São Paulo, Sábado, 13 de Novembro de 1999 |
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Dois estudos recentes sobre Mário de Andrade analisam o prosador-crítico e o crítico-artista Entre França e Alemanha
SILVIANO SANTIAGO
Uma leitura descentrada Para que a composição lúdica de "Macunaíma" fosse surpreendida intra e extratextualmente, foi preciso que Eneida recusasse, primeiro, a forma dicionarizada escolhida por Cavalcanti Proença e, em seguida, rejeitasse os pressupostos da leitura unívoca estabelecidos por Propp e operacionalizados por Haroldo de Campos. A leitura morfológica tinha cegado o poeta concreto para a articulação do capítulo 9, "Carta pras Icamiabas". Para ele, tratava-se de "um capítulo autônomo dentro do livro e ornamental". Ao abandonar a leitura morfológica e adentrar-se pelos labirintos de uma leitura descentrada, Eneida coloca como "referência" não mais o combate entre o herói e o gigante Piaimã, mas o pacto e o desentendimento entre Macunaíma e Vei, a Sol. A principal qualidade do nosso herói -a astúcia- é um "indecidível". Tanto o leva à vitória sobre o gigante, quanto o conduz à safadeza, como no momento em que acredita poder quebrar a palavra dada a Vei e sair-se duplamente vitorioso. Vei pontua com a sua palavra o texto: "Pois se você (Macunaíma) tivesse me obedecido casava com uma das minhas filhas e havia de ser sempre moço e bonito. Agora você fica pouco tempo moço tal-qualmente os outros homens...". Macunaíma tenta reagir: "Si eu soubesse...". Interfere uma vez mais Vei: "O "si eu soubesse" é santo que nunca valeu pra ninguém, meus cuidados! Você é que é é muito safadinho, isso sim!". Na composição da rapsódia é esse jogo entre significados dentro do mesmo significante que articula de forma não-linear o que se acreditou ser "dois movimentos sucessivos" do texto andradino. A astúcia de Macunaíma estava sendo dada como equivalente à "metis" dos gregos (ver Detienne-Vernant, "Mythes et Pensée Chez les Grecs"). A astúcia é a arma do fraco contra o forte e é o apego indiscriminado às facilidades do presente e a incapacidade de medir as consequências futuras de um ato. O herói é herói e é "sujo" e é mortal. Pensamento em lascas Se Eneida trabalha com a tradição crítica brasileira pelo modo da ruptura, José Augusto Avancini a trabalha pelo modo do enriquecimento. Uma desconstrói, o outro acumula. Não há descaminhos maiores entre as propostas metodológicas e analíticas de Avancini e as dos seus ilustres predecessores, já citados, a que se somam Lourival Gomes Machado, Leon Kossovitch e João Luís Lafetá. Não fosse ele um doutorando da Universidade de São Paulo e pesquisador do Instituto de Estudos Brasileiros. Há na sua tese, isso sim, uma tentativa de açambarcar as potencialidades do objeto de pesquisa, trazendo para a discussão um amálgama infinito de textos de crítica de arte, assinados por Mário de Andrade. Ele vai tentar, inspirando-se em Gilda de Mello e Souza, "ordenar o pensamento em lascas de Mário de Andrade sobre arte". Nesse sentido, destacam-se no livro, pela originalidade e acerto da leitura e pela minúcia de detalhes, dois conjuntos de textos andradinos, cada um organizado em torno de uma reflexão maior. O primeiro conjunto de textos é estudado no terceiro capítulo e se situa em torno dos quatro artigos sobre "A Arte Religiosa no Brasil", que escreveu em 1920 para a "Revista do Brasil", e ainda não recolhidos em livro. A exegese desses artigos do jovem Mário serve a Avancini para solidificar o trabalho dos críticos que têm chamado a atenção "para a associação que Mário fez entre o barroco e o expressionismo (germânico) e deste com o nacionalismo como maneira que encontrou para formar uma base teórica explicativa da cultura brasileira que, segundo nosso crítico, não se encaixava nos moldes clássicos latino-mediterrâneos". O segundo conjunto é estudado no segundo capítulo e gira em torno do "Curso de Filosofia e História da Arte", ministrado em 1938 na Universidade do Distrito Federal. Os principais temas deste conjunto foram, num primeiro momento: "Que é a arte, a criação artística, a obra de arte e em que esta implica o artefazer (amor ao artesanato), o papel do artista na sociedade, sua formação geral e seu preparo técnico, que leva Mário a discutir a questão da técnica". E num segundo momento: "A discussão dos conceitos de Sentimento crítico e Expressão estética, complementados pelo conceito de Inacabado". Talvez pudessem ser melhor trabalhadas algumas excelentes sugestões que estão no livro de Avancini. Destaco uma delas. No momento em que fala que a crítica de arte de Mário teve "como modelos Aleijadinho, Portinari e Lasar Segall", acrescenta logo depois: "Talvez essa escolha de Mário marque claramente os limites do seu conhecimento artístico, que eram profundos em música, mas algo deficientes nas artes visuais, tanto por formação quanto por opção". Se somamos Clovis Graciano a Portinari, se a eles somamos o fato de que a germanofilia artística servia como antídoto para a supremacia acadêmica francesa no Brasil, e se, finalmente, a esses dois dados somamos ainda o fato de a tese ter sido orientada por Otília Arantes, não seria o caso de lamentar a ausência, como contraponto, da figura e das idéias de Mário Pedrosa, o autor de "Da Missão Francesa: Seus Obstáculos Políticos"? Não teria sido interessante estabelecer paralelos entre o Aleijadinho e a Missão Francesa, os dois "começos" para a modernidade artística brasileira, segundo um e o outro Mário? Não seria o caso de deixar dialogar o ausente Pedrosa com o presente Lasar Segall ? Não teria sido útil deixar esses dois antiimperialistas convictos, mas tementes do nacionalismo, dialogarem com os "nacionalistas pragmáticos" de que Mário é o melhor teórico e representante? Ficam perguntas e mais uma sugestão. Silviano Santiago é escritor e crítico literário, autor, entre outros livros, do romance "De Cócoras" (Rocco) e do livro de ensaios "Uma Literatura nos Trópicos" (a segunda edição será publicada em breve). Texto Anterior: Tereza Barreto: Sor Juana sou eu Índice |
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