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Nós somos um diálogo
BENEDITO NUNES
Depois dos anos 60, publicou-se pelo menos
um livro filosófico raro,
daqueles que espelham
na sua diversificada matéria, na
sua exposição dubitativa e tortuosa, o embate do pensamento para
dar forma à questão investigada:
"Verdade e Método".
Desde a Antiguidade grega, sob a
custódia do deus mensageiro Hermes, patrono-mor da interpretação de Homero na época helenística e depois do labor interpretativo
das Escrituras hebráico-cristãs, a
hermenêutica é, na acepção corrente e generalizada, a arte de extrair as mensagens implícita ou
explicitamente contidas nos escritos literários, jurídicos ou religiosos. Sua incumbência consiste,
portanto, na interpretação dos
textos, mediante um trabalho de
exegese. Como então passar dessa
hermenêutica-arte, ou técnica,
para a hermenêutica filosófica, de
que "Verdade e Método" traz o
delineamento? A passagem talvez
nos seja indicada pelo uso, mais
dilatado do que se imagina, até fora do domínio da escrita, do ato de
interpretar, pois que nos basta falar com alguém em nossa própria
língua ou numa língua estrangeira, para já estarmos interpretando
e sendo interpretados, na medida
em que compreendemos e nos fazemos compreender.
Ora, é precisamente desse fato
curial da compreensão a relevante
questão investigada no livro de
Gadamer de que depende a arte ou
a técnica da interpretação dos textos. A compreensão não vem depois da vida, mas a permeia em
seus momentos todos. Compreendemos o outro quando com ele falamos; uma ferramenta quando a
utilizamos; os acontecimentos cotidianos quando nos atingem; o
ambiente ou o mundo em que vivemos. Compreender é uma atitude mais primária do que o exercício do conhecimento científico, a
teoria no sentido estrito. Por ser
primária, é curial, e por ser curial,
inapercebida. Podemos compreender sem conhecer cientificamente, mas não podemos conhecer cientificamente sem antes termos compreendido a coisa de que
se trata. Daí dizer-se que a compreensão é adesiva, envolvendo,
como diz Gadamer, uma relação
de pertença ao que nos rodeia.
No que chamamos de interpretação, a compreensão se expressa,
se traduz, se explicita. Daí a afirmativa de Heidegger, no parágrafo 32 de "Ser e Tempo" (um dos
mais próximos e reconhecidos antecedentes de "Verdade e Método", que dele faz expressa menção), de que interpretar é desenvolver "as possibilidades projetadas na compreensão". Mais ainda, a interpretação não pode fazer-se sem pressuposto; e esse
pressuposto é a prévia compreensão daquilo que se interpreta, ou
seja, a adesão, a pertença a que antes nos referimos, e que se desdobra num nexo referencial (a situação na qual estamos), numa perspectiva que lhe é correlata (modo
de ver) e nos conceitos em que se
explicita (modo de conceber).
Desse modo, o interpretar manifesta, antes de tudo, o compreender a que se acha aderido. Se assim
é, os enunciados heideggerianos,
que acabamos de registrar, implicam a admissão de uma intrínseca
circularidade da interpretação.
Quer isso dizer que nesse círculo
hermenêutico, traçado por Heidegger e adotado por Gadamer, e
dentro do qual já nos encontramos, recai a mesma hermenêutica-arte, a partir de nosso enquadramento fáctico no mundo, como esse ente temporal, falante, capaz de discurso, que somos, com a
dupla aptidão de compreender-se
e interpretar-se -de compreender-se porque esse ente, o "Dasein" (1), existe projetando as
suas possibilidades, e de interpretar-se, porque primeiramente se
dá conta, segundo elas, de si mesmo, das coisas e dos objetos que se
lhe apresentam, percebendo-se e
percebendo-os "como" isso ou
"como" aquilo. O "Dasein" está
sempre nesse círculo de uma compreensão já atuante, abrindo-nos
sempre ao mundo, na situação de
intérpretes para os quais nada é
indiferente e tudo adquire imediato sentido, e que é a matriz da experiência e de seu caráter antecipativo, como estrutura significativa que condiciona e possibilita a
exegese dos textos, o conhecimento científico, o fazer artístico, as
expectativas do futuro e as interrogações sobre o passado.
Interpreto os textos pelo mesmo
movimento compreensor que me
permite interpretar-me. A exegese
de um escrito não constitui um
mero ato de saber e de erudição; é
um ato que me empenha, que me
compromete, que me põe em causa como existente, mobilizando-me a condição temporal inserta entre "o presente das coisas
presentes" e aquele outro presente, a mim disponível mediante testemunhos, sejam escritos sejam
orais, das coisas passadas. Pelo laço de pertença, estaria a interpretação do lado da verdade originária do "Dasein".
Por sua vez, o conhecimento
científico, como possibilidade determinada do "Dasein", tem no
método o meio de acesso aos seus
vários campos. O método é a via
que lhe permite concretizar-se objetificando-os, isto é, convertendo-os em objetos de proposições
coerentes, por sua vez fundamentadas nesse mesmo processo metodológico. Dá-se, porém, que a
objetificação metodológica traz
em si mesma uma atitude de distanciamento relativamente ao que
se conhece, atitude essa que não só
se opõe à anterior atitude de adesão, de pertença, correspondente
à verdade situacional do "Dasein", como também a desconecta, neutraliza ou abstrai, alienando-nos dela, onde quer que possa
introduzir-se, no fazer artístico ou
no conhecimento histórico, que
responde às interrogações sobre o
passado.
Restabelecer as conexões da verdade nesses domínios, recuperá-los, portanto, como um prolongamento daquela experiência
matricial pré-científica, de que
mesmo a ciência se origina, e que
se trata de desalienar; soltar as
amarras metodológicas do conhecimento histórico, que encontra
sempre na interpretação dos textos-fontes o seu teste crucial; retirar da avaliação da arte a servidão
moderna, mais schilleriana do que
kantiana, ao juízo estético; firmar
as condições do compreender -a
compreensão da compreensão;
restaurar, enfim, o direito da interpretação em sua maior generalidade, circulando do texto para o
mundo, lido como um texto que
tem significações várias, sustentadas todas pela linguagem, que é o
solo mesmo da nossa experiência
(Gadamer chama à linguagem de
"ser") e, ainda, levar essa generalidade reconquistada ao pólo de
uma reflexão das filosofias, todas
dependendo de uma cadeia histórica de atos interpretativos -eis o
movediço espectro da filosofia
hermenêutica delineada em
"Verdade e Método".
"A questão é de saber", propõe-nos Paul Ricoeur num comentário arguto, "até que ponto a
obra de Gadamer merece denominar-se: "Verdade e Método'; talvez fosse preferível intitular-se
"Verdade ou Método'".
A verdade da experiência hermenêutica vai de encontro ao método nas duas grandes verificações
feitas por Gadamer: primeiramente, sua crítica à cultura estética
-cultura das aparências- pela
qual começa seu livro, recapitulando a ascensão das noções de
gosto e de vivência ("Erlebnis"),
esta última posta em vigor, de diferentes maneiras por Dilthey e
Husserl -e, em seguida, na segunda parte toda ("A Extensão da
Questão da Verdade à Compreensão nas Ciências do Espírito"),
num esforço analítico de destrinçamento da consciência histórica,
sua crítica à hermenêutica romântica de Schleiermacher, à "Aufklärung" (Ilustração) e ao historicismo de Droysen, Ranke, Dilthey
e Hegel.
A OBRA
Verdade e Método (Traços Fundamentais de uma Hermenêutica Filosófica)
Hans George Gadamer
Tradução: Paulo Meurer
Vozes (Tel. 011/3159-1236)
731 págs., R$ 59,00
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A consciência estética, que legitima a obra de arte como objeto de
juízo de gosto, enquanto produto
da vivência do artista referendada
pela vivência do receptor, é sempre, como observa Gadamer, num
escrito de 1965 ("A Universalidade do Problema Hermenêutico"),
"uma consciência segunda, segunda relativamente à pretensão
imediata à verdade que emana da
obra de arte". Essa verdade consiste num modo lúdico de representação, que se elabora como um
jogo e que opera como tal: um jogo de configuração, semelhante
àquele levado a cabo pelo ator
quando "imita" o seu personagem, isto é, quando interpreta-o.
Rembrandt interpreta-se, configurando seus diversos auto-retratos. Cézanne configura a "natureza morta" das maçãs, interpretando-as de diferentes maneiras. A
pintura não pode fugir a uma gestualística sacramental, que vem do
porte religioso da imagem, a crédito do status ontológico do quadro. Quando o pintor pega no pincel, estaria trazendo para dentro
do quadro, independentemente
de sua vontade, com uma certa
técnica, com um certo estilo, uma
tradição invasora, por ele aceita
ou contrariada. De qualquer forma, o que se lê no quadro não é a
alma do pintor.
Se fosse o contrário, Schleiermacher teria razão: interpretar a obra
de um artista, de um poeta, seria
determinar-lhe a intenção autoral;
o exegeta a conheceria mais de
perto do que o seu próprio autor.
A ter Schleiermacher razão, conhecer o Evangelho de São João
seria, antes de nada, conhecer São
João. Gadamer rejeita esse postulado da escola romântica. O sentido de um texto literário ou religioso subsiste para além de seu autor
e independentemente dele. O texto nos fala, nos diz algo e, por isso,
é interpretável hoje, como será interpretável amanhã, de modo diferente. "Vamos aos fatos",
dir-nos-ia porém um representante da "Aufklärung". "Este lê o
texto joanino como protestante,
aquele como católico, um terceiro
como historiador da Palestina. Se
varrêssemos todas essas pressuposições, talvez nas linhas escritas
pudesse assomar um sentido prístino."
A resposta de Gadamer é que
não há sentido prístino e que varrer as pressuposições implicaria,
como se fosse possível sair do círculo hermenêutico, em impedir as
interpretações, uma vez que, como vimos anteriormente, estas
não existem sem aquelas. O que a
"Aufklärung" visava, ao encontro desse sentido prisco, era a interpretação não preconceituosa,
que afastasse a tradição da autoridade e a autoridade da tradição,
tal como defendida pelos românticos. Mas nisso os românticos estavam certos.
A interpretação de um texto não
começa no grau zero da escrita ou
num patamar de sentido nulo a ser
preenchido, pouco a pouco, pelo
verdadeiro. Ela começa "in media
res", com certos referenciais, numa determinada perspectiva. O
preconceito nada mais é do que o
correspondente histórico da antecipação da experiência humana.
Mas constitui a única entrada possível na matéria -entrada a que
necessariamente não ficaremos
presos. Podemos corrigir adiante
o preconceito; mas, sem jamais
rompermos inteiramente com as
pressuposições, nossa interpretação avança segundo uma dialética
peculiar, imposta pelo próprio
texto, e que vale para toda consciência histórica.
Numa medida mais larga, o preconceito, como antecipação da experiência humana, atesta o vínculo com a tradição de que somos
partícipes. É o que Gadamer chama de "consciência-da-história
dos efeitos" ("Wirkungsgeschichtliches Bewusstsein"): consciência a meias, certamente, porque, segundo nos diz em outro de
seus escritos, "determinada por
um devir histórico real, de tal forma que ela não possui a liberdade
de situar-se em face do passado".
No entanto, é na direção do passado que avança o historiador, seguindo a pista, o vestígio, que lhe
deixou uma fonte documental. E
nisso cumpre a regra hermenêutica de chegar ao todo por meio da
parte, ao universal por meio do
particular. Mas como avança?
Ainda aqui a iniciativa não vem
por completo do historiador. Pois
se ele, historiador, interpela o texto, deve-se isso à capacidade do
texto de propor-lhe as perguntas
cujas respostas somente o que está
escrito pode lhe dar, fazendo com
que avance na direção do passado.
Mas não avançamos para dentro
de uma época, de um período do
passado, reconstituído com a precisão que os historicistas, os positivistas da história, esperariam alcançar. O tempo decorrido não é
neutro: interpôs entre nós e a sociedade pretérita uma distância
insuperável -o que não significa
bloqueio, fechamento, mas a
abertura, sobre essa sociedade outra, de uma perspectiva que só o
nosso presente pode dar-nos.
Compreendemos essa época distante, infamiliar, aproximando-a
do presente, do familiar, onde nos
situamos. Essa dialética da proximidade e da distância, completa-se pela apreensão da diferença
entre as duas sociedades, a nossa e
a pretérita, afastadas entre si pelo
tempo. Uma não se identifica com
a outra; são os contornos, os "horizontes" das duas que se fundem;
e, por isso, ao compreendermos
aquela em função da nossa, compreendêmo-la de modo diferente.
É um problema semelhante ao da
aplicação das leis do direito -redimensionadas pelas necessidades
do presente. Para Gadamer, a hermenêutica jurídica é o guia prático
da experiência hermenêutica, cujos limites e possibilidades estão
circunscritos pela linguagem, assunto da terceira e última parte de
"Verdade e Método" ("A Virada
Ontológica da Hermenêutica no
Fio Condutor da Linguagem"),
sobre a qual vou ser brevíssimo.
A linguagem que o filósofo considera é a que, como suporte da
experiência humana, extravasa a
ciência da linguagem, resvalando
do método para a verdade da pertença ao mundo, ao tempo e à história. A experiência humana não é
linguística e sim linguajeira
("spraclich"): o falar dos textos,
das obras de arte, o entender-se e
o desentender-se uns com os outros, a imensa, penetrante conversação humana e a sua tradutibilidade de universo linguístico para
universo linguístico. Parece que
estamos a ouvir a ressonância do
ensinamento de Heidegger extraído de Hölderlin: nós somos um
diálogo.
Por último, gostaria de ressaltar,
diante das dificuldades extremas
que oferece um texto tortuoso, labiríntico, como esse de Gadamer,
a tarefa meritória que foi traduzir
"Verdade e Método". Mas a tradução incorre em inúmeras falhas.
Erros de revisão? Não só. Nenhuma dúvida tenho acerca da competência do tradutor no manejo da
língua alemã. Mas tantas são as
impropriedades de expressão e os
déficits sintáticos em nossa língua,
que só poderíamos desejar, em defesa da "última flor do Lácio",
que a obra traduzida viesse a ter
logo uma segunda edição, rigorosamente revista e aportuguesada.
Nota:
1. A palavra alemã "Dasein" significa
"existência" ou "estar presente". Entretanto, no pensamento de Heidegger, esta palavra se converte em conceito e, assim,
traduz o objeto da análise do homem enquanto existente: a presença do ser humano no mundo ou, ainda, o modo de ser
do homem. Traduz-se, também, enquanto
conceito heideggeriano, pela expressão
"ser-aí" (nota da Redação).
Benedito Nunes é professor na Universidade
Federal do Pará e autor de "Crivo de Papel" (Ática), entre outros.
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