São Paulo, Sábado, 13 de Novembro de 1999
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Obra analisa os vários significados da metalinguagem na história do cinema
O cinema no espelho

YANET AGUILERA

"O cinema tinha apenas seis anos e já olhava para si mesmo" -eis o que Ana Lúcia Andrade descobriu em sua cuidadosa pesquisa sobre os diversos significados da metalinguagem na história do cinema. Mas, sustenta a autora, ele nem sempre se olhou do mesmo modo e com o mesmo fim e, por isso, é preciso identificar várias etapas nessa história.
Dos primórdios até fins dos anos 30, a auto-referência estaria a serviço de uma espécie de iniciação do espectador no novo código que surgia. Os filmes desse período criariam, assim, mecanismos metalinguísticos que facilitavam o reconhecimento e a identificação do espectador. Um exemplo típico é a comédia muda "The Countryman and the Cinematograph" (1901), de Robert W. Paul, cujo enredo trata comicamente das diversas reações que o protagonista experimenta em sua primeira seção de cinema.

A maturidade de "Kane"
Na década de 40, a auto-referência é vinculada ao começo do autoquestionamento do cinema. "Cidadão Kane", de Orson Welles, é um primeiro sinal de "maturidade": as diversas versões do enredo e o uso original da defasagem entre som e imagem seriam indícios de uma crítica à pretensa objetividade da narrativa linear e clássica até então vigente.
Nos anos 50, a metalinguagem seria usada para manifestar a crise do cinema com o surgimento da televisão. "Crepúsculo dos Deuses", de Billy Wilder, formularia um juízo do cinema sobre sua própria história. Ao sarcasmo inicial -o filme é narrado por um roteirista morto-, acrescente-se uma crítica aguda e amarga à vampirização da indústria cinematográfica: Gloria Swanson, Erich von Stroheim, Buster Keaton e outros são na realidade aquilo que representam -estrelas decadentes do cinema mudo.
Embora o trabalho de Wilder seja o primeiro no qual o espectador começa a entender, pelo código, que está assistindo um filme-, é "Janela Indiscreta", de Hitchcock, que fornecerá os elementos para que um público mais "atento" se detenha "na própria estruturação da narrativa". A imobilidade do fotógrafo-protagonista, a sua técnica investigativa que leva a mudanças de foco são consideradas metáforas ou duplicações do espectador e dos elementos da elaboração do filme. A partir daqui, o cinema mergulharia realmente num processo de compreensão de seu próprio código.

A intertextualidade
Nos anos 60, assim, a metalinguagem se voltaria para o desvelamento da própria realização cinematográfica. "Quando Paris Alucina", de Richard Quine, por exemplo, chega a "explicar" didaticamente alguns recursos técnicos (a passagem da tela escura para a imagem e vice-versa). Além disso, esse filme explora mais sistematicamente as chamadas citações "intertextuais" e várias referência são feitas a outros trabalhos dos dois atores principais, William Holden e Audrey Hepburn.
"Mulheres à Beira de um Ataque de Nervos", de Pedro Almodóvar, do final dos anos 80, marcaria uma nova etapa da metalinguagem. A novidade agora é que a intertextualidade é usada para referir-se ao pressuposto mais importante do ritual cinematográfico: a identificação emocional do espectador. A protagonista chora e se emociona ao dublar trechos de "Johnny Guitar", de Nicholas Ray, com os quais se identifica por serem a duplicação de sua própria história. Além disso, as citações não se reduzem a alguma cenas, pois sequências inteiras são retomadas e refeitas ironicamente. Segundo Ana Lúcia Andrade, pode-se dizer que Almodóvar vai além de uma homenagem corriqueira ao cinema, passando a celebrar o próprio código cinematográfico.
Finalmente, nos anos 90, quando os esquemas estão todos montados e conhecidos, a metalinguagem, já convertida em citação intertextual, transforma-se em estratégia narrativa. "O Jogador", de Robert Altman, é um dos exemplos onde as "estruturas desgastadas" são "reaproveitadas" eficazmente. O personagem principal do filme, um produtor, esvazia a história do roteirista que pretendia reproduzir a vida real, e o faz apenas por uma questão de apelo mercadológico: além de introduzir um "happy end", dá os papéis a estrelas que garantam o retorno financeiro.
É o velho tema do confronto entre a visão autoral do cinema e os esquemas da grande indústria. Entretanto, o uso de grandes ícones do mercado cinematográfico -Julia Roberts, Bruce Willis etc., que emprestam ao filme as imagens que a indústria construiu para eles-, é para a autora uma nova maneira de criticar os padrões do cinema hollywoodiano. Isso significa que a metalinguagem já se consolidou como releitura crítica do código cinematográfico.


O Filme Dentro do Filme - A Metalinguagem no Cinema
Ana Lúcia Andrade Editora UFMG (Tel. 0/xx/31/499-4650) 200 págs., R$ 19,00




O crítico e o ingênuo
Para simplificar, pode-se dizer que Ana Lúcia Andrade trabalha com a hipótese de uma mudança fundamental na prática da metalinguagem na história do cinema, o que dá a seu livro um esquema cronológico evolutivo.
Primeiramente, tal prática duplicaria elementos que a autora considera externos à linguagem cinematográfica e que apenas ajudariam a reforçar esquemas acríticos de identificação: apresentar a platéia como personagem, visualizar as filas de entrada, encenar elementos que desdobram o enredo etc., como é muito comum no início do século.
Em seguida, a metalinguagem adquire o estatuto de uma verdadeira reflexão, ajudando a criar uma maior "autoconsciência" no cinema, visto que este estaria se ocupando agora com o que tem de mais específico: seu código linguístico.
Fazendo uma analogia com as noções de leitor ingênuo e crítico segundo Umberto Eco, a autora sustenta que, no primeiro caso, o cinema formaria o "espectador ingênuo", capaz apenas de compreender o enredo e a temática do filme e, no segundo, o espectador crítico, que sabe reconhecer as estruturas linguísticas do cinema.
A postura metodológica que valoriza o "especificamente cinematográfico" leva Ana Lúcia Andrade a privilegiar o segundo momento em prejuízo do primeiro. Entretanto, duas questões talvez mereçam ser consideradas. Em primeiro lugar, será mesmo que não existiam reflexões sobre o código cinematográfico já no período mudo? Estou pensando em alguns momentos de "O Homem da Câmera", de Buster Keaton, nos quais a câmera aparece como algo análogo ora ao realejo, ora à metralhadora. Será que um exemplo como esse não nos obrigaria a questionar a suposta evolução que o livro sustenta na prática da metalinguagem ao longo da história do cinema?
Além disso, é de se perguntar se Ana Lúcia Andrade tem razão ao pretender que a história, o tema (e até o próprio espectador...) não fazem parte do especificamente cinematográfico. Tanto a resposta não é tão simples assim, que as melhores análises da autora são aquelas que vinculam tema e código linguístico, principalmente quando consegue se desembaraçar da visão meio simplista que confunde análise temática com abordagem autobiográfica (caso das leituras de "Oito e Meio", de Fellini, "A Noite Americana", de Truffaut, e "O Estado das Coisas", de Wim Wenders).


Yanet Aguilera é pós-graduanda no departamento de filosofia da USP.


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