa forma, claro, tais fragmentos dirão muito pouco sobre o
argumento que poderia estar por
detrás daquelas afirmações. Tome-se apenas um, dentre os inúmeros exemplos que Barnes apresenta: a célebre frase, atribuída a
Anaximandro, de que "(as coisas)
devem prestar contas e reparação
umas às outras por suas injustiças,
conforme a sentença do tempo".
Em Diels-Kranz essa é a primeira
sentença do capítulo 12 e aparece
assim, solta no ar. Um leitor poderia elocubrar muita coisa em cima
dessa frase, utilizando os elementos históricos, literários e sobretudo culturais e antropológicos que
por acaso tiver à mão. E, num esforço de aproximação a essa frase
misteriosa, terminaria, talvez, numa teoria a respeito do pensamento grego antigo, de suas idiossincrasias e de como afinal tudo ali
era tão "diferente" de nossa maneira de pensar.
A OBRA
Filósofos Pré-Socráticos
Jonathan Barnes
Tradução: Júlio Fischer
Martins Fontes (Tel.011/239-3677)
368 págs., R$ 32,50
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Só que essa frase, dentro do contexto que a monumental obra de
Diels e Kranz não pôde reproduzir, aparecia no comentário de
Simplício, autor alexandrino neoplatônico, a "Física" de Aristóteles. Admitamos, o que é bem verossímil, mas tampouco é absolutamente seguro, que Simplício tenha tido uma boa cópia dos tratados de Anaximandro sobre a natureza. Pondo-a em seu contexto,
vemos Simplício dizer que Anaximandro foi um dos primeiros a introduzir o termo princípio ("arché") e que achava que o princípio das coisas (aquilo de onde elas
provêm e de que são feitas) era
"uma natureza infinita". Dessa
natureza infinita nasceriam as coisas existentes, nela sendo reabsorvidas, quando desaparecem.
Esse processo de expulsão e
reabsorção explica o surgimento e
a desaparição dos processos físicos e é considerado "justo" precisamente por ser natural e uma
lei cósmica. É assim que tudo deve
ser, as coisas devem surgir e desaparecer ao longo do tempo. "Porquanto devem prestar contas e reparação umas às outras por suas
injustiças, conforme a sentença do
tempo", diz Simplício, citando
textualmente a frase de Anaximandro e dizendo em seguida que
ele "se pronuncia a esse respeito
com palavras um tanto poéticas".
Reinserindo o fragmento em seu
contexto original, elimina-se muito da obscuridade dessa frase e
mantém-se a beleza de uma imagem poética que, afinal, nada tinha de muito misterioso. Ela era
apenas uma das maneiras de Anaximandro referir-se à inelutabilidade do vir-a-ser e perecer ou,
noutras palavras, ao processo pelo
qual se formam todos os eventos
no mundo físico. "O ponto que
me parece relevante", dirá Barnes, "não é que os pré-socráticos
apresentavam bons argumentos,
mas simplesmente que apresentavam argumentos". Todos sabemos que o mundo não surgiu e
não é feito de água ou que a pedra-ímã não tem alma, como sugeriu Tales. Eis exemplos de argumentos para teses falsas. Mas eis
também, antes de tudo, argumentos, ou seja, teses apoiadas em evidências.
O estilo oxfordiano, que insistia
na reconstrução dos argumentos e
desviava a filologia da morfologia
para a sintaxe representou, sem
exagero, uma revolução na
"scholarship" em filosofia antiga, rompendo a hegemonia dos
estudos antropológicos e da hermenêutica de origem heideggeriana que dominou a Europa continental até meados dos anos 70.
Meu único reparo à tradução brasileira refere-se ao seu título. "Filósofos Pré-Socráticos" é a tradução do título original, em inglês,
"Early Greek Philosophers" (de
1987), que, ao pé da letra, deveria
ser "os primeiros filósofos gregos". O problema é que Barnes
tem, além desta, uma outra obra,
de 1982, de muito maior fôlego cujo título em inglês não é outro senão "The Presocratic Philosophers".
Alberto Alonso Muñoz é doutorando em filosofia antiga na USP.
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