São Paulo, sábado, 13 de outubro de 2001

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O caráter russo

A Ópera na Rússia
Lauro Machado Coelho
Perspectiva
(Tel. 0/xx/11/3885-8388)
248 págs., R$ 32,00

JORGE DE ALMEIDA

O czar Pedro 1º, o Grande, nem se interessava muito por música. Apesar disso, não mediu esforços para a contratação de uma companhia de ópera alemã, a primeira a se instalar na Rússia, no início do século 18. Os acordes e trinados da civilização, que lembravam em italiano e francês as glórias da Antiguidade clássica, poderiam finalmente iluminar a atrasada elite rural do país. Mas o empenho modernizador teve fôlego curto: as récitas importadas foram logo substituídas por animadas festas cortesãs. Planejada como ponte para a Europa, a cidade de São Petersburgo preferia se iluminar com bailados, comédias e fogos de artifício.
Menos de dois séculos depois, o compositor russo César Antônovich Cui proclamava, sem falsa modéstia: "A ópera, hoje, tem, em nosso país, um nível mais alto do que na Europa Ocidental". Os caminhos e descaminhos dessa evolução constituem o tema e o interesse do livro "A Ópera na Rússia", o mais recente lançamento da coleção "História da Ópera", de Lauro Machado Coelho.
Neste quarto volume, assim como nos outros já publicados, a indefinição formal entre obra de referência, ensaio introdutório e comentário erudito prova-se antes um mérito do que um defeito. Mesmo quando as inevitáveis listas de gravações atrapalham a fluência do texto, o fio condutor garante o interesse da leitura, pois a obra pretende ser não apenas uma coletânea de enredos parafraseados, como geralmente ocorre nesse tipo de publicação, mas também uma apresentação do contexto artístico e social no qual as óperas foram concebidas.
No caso de "A Ópera na Rússia", as considerações musicais e as introduções históricas de Lauro Machado Coelho ganham um interesse ainda maior, pois o autor conhece profundamente a língua e a literatura russas. Sua experiência como tradutor da poesia de Anna Akhmátova e seu domínio da complicada história do império contribuem para a explicação dos enredos, muitas vezes obscuros, do período áureo da ópera nacional russa, de Glinka a Rakhmáninov. Os compositores da fase soviética, segundo o prefácio, serão tratados em um próximo volume, dedicado à ópera contemporânea.
O caminho para a afirmação da cultura nacional, em um país periférico, teve de enfrentar a arrogância "cultivada" da aristocracia russa, que no século 19 educava seus filhos em francês e alemão. "Música de Cocheiros" foi a primeira reação da elite à utilização do russo em óperas sérias, mesmo quando elas exaltavam temas patrióticos e edificantes, como em "A Vida pelo Czar", de Glinka, cuja estréia em 1836 é considerada o marco inaugural da ópera romântica russa.
A intenção nacionalista, além disso, esbarrava na fragilidade da educação musical do país. O efeito épico de cenas trágicas de batalha e árias heróicas sobre momentos fundamentais da história russa acabava sendo desvirtuado pelo ridículo, pois o público não continha a gargalhada diante da pronúncia equivocada dos cantores alemães e italianos que predominavam nas cortes de Moscou e São Petersburgo.
Nesse sentido, os capítulos do livro que tratam da formação do sistema musical russo são de especial interesse para o leitor brasileiro, pois sugerem paralelos interessantes entre o nacionalismo romântico dos dois países periféricos. A mesma atitude empenhada que no Brasil configurou o sistema literário, na Rússia gerou as condições necessárias para o surgimento de grandes escolas e obras musicais.
O nacionalismo dos compositores russos se alimentava do movimento pan-eslavista de meados do século 19, que incentivou a nova geração de escritores românticos do Leste Europeu a buscar formas e meios de expressão adequados à própria língua.
O autor fundamental no processo de consolidação da literatura russa, Alexander Púshkin, foi também a fonte de quase todas as obras mais importantes da ópera nacional. De Glinka e Dargomyjski, os pais da música russa, a Rímski-Kórsakov, Mússorgski, Borodín e Tchaikóvski, todos compuseram óperas e poemas sinfônicos sobre os poemas, contos e peças de Púshkin, o escritor que melhor havia conseguido exprimir as contradições e anseios da "alma russa".
Essas contradições também estão presentes no confronto, muitas vezes violento, entre as correntes cosmopolitas e nacionalistas. Em vez de tratar esse embate de forma simplista, Machado Coelho ressalta o solo comum no qual as polêmicas se desenvolviam. Assim como os fundamentos da música acadêmica européia ecoavam nas peças do Grupo dos Cinco -o "poderoso punhado" de compositores dedicados a revolucionar a ópera nacional-, os autores cosmopolitas mais importantes, como Tchaikóvski, acabavam incorporando a suas melodias e ritmos da música popular.
Oscilando entre a grandiosidade épica e a simplicidade rústica, entre cenas intimistas e descrições de batalhas e revoltas, a originalidade melódica, orquestral e harmônica de todos esses compositores tinha como tema fundamental a representação do "caráter" do povo russo. Theodor Adorno, em seus comentários à estréia alemã da "Khovânshtchina", de Mússorgski, examinou as consequências artísticas dessa ênfase nacionalista na construção musical de uma identidade comunitária inexistente. A música russa desconheceria a noção de indivíduo, buscando, mesmo em suas formas mais elaboradas, a justaposição de elementos da tradição popular, autênticos ou inventados.
Uma cena do "Ievguêni Oniéguin", de Tchaikóvski, composto na década de 1870, traduz bem a sedimentação musical dessa dialética histórica. Um grupo de camponeses retorna de um pesado dia de trabalho, lamentando o corpo doído e as mãos esfoladas. Duas jovens aristocratas, entediadas após um longo dueto sobre o sentido do amor, saem à varanda. "A colheita está no fim", diz um dos trabalhadores. "Excelente", responde a proprietária das terras, "agora, cantem alguma canção alegre". A música respira, como para tomar fôlego. Os camponeses fazem uma roda e uma dança popular irmana a todos os presentes. Anos mais tarde, a melodia será outra.


Jorge Mattos Brito de Almeida é doutor em filosofia e professor de estética na Universidade São Judas Tadeu.


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