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O caráter russo
A Ópera na Rússia
Lauro Machado Coelho
Perspectiva
(Tel. 0/xx/11/3885-8388)
248 págs., R$ 32,00
JORGE DE ALMEIDA
O czar Pedro 1º, o Grande, nem
se interessava muito por música.
Apesar disso, não mediu esforços
para a contratação de uma companhia de ópera alemã, a primeira
a se instalar na Rússia, no início
do século 18. Os acordes e trinados da civilização, que lembravam em italiano e francês as glórias da Antiguidade clássica, poderiam finalmente iluminar a
atrasada elite rural do país. Mas o
empenho modernizador teve fôlego curto: as récitas importadas
foram logo substituídas por animadas festas cortesãs. Planejada
como ponte para a Europa, a cidade de São Petersburgo preferia se
iluminar com bailados, comédias
e fogos de artifício.
Menos de dois séculos depois, o
compositor russo César Antônovich Cui proclamava, sem falsa
modéstia: "A ópera, hoje, tem, em
nosso país, um nível mais alto do
que na Europa Ocidental". Os caminhos e descaminhos dessa evolução constituem o tema e o interesse do livro "A Ópera na Rússia", o mais recente lançamento
da coleção "História da Ópera",
de Lauro Machado Coelho.
Neste quarto volume, assim como nos outros já publicados, a indefinição formal entre obra de referência, ensaio introdutório e comentário erudito prova-se antes
um mérito do que um defeito.
Mesmo quando as inevitáveis listas de gravações atrapalham a
fluência do texto, o fio condutor
garante o interesse da leitura, pois
a obra pretende ser não apenas
uma coletânea de enredos parafraseados, como geralmente ocorre nesse tipo de publicação, mas
também uma apresentação do
contexto artístico e social no qual
as óperas foram concebidas.
No caso de "A Ópera na Rússia", as considerações musicais e
as introduções históricas de Lauro Machado Coelho ganham um
interesse ainda maior, pois o autor conhece profundamente a língua e a literatura russas. Sua experiência como tradutor da poesia
de Anna Akhmátova e seu domínio da complicada história do império contribuem para a explicação dos enredos, muitas vezes
obscuros, do período áureo da
ópera nacional russa, de Glinka a
Rakhmáninov. Os compositores
da fase soviética, segundo o prefácio, serão tratados em um próximo volume, dedicado à ópera
contemporânea.
O caminho para a afirmação da
cultura nacional, em um país periférico, teve de enfrentar a arrogância "cultivada" da aristocracia
russa, que no século 19 educava
seus filhos em francês e alemão.
"Música de Cocheiros" foi a primeira reação da elite à utilização
do russo em óperas sérias, mesmo
quando elas exaltavam temas patrióticos e edificantes, como em
"A Vida pelo Czar", de Glinka, cuja estréia em 1836 é considerada o
marco inaugural da ópera romântica russa.
A intenção nacionalista, além
disso, esbarrava na fragilidade da
educação musical do país. O efeito épico de cenas trágicas de batalha e árias heróicas sobre momentos fundamentais da história russa acabava sendo desvirtuado pelo ridículo, pois o público não
continha a gargalhada diante da
pronúncia equivocada dos cantores alemães e italianos que predominavam nas cortes de Moscou e
São Petersburgo.
Nesse sentido, os capítulos do livro que tratam da formação do
sistema musical russo são de especial interesse para o leitor brasileiro, pois sugerem paralelos interessantes entre o nacionalismo
romântico dos dois países periféricos. A mesma atitude empenhada que no Brasil configurou o sistema literário, na Rússia gerou as
condições necessárias para o surgimento de grandes escolas e
obras musicais.
O nacionalismo dos compositores russos se alimentava do movimento pan-eslavista de meados
do século 19, que incentivou a nova geração de escritores românticos do Leste Europeu a buscar
formas e meios de expressão adequados à própria língua.
O autor fundamental no processo de consolidação da literatura
russa, Alexander Púshkin, foi
também a fonte de quase todas as
obras mais importantes da ópera
nacional. De Glinka e Dargomyjski, os pais da música russa, a
Rímski-Kórsakov, Mússorgski,
Borodín e Tchaikóvski, todos
compuseram óperas e poemas
sinfônicos sobre os poemas, contos e peças de Púshkin, o escritor
que melhor havia conseguido exprimir as contradições e anseios
da "alma russa".
Essas contradições também estão presentes no confronto, muitas vezes violento, entre as correntes cosmopolitas e nacionalistas.
Em vez de tratar esse embate de
forma simplista, Machado Coelho
ressalta o solo comum no qual as
polêmicas se desenvolviam. Assim como os fundamentos da
música acadêmica européia ecoavam nas peças do Grupo dos Cinco -o "poderoso punhado" de
compositores dedicados a revolucionar a ópera nacional-, os autores cosmopolitas mais importantes, como Tchaikóvski, acabavam incorporando a suas melodias e ritmos da música popular.
Oscilando entre a grandiosidade épica e a simplicidade rústica,
entre cenas intimistas e descrições
de batalhas e revoltas, a originalidade melódica, orquestral e harmônica de todos esses compositores tinha como tema fundamental a representação do "caráter" do povo russo. Theodor
Adorno, em seus comentários à
estréia alemã da "Khovânshtchina", de Mússorgski, examinou as
consequências artísticas dessa ênfase nacionalista na construção
musical de uma identidade comunitária inexistente. A música
russa desconheceria a noção de
indivíduo, buscando, mesmo em
suas formas mais elaboradas, a
justaposição de elementos da tradição popular, autênticos ou inventados.
Uma cena do "Ievguêni Oniéguin", de Tchaikóvski, composto
na década de 1870, traduz bem a
sedimentação musical dessa dialética histórica. Um grupo de
camponeses retorna de um pesado dia de trabalho, lamentando o
corpo doído e as mãos esfoladas.
Duas jovens aristocratas, entediadas após um longo dueto sobre o
sentido do amor, saem à varanda.
"A colheita está no fim", diz um
dos trabalhadores. "Excelente",
responde a proprietária das terras, "agora, cantem alguma canção alegre". A música respira, como para tomar fôlego. Os camponeses fazem uma roda e uma dança popular irmana a todos os presentes. Anos mais tarde, a melodia será outra.
Jorge Mattos Brito de Almeida é doutor em filosofia e professor de estética
na Universidade São Judas Tadeu.
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