São Paulo, quinta, 13 de agosto de 1998 |
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice Uma poética da simetria
ALBERTO MARTINS
A simetria, como se vê, será um procedimento central dessa poética. Mas as possibilidades do espelhamento entre o eu e a língua, entre a língua e o mundo, entre a língua e a língua -e corro aqui todos os riscos de cometer um equívoco- se limitam a uma economia de cunho narcísico. Só nesse regime, a linguagem será espelho e, então sim, todos os jogos do espelho serão jogos de linguagem -a desnudar ao todo um tesouro de possibilidades verbo-virtuais. Acervo riquíssimo, sem dúvida, mas que se reduz à espessura da lâmina de uma superfície: aquela que reflete. Uma vez fora do raio desse foco, adquire uma complexidade de outra natureza o modo pelo qual a linguagem se inscreve no mundo e o mundo se inscreve, se representa e se presentifica na linguagem. É aí que a língua, sob a pena de encerrar-se num brilhante jogo de reflexos que passa ao largo da realidade, terá de dar abrigo a todas as opacidades -desejáveis e indesejáveis-, como o outro, os outros, o tempo, a história. No fundo, o que se quer indagar aqui é se, ao operar tão "rente" à superfície do código, ao investir alta dose de sua energia poética na investigação das superfícies, de seus ecos e desdobramentos, não estaria o poeta deixando escapar possibilidades de uma operação mais abrangente sobre o real. Talvez seja o caso do poema XX, onde dois "x" traçados à mão em vermelho vivo, numa gestualidade que reconhecemos facilmente como do "nosso século", se abatem sobre o "c" e o segundo "u" da palavra "seculum", grafada em sóbria tipologia romana. A intensa carga de cancelamento, obliteração e rasura dos "x", aliada à expressividade do gesto e da forma, convocam imediatamente a noção de diferenças, se é que não de confronto e superação, entre os tempos. Como se o vermelho e o violento século "XX" só afirmasse a sua própria temporalidade ao relegar a um segundo plano, estático, de letra morta, a experiência da antiguidade que o precedeu. Mas, como cinco letras permanecem visíveis, também podemos pensar não no cancelamento puro e simples da experiência precedente, mas numa atualização via destruição parcial -o que, de resto, não estaria longe de corresponder à verdade ou, pelo menos, a uma parcela de verdade do que foi a operação cultural moderna. Em ambos os casos, no entanto, o modo pelo qual as operações da cultura, da economia e da vida em sociedade rasuraram a experiência dos século anteriores, e de que forma isto acabou moldando concretamente a experiência do próprio poeta e de seus semelhantes -ou dessemelhantes-, tudo isso permanece intocado pelo poema. Não se pretende aqui que tal objeção esgote as qualidades ou o âmbito das proposições de "Rente"; nem -muito menos- que sejam desconhecidas do próprio autor. Antes, ao contrário: paralelamente à extremada consciência da linguagem, em mais de um momento ponteiam ao longo do livro as críticas à condição narcísica, à alienação da subjetividade numa sociedade de consumo ou, ainda, o seu reverso -o forte veio lírico que sobressai nos poemas que se referem à percepção da amada ou da natureza. Tudo isso, no entanto, ainda não é forte o suficiente para contrapor-se ao fascínio que o autor experimenta pelas operações de superfície. Mas será este, na nossa opinião, o principal desafio que João Bandeira terá de enfrentar, depois deste livro promissor. Alberto Martins é artista plástico, poeta e autor de "Poemas" (Duas Cidades). Texto Anterior | Próximo Texto | Índice |
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