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Espoliação e resistência
A Ferida de Narciso - Ensaio
de História Regional
Evaldo Cabral de Mello
Senac (Tel. 0/xx/11/3884-8122)
113 págs., R$ 12,00
MARCUS J.M. DE CARVALHO
Todo leitor é um chato. Borges dizia isso de uma maneira mais sofisticada, ao
lembrar que o leitor pode exigir o que
quiser de um texto. É como se um livro,
depois de publicado, deixasse de ser do
autor, pois qualquer um pode dispor de
suas idéias como bem entender. É por isso que exigimos tanto de autores reconhecidos. Evaldo dispensa até sobrenome entre os que gostam de história, esse
ramo rigoroso do conhecimento que tem
um objeto tão fugidio -o homem no
tempo- que termina criando um encontro entre a ciência, a filosofia e a arte.
É quase fatal, portanto, que todo grande
historiador também seja um grande escritor.
Neste ensaio enxuto, erudito e apaixonado, Evaldo mergulha na questão do regionalismo, trazendo algumas idéias originais e outras nem tanto, mas que estavam dispersas em sua extensa obra historiográfica. O Pernambuco enfocado não
é o atual Estado, mas a antiga capitania e
suas anexas, que hoje chamamos de Nordeste. Esse Pernambuco é tratado com
um carinho quase antropomórfico pelo
autor, que lhe imputa vontades e frustrações. Sem diatribes nem conformismo, é
abordado o surgimento do regionalismo,
como uma resposta a um longo processo
que criou e manteve assimetrias que fincaram suas raízes mais profundas no século 19, quando o Nordeste pagou o preço da unidade nacional. Depois de sintetizar uma massa de evidências, a maioria
das quais bastante conhecidas, conclui:
"O Império promoveu assim uma
transferência maciça de recursos governamentais do norte para o centro-sul,
num processo de espoliação fiscal aparentado às situações coloniais de tipo
clássico".
Isso já foi dito por gente ligada à Cepal e
até por brasilianistas. Mas o forte de Evaldo é a sua capacidade de articular processos econômicos não apenas com a política e seu complexo terreno discursivo,
mas também com idéias e mentalidades.
A "espoliação" das chamadas "províncias do Norte" não ocorreu sem resistência. A derrota de propostas autonomistas
recorrentes terminou por sentimentalizar o federalismo, que em outras circunstâncias poderia ter sido uma mera opção
administrativa de uma imensa nação, cujos governos foram sempre tendencialmente centralizantes e autoritários. A vitória do governo central foi militar. Para
punir adversários e recompensar aliados,
o todo que formava Pernambuco colonial terminou sofrendo divisões. O regionalismo, para Evaldo, é também uma resposta à "fragmentação arbitrariamente
administrativa de um conjunto".
O nascimento da capitania
Para quem deseja uma síntese da construção da nação, "A Ferida de Narciso"
também não desaponta.
Os primeiros dois capítulos delineiam o
nascimento da capitania de Pernambuco,
cuja autonomia incomodava o Governo
Geral. Foi logo no começo também que
se estabeleceram as diferenças entre os lavradores e os senhores de engenho, entre
o meio urbano e o rural, entre a zona da
mata sul e a do norte. Fica claro ainda que
Gilberto Freyre exagerou a adaptabilidade do português e a intensidade do Brasil
que havia dentro do Brasil quinhentista.
A Nova Lusitânia era apenas o que o próprio nome sugere, um projeto de um
"outro Portugal", como disse o poeta.
Para Evaldo, é um anacronismo estéril
assentar os pródromos da consciência
nacional na Restauração Pernambucana
de 1654. A maior ironia do antilusitanismo oitocentista, que jogava contra os
portugueses o exemplo holandês como o
modelo de colonização ideal, é que os
seus avós expulsaram os batavos precisamente por se sentirem profundamente
lusitanos.
Mestre em discorrer sobre as intrigas
intra-elites, Evaldo retoma temas tratados em outros livros seus. Tendo reconquistado a capitania com recursos próprios, os luso-brasileiros pensavam ter
estabelecido um novo pacto com Portugal. Mas as recompensas pela Restauração foram pífias, causando enorme desapontamento, personificado em Fernandes Vieira que nunca teve a honra de governar a capitania pela qual tanto se bateu.
Pernambuco perdeu ainda a autonomia que tivera antes da guerra, sem auferir nenhuma das vantagens das capitanias régias. O autonomismo sobreviveu
como uma idéia de um passado quase
mítico que deveria ser recuperado. Gestado nos claustros como uma resposta ao
invasor herege, o nativismo terminaria
transbordando para as cidades na época
da Independência. O ressentimento nativista iria impregnar as relações com Portugal, depois com o Império.
O império centralista e autoritário só
agravaria os ressentimentos, ao promover a sangria das "províncias do Norte".
Confirmando algumas teses também defendidas pela historiografia recente, Evaldo argumenta que a Insurreição Pernambucana de 1817 foi contra Portugal tanto
quanto foi contra o Rio de Janeiro. No
cerne de 1817 e da Confederação do
Equador, em 1824, estavam o constitucionalismo e o autonomismo, que terminou se manifestando de forma republicana, devido às circunstâncias políticas de
um país monárquico e autoritário, sob o
comando exclusivo das províncias do
centro-sul.
O teste decisivo do autonomismo foi a
junta presidida por Gervásio Pires Ferreira, que tentou manter uma certa autonomia tanto em relação ao Rio de Janeiro
quanto a Portugal, em 1821-22, mas terminou derrubado por um golpe tramado
a partir do Rio de Janeiro, com o apoio do
exército estacionado em Pernambuco.
No último capítulo -sob o sugestivo
título "Tristeza do Império"-, Evaldo
segue os liberais oitocentistas para quem
a monarquia autoritária e centralista não
era um mal necessário.
Havia alternativas. A identificação das
propostas autonomistas com o separatismo e o republicanismo foi mais uma resposta ao centralismo da corte do que algo
inerente ao federalismo e ao constitucionalismo liberal.
Livro bom é assim: não só explica como
instiga. E nada mais estimulante do que a
constatação de que poderíamos ter sido
diferentes.
Este ensaio contribui efetivamente para
a historiografia recente que tem detalhado a construção da unidade imperial,
sustentada num frágil equilíbrio entre
força e consenso. Estudos sobre as insurreições liberais do Nordeste na primeira
metade do século 19 sustentam que as
propostas centralizantes e autoritárias da
Corte tiveram adeptos nas próprias províncias que viriam a ser prejudicadas pelo
modelo vencedor. É muito difícil a dominação sem alianças ou sem ao menos
uma nesga de consentimento do subordinado, como há muito ensinou Antonio
Gramsci. Os Cavalcanti de Pernambuco,
por exemplo -que posavam de autonomistas na corte-, ficaram do lado da Coroa durante os movimentos liberais de
1824 e 1848. Entre a retórica e a prática
das elites havia distâncias intransponíveis. Mas este ensaio de Evaldo, embora
deixe claro que as elites locais nunca foram unívocas, dá a impressão de ter havido um maior consenso interno entre os
pernambucanos do que deixa transparecer a historiografia recente.
"A Ferida de Narciso" é um ensaio envolvente. Digo mais, necessário, pois retoma um assunto sobre o qual há quem
pense que não existe o que dizer de novo.
Mas o leitor, chato por definição, pode ficar ávido por mais do que talvez seja possível caber em cento e poucas páginas.
Por exemplo, a analogia com o presente,
que Evaldo evita, é irresistível. O livro argumenta que a Conciliação da segunda
metade do 19 integrou as influências regionais, mas somente no âmbito clientelístico, não no tocante à representação
dos interesses econômicos.
Talvez possamos dizer o mesmo sobre
o período posterior até os dias de hoje,
quando os "representantes" das províncias da periferia continuam representando apenas seus interesses clientelísticos
mesquinhos e localistas, nunca ou raramente os interesses regionais mais amplos. O maior problema dos modelos excludentes nem sempre é o seu funcionamento, que pode até sofrer oposição, mas
a imensa capacidade de se reproduzirem,
perpetuando o que poderia ter sido diferente.
Marcus J.M. de Carvalho é professor de história
na Universidade Federal de Pernambuco.
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