São Paulo, quinta, 13 de agosto de 1998 |
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice Os passos perdidos de Bakhtin
PAULO BEZERRA
Em "Mikhail Bakhtin", os autores dão menos espaço à teoria do romance e mais à da linguagem, por considerá-la filosofia e estabelecerem de antemão uma estratégia de leitura centrada na combinação de um pensamento baseado na tradição da religião ortodoxa russa e no neokantismo. Neste sentido, estudam categorias bakhtinianas como o dialogismo, a relação autor-personagem e a categoria de inacabamento (prefiro inconclusibilidade) numa perspectiva kantiano-ortodoxa. A análise dessas categorias revela uma grande habilidade no trato de questões teóricas de extrema complexidade, como a percepção de que a categoria de simultaneidade é fundamental no pensamento bakhtiniano, o que está em perfeita consonância com a categoria de formação, núcleo central de todo esse pensamento, do qual derivam as categorias de "inacabamento" das personagens e seu mundo, de "grande tempo" e a própria concepção de romance como gênero em formação, nascido em plena luz do dia da história, esta um processo igualmente em formação e eternamente inconcluso. Mas se a combinação das vertentes filosófico-religiosas lança luz sobre matrizes da reflexão teórica bakhtiniana, ela corre o risco de restringir essas matrizes com o desprezo de outras e moldar essa reflexão em um conduto estreito suscetível de resvalos reducionistas. Os autores fazem uma bela análise do dialogismo na relação entre simples falantes ou entre autor e personagens no processo de construção da obra literária. Mas, quando lemos que "Bakhtin logrou traduzir seus interesses teológicos numa filosofia do discurso", que sua meta era "repensar todas (sic!) as categorias do pensamento moderno em termos de tradição ortodoxa", que "o pensamento de Bakhtin é (...) uma meditação sobre os mistérios inerentes à ação de Deus fazendo pessoas"; "o caráter distintivo que a imagem de Cristo tem em Dostoiévski resulta no papel central da polifonia em sua ficção", "a relação dos autores com suas personagens é análoga às relações de Deus com as criaturas humanas" -nós nos deparamos com um reducionismo teológico que não podemos aceitar (embora encontre algum fundamento em um texto de 1919 que é estendido a toda a obra do autor sem considerar a sua evolução). Quando lemos que "a polifonia dostoievskiana deve ser concebida em contraposição (sic!) ao significado mais amplo do diálogo na existência humana", vemos uma flagrante contradição com tudo o que Bakhtin afirma em "Problemas da Poética de Dostoievski" e toda sua reflexão posterior sobre dialogismo e polifonia, termos que traduzem a interação de vozes nos diálogos entabulados no universo social e representadas no romance. Esse reducionismo estende-se também à teoria bakhtiniana do romance e até mesmo à carnavalização, pois os autores consideram que Bakhtin construiu essa teoria em polêmica com a atualidade soviética, particularmente com o chamado realismo socialista. Há em Bakhtin uma polêmica com a dialética hegeliana, particularmente com algumas de suas categorias. Para Bakhtin o eu só existe em interação com o outro, porque "ser significa ser para o outro e, através dele, para si mesmo". Na dialética de Hegel existe a categoria do ser no outro ("Anderssein"): trata-se do "seu outro", que se distingue do outro em sentido geral, não é uma oposição a qualquer outro, mas a um objeto rigorosamente definido, de onde o "seu outro" medrou como negação daquele. É claro que a solução de Bakhtin não passa pelo viés da dialética hegeliana, porque ele não opera com tese e antítese, mas com interação eu-outro. Bakhtin constrói sua teoria do romance também em polêmica com Hegel e em interação com Lukács, que vê o romance como algo em formação, como um processo, tese cara a Bakhtin. A tradução é clara, vencendo com galhardia o desafio de traduzir um livro que inventaria a maioria das categorias do complexo pensamento bakhtiniano. Com exceção da manutenção do termo inglês "self" como tradução do "yá" (eu) russo, que a mim parece um elemento estranho no corpo do dialogismo, para o qual a palavra estrangeira já é um "outro" (e, por isso, o par "self"-outro se afigura "outro-outro"), o tradutor desenvolveu um trabalho complexo de recriação de neologismos russos já vertidos para o inglês. Nota: 1. "Marxismo e Filosofia da Linguagem" (Hucitec), "Problemas da Poética de Dostoiévski" (Forense Universitária), "Questões de Literatura e Estética" (Hucitec), "A Cultura Popular na Idade Média e no Renascimento - O Contexto de François Rabelais' (Hucitec) e "Estética da Criação Verbal" (Martins Fontes). Paulo Bezerra é professor de literatura russa na USP. Texto Anterior | Próximo Texto | Índice |
|