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Voltar aos mitos
A trajetória de Jean-Pierre Vernant como historiador e político
Entre Mito e Política
Jean-Pierre Vernant
Tradução: Cristina Murachco
Edusp (Tel. 0/xx/11/3818-4156)
488 págs., R$ 48,00
NEWTON BIGNOTTO
Jean-Pierre Vernant talvez seja o helenista francês mais influente de sua
geração. Estudioso perspicaz e original
da Grécia, soube como poucos abordar
temas e problemas que não faziam parte dos caminhos tradicionais dos outros especialistas do período, ajudando
com sua prosa saborosa a iluminar
com novas luzes um passado tantas vezes visitado.
"Entre Mito e Política" dá ao leitor
brasileiro, em bem cuidada tradução, a
oportunidade de conhecer não apenas
os grandes temas que interessaram ao
intelectual francês, mas também muito
de sua trajetória de militante político e
de pesquisador. O livro é composto de
58 capítulos nos quais se misturam textos autobiográficos, documentos políticos, entrevistas e escritos variados. O
resultado dessa coletânea é um livro de
fácil leitura, que cativa pela vivacidade
da exposição e pela clareza com que o
autor adentra terrenos especializados e
problemas de atualidade.
É óbvio que nem sempre os textos
são evidentes para os que não conhecem o autor. Esse é notadamente o caso
de escritos curtos, produzidos para
contextos específicos, como as resenhas do livro "Os Mestres da Verdade
na Grécia Arcaica", de Marcel Detienne, ou o retrato do militante Victor Leduc. No entanto, inseridos no corpo do
livro, mesmo esses escritos menos expressivos nos ajudam a compreender a
trajetória de um intelectual que combinou como poucos sua atividade de pesquisador erudito com sua vida de ativista político.
Como ele mesmo diz : "Quando olho
para trás, penso que, de fato, é possível
representar o curso de minha vida e
meu percurso científico como uma trajetória tensa, por vezes dilacerada, entre dois pólos inimigos, inimigos íntimos, os dois pólos opostos e associados do mito e da política".
Pesquisa e política
O primeiro aspecto que chama a
atenção é justamente a maneira como
esse autor -dono de uma vasta obra
sobre a Grécia antiga, que inclui desde
os clássicos "Mito e Pensamento entre
os Gregos", "Mito e Sociedade na Grécia Antiga" até um sem número de artigos e ensaios sobre temas tão variados
quanto a natureza do corpo dos deuses, as tragédias e os mais diversos mitos- foi capaz de conciliar a entrada
no que ele chama de "religião" da pesquisa com uma atuação frequente na
cena pública e um engajamento duradouro no Partido Comunista Francês.
Vernant foi desde muito cedo marcado pelo marxismo e não desmentiu jamais essa influência. Tendo rompido
com o Partido, o fez, no entanto, "alegremente", pois "estava sendo absolutamente fiel ao que havia de mais profundo, de mais válido também, em
meu primeiro engajamento". Sua sensibilidade para a política o conduziu a
um envolvimento na Resistência Francesa ao longo dos anos sombrios do
governo de Vichy. Das reflexões sobre
esse período nasceu um dos mais belos
textos do livro -o capítulo dedicado à
amizade.
Misturando erudição e uma amadurecida reflexão sobre suas experiências
vividas ao lado de muitos outros companheiros de luta, ele nos mostra como
a amizade tece um laço fecundo entre o
que nos vem do mundo privado da família com o que encontramos no terreno comum da cidade. O amigo é nessa
lógica o igual com o qual aprendemos a
respeitar nossas diferenças.
As referências frequentes às lutas políticas e a seu percurso de pesquisador
só fazem aguçar a curiosidade do leitor
quanto à trajetória desse escritor híbrido. Para penetrar um pouco na riqueza
dessa longa vida é essencial prestar
atenção ao tributo que ele dedica àqueles que chama de seus dois mestres: Ignace Meyerson e Louis Gernet.
Nenhum dos dois teve uma ligação
tão íntima com a vida de um partido
político quanto a de Vernant, nem foram atraídos pelo marxismo da mesma
maneira. No entanto, foi com esses
dois intelectuais que ele encontrou um
caminho para um helenismo ao mesmo tempo arejado pelas teorias sociais
contemporâneas e distante do mofo
das pesquisas meramente técnicas, que
caracterizou a produção em torno de
temas gregos em muitos centros importantes.
Com Meyerson ele aprendeu o gosto
pela psicologia histórica e a atração pelos temas religiosos, que o levaria a dedicar-se durante mais de 50 anos à análise de uma gama variada de problemas
relacionados com a vida religiosa, em
particular, ao estudo dos mitos. Como
seu mestre, ele parte do pressuposto de
que o homem é um ser inacabado e que
por isso deve ser entendido não a partir
de estruturas eternas e imutáveis, mas
pela maneira como se inscreve na história. No campo metodológico isso significou adotar como máxima a idéia de
que "não existe chave universal para
entender o humano".
Interdisciplinaridade
Com Gernet, esse filósofo, sociólogo e
helenista que começaria tardiamente a
ensinar na França, depois de passar a
vida lecionando em faculdades na África, Vernant aprenderia o gosto pela interdisciplinaridade e a considerar sempre as realidades coletivas e seu modo
de funcionamento como ponto de partida fundamental. Essa postura, entretanto, não deve nunca nos levar a esquecer a importância de se estudarem
as atitudes psicológicas dos homens
sem as quais, como diz Vernant, "o advento, a marcha e as transformações
das instituições seriam ininteligíveis".
"Entre Mito e Política" nos permite
visitar muitos dos aspectos do trabalho
desse pensador, que constrói sua obra
no meio de uma gama variada de influências e que fez do convívio com especialistas das mais variadas áreas a
ferramenta de um comparativismo
que mudou a feição dos estudos sobre
as sociedades antigas. Nesse itinerário,
que o levou a se relacionar com muitos
dos intelectuais mais expressivos de
nossa época, nasceu uma obra que nos
interpela em nossas angústias mais
contemporâneas, pois, como já fora
para seu mestre Gernet, estudar o passado é uma maneira de nos aproximar
do presente, sem o que, ele nos diz, não
faria sentido realizar esse tipo de estudo.
Por isso, se Vernant encontrou no
helenismo um espaço de liberdade,
que sua vida de militante marxista parecia lhe negar, ele soube conservar de
Marx a inspiração de uma investigação
que não se descura dos mais variados
fatores que revelam a inscrição concreta dos homens na história e na sua vida
material. Longe dos esquemas redutores, ele soube, sobretudo, abrir-se para
problemas novos e criar uma obra que
é plenamente contemporânea.
Dos muitos capítulos do livro, chama
a atenção aqueles dedicados aos mitos.
Como já dissemos, desde muito cedo
nosso autor se dedicou aos mitos, buscando ao mesmo tempo compreendê-los, e à cultura que nasceu na Grécia no
momento em que eles deixaram de ser
a força dominante nas formas de compreensão do homem e do mundo que o
circundava.
Voltar aos mitos, no entanto, nunca
foi apenas voltar ao problema do aparecimento da razão, mas sim voltar às
muitas possibilidades de organização
do humano e de suas obras. Nesse sentido, explorar as figuras lendárias é para ele uma forma de investigar os homens em seu passado remoto, mas
também em sua atualidade. Assim, por
exemplo, embora o texto dedicado a
Édipo seja muito curto e não revele toda a complexidade dos estudos de Vernant sobre esse personagem, ele tem o
mérito de chamar a atenção do leitor
para a importância de deixar de lado os
estereótipos associados à imagem clássica do usurpador manco do trono paterno. Vale a pena mergulhar, segundo
ele, para além do mundo dos trágicos,
não apenas na tradição grega que associava a figura de Édipo ao processo de
construção da vida política das cidades
gregas, mas também no papel que ele
veio a desempenhar em nossa época.
Razão e história
Um outro tema fundamental da obra
de Vernant é a análise das tragédias.
Dos textos do livro dedicados ao assunto, merece destaque aquele no qual
ele retorna a Dionísio, em diálogo com
Michèle Raoul-Davis e Bernard Sobel.
Tendo de início declarado que não tem
"nenhum tipo de afinidade com Heidegger" e que não concorda com a dicotomia nietzschiana entre o apolíneo
e o dionisíaco, ele se lança numa acurada investigação da figura do deus. Ao
oferecer um retrato muito diferente
daquele dos autores mencionados,
longe de produzir o simples confronto
da visão de um especialista com aquela
de dois dos pensadores fundamentais
da contemporaneidade, o que ele demonstra é a fecundidade do retorno
aos antigos para a compreensão dos
impasses e das alternativas de nossa
época.
Aliás, num momento em que ele se
pergunta sobre a relação entre a razão
de ontem e a de hoje, afirma que pode
não ser inútil voltar à Grécia para entender a racionalidade triunfante de
nossas ciências. Isso se dá porque, para
ele, não existe racionalidade fora dos
processos históricos que a engendram.
Sendo assim, o estudo das diferenças
que foram se construindo no interior
mesmo de uma cultura que se fundou a
partir da crença nas possibilidades da
razão é uma ferramenta eficaz para os
que desejam entender o significado do
primado da linguagem matemática nas
ciências atuais.
Ao final das mais de 500 páginas do
livro, ficamos com a impressão de que
o longo passeio pelo pensamento do
intérprete privilegiado da Grécia antiga
não precisava terminar. O sentimento
que fica, no entanto, não é o da incompletude, mas o de que vale a pena retornar ao universo de Vernant.
Newton Bignotto é professor de filosofia na Universidade Federal de Minas Gerais e autor, entre
outros livros, de "O Tirano e a Cidade" (Discurso
Editorial) e "Origens do Republicanismo Moderno"
(ed. UFMG).
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