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São Paulo, sábado, 14 de junho de 2003

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O historiador inglês J.G.A. Pocock destrói vários tabus da historiografia moderna

Tecidos da história

MILTON MEIRA DO NASCIMENTO

Mais conhecido como o autor de "The Machiavellien Moment" (O Momento Maquiaveliano), que em 1975 causou um terremoto entre os historiadores do pensamento político e historiadores em geral, J.G.A. Pocock chega finalmente às nossas livrarias numa edição preparada especialmente para o Brasil ["Linguagens do Ideário Político"], na qual se encontram artigos de algumas de suas obras mais recentes, selecionados por Sérgio Miceli, juntamente com o historiador britânico.
Naquele trabalho, Pocock quebrava um grande tabu, o de que o ideário político republicano norte-americano, ancorado como se imaginava no que se convencionou chamar de tradição do pensamento britânico, possuía um referencial próprio quanto às suas origens, independente de qualquer outra tradição, e que isso deveria remontar aos séculos 17 e 18 europeus e de língua inglesa. Para desapontamento de muitos, esse ideário estava vinculado à tradição do humanismo cívico renascentista italiano.
Nos textos que se encontram nesta coletânea -em que se mesclam análises sobre David Hume, Thomas Hobbes, John Locke, Edmund Burke, Edward Gibbon, Josiah Tucker e Richard Price e sobre a história de alguns conceitos e movimentos do período da Ilustração britânica-, esse trabalho de "demolição" faz emergir a verve e o espírito de investigação que caracterizam o método e o procedimento de Pocock historiador. Embora eu não devesse falar aqui de "intenção" de forma um tanto leviana, sobretudo depois de ter lido tantas páginas nas quais uma das questões principais é exatamente a da atribuição de intenções aos agentes da história, certamente deve ter havido alguma intenção dos organizadores deste livro de incluir dois capítulos, os primeiros, nos quais os focos da discussão são exatamente o procedimento e o "métier" do historiador. E a esse ponto que endereçarei minha reflexão.
A primeira pergunta que me ocorre fazer ao próprio Pocock é a que ele mesmo propunha aos autores que investigou: "Como pode o autor saber o que pensa, ou o que quer dizer, antes de ver o que disse? O autoconhecimento é retrospectivo e cada autor é sua própria coruja de Minerva". Em que consiste então o seu ofício? O que é e o que faz o historiador? A resposta vem como a indicação de algumas pistas: "A palavra discurso fornece o meu ponto de partida. O conceito de uma linguagem política implica, para mim, que o que antigamente era conhecido -e por uma questão de convenção ainda é- como história do pensamento político é agora mais precisamente descrito como história do discurso político"; "suporemos, portanto, um campo de estudos constituído por atos de discurso, sejam eles orais, manuscritos ou impressos, e pelas condições ou contextos em que esses atos foram emitidos".
É bom lembrar que essa resposta não indica de forma nenhuma uma prescrição de como deve proceder o historiador, mas se configura tão-somente como uma descrição do que o próprio Pocock faz. Percebemos, aos poucos, que nosso autor vai se aproximando do terreno da teoria da linguagem de Ferdinand de Saussure, quando demarca o campo de investigação do historiador entre a "langue" ("língua"), entendida como o contexto linguístico, e a "parole" ("fala"), isto é, o conjunto dos atos de fala que se inscrevem numa linguagem dada e a pressupõem, mas podem também modificá-la.

Tecidos

Esse procedimento tem como consequência uma concepção do "métier" do historiador altamente sofisticada e que exige dele, acima de tudo, o domínio de várias linguagens nas quais se inserem os lances, os movimentos, às vezes esperados e às vezes completamente inesperados, pois, entre os protagonistas da história há aqueles que jogam de acordo com as regras do jogo, e, outros, que "saem correndo com a bola", para escondê-la, como se dissessem: "Agora, ninguém joga mais".
Diante desses lances inesperados, verdadeiras surpresas, com as quais se depara no processo de aprendizagem das linguagens de que precisa para entender os discursos, os atos de fala, o historiador, necessariamente, se vê forçado a mudar aquelas hipóteses que havia apresentado no início de seu trabalho de investigação, quando o caminho mais fácil seria o de procurar a qualquer custo sustentá-la.

Discurso multilíngue
O tecido da história constrói-se num processo interativo entre contexto linguístico e atos de fala. É esse o terreno que precisará ser desbravado. E, quando o propósito do historiador é investigar as origens da Europa moderna, assumindo a tarefa de aprender as várias linguagens que compõem esse tecido, ele constata que "o discurso político no início da Europa moderna era multilíngue". É essa constatação que permitirá o movimento teórico de demolição das historiografias que não se deram conta dessa teia, na qual se encontram discursos entrecruzados e que levam o historiador a descobrir cada vez mais camadas novas, numa escavação que lembra o "métier" do arqueólogo.
"O historiador é, em larga medida, um arqueólogo. Ele está comprometido com a descoberta da presença de vários contextos linguísticos nos quais o discurso foi realizado em determinados momentos. Posso dizer a partir de minha própria experiência que ele irá se acostumando a encontrar muitas camadas desses contextos no interior do mesmo texto e ficará constantemente surpreso e fascinado com a descoberta em textos conhecidos, onde sua presença passara desapercebida, de linguagens que se tornaram familiares a partir de outras fontes."
O trabalho de Pocock ganha relevância quando põe em xeque uma gama de conceitos que foram cunhados como verdadeiros chavões e em torno dos quais se pressupunha uma unidade de sentido, quando na verdade são polissêmicos e, além disso, não-hegemônicos, constituindo-se ao lado de outros discursos, nos quais outros conceitos também apareceram e com tanta força ou maior do que a que esses apresentam. É o que ocorreu, por exemplo, com o conceito de liberalismo e o "consenso" que se formou quanto às suas origens e ainda com o de propriedade, sempre vinculado ao que C.B. Macpherson chamou de individualismo possessivo, e também com a atribuição da paternidade desse liberalismo a John Locke e assim por diante.
Esse questionamento só é possível porque o instrumental, ou melhor, o arsenal que Pocock coloca em movimento lhe permite demonstrar que o "métier" do historiador não é tão simples como se imagina. É necessário, portanto, se perguntar sobre o significado de uma série de expressões como "a tradição liberal", "o liberalismo", "o neoliberalismo", o "individualismo moderno", "a liberdade moderna", "a propriedade". Todos esses termos são, em geral, tomados como favas contadas, como se expressassem atos de fala no interior de um mesmo contexto linguístico, como se falassem a mesma linguagem, o que, evidentemente, só facilitaria o trabalho, se fosse verdade.
Para complicar mais ainda a questão, às vezes eles nem se encontram em parte alguma, mas foram simplesmente forjados em retrospectiva por um procedimento metodológico que constrói o objeto de antemão e cujos resultados de pesquisa já se encontram pré-construídos. Tal investigação nunca encontrará surpresas, porque tem como pressuposto o fato de que as hipóteses serão todas comprovadas e de que os protagonistas da história num determinado período falam uma só língua.

As origens do liberalismo
Todas as vezes em que se procuram as origens do liberalismo, o primeiro nome de referência é John Locke e sua concepção da propriedade, e se estabelece que as premissas determinantes desse período eram mercantilistas. O que Pocock mostra é que o Locke dos "Dois Tratados sobre o Governo Civil" não se encaixa nessa perspectiva mercantilista, pois sua abordagem se inscreve numa tradição jurídica que considera a propriedade como um direito sobre a coisa, e não a própria coisa -"seu trabalho foi uma empreitada do século 17 e sua política marca o encerramento de uma época, mais do que o início de uma outra".
A defesa do direito de propriedade não se presta necessariamente à construção do ideário mercantilista. Isso pode ser verdade e, por vezes, ocorre de maneira também inusitada, já que a noção de propriedade nos séculos 17 e 18 sempre esteve vinculada à de autoridade, pois houve casos em que "uma visão individualista possessiva de sociedade foi promovida por membros de uma classe dominante em processo de recuperação, mais do que por membros de alguma nova classe que a estivesse substituindo".
Ademais, o surgimento da possibilidade de se obter bens simplesmente pela compra de ações governamentais, portanto do aparecimento da propriedade definida como o conjunto de bens móveis, já no final do século 17, abre um campo de debate e de confronto no interior mesmo do que sempre se chamou de "liberalismo", sobre o qual é preciso levantar suspeitas sobre o seu caráter monolítico. Enfim, as simplificações das interpretações históricas não resistem a um trabalho de análise dos discursos que nos levam à descoberta de vários contextos linguísticos nos quais se inserem os atos de fala dos atores históricos.
Também não resistem à história do discurso político as abordagens estruturais, quando os intérpretes se põem na busca da unidade do texto, pois, "independentemente de se é possível ou não demonstrar que o autor teve a intenção de desenvolver qualquer princípio desse tipo, esses estudiosos podem ter deixado de encarar o texto como um problema de reconstrução da "performance" do autor e podem estar olhando para ele somente como um problema de análise conceitual. Se eles simplesmente afirmam que o texto pode fazer sentido dessa maneira e que não importa se o autor ou o leitor anterior jamais os interpretou dessa mesma maneira, eles estão nos dizendo que sua empreitada filosófica não os obriga a estudar as ações de nenhum agente histórico. Depois do que eles terão apenas de se abster -e isso pode não ser fácil- de inadvertidamente falar como se estivessem afinal descrevendo as ações de agentes históricos e escrevendo história com a mão desocupada".

Jogos estéreis
De que valem os trabalhos ultraminuciosos realizados pelas eminentes figuras que atuam na Hume Society? São jogos completamente estéreis, embora imaginados como se fossem a coisa mais importante do mundo. Mas isso não é privilégio da Hume Society, evidentemente. Também do nosso lado, por obra de um certo viés francês mal assimilado, muitos imaginam que a análise estrutural de texto é o supra-sumo da atividade filosófica.
Enfim, os agentes históricos, autores ou conceitos, só assumem importância se forem examinados em seus contextos linguísticos, se forem realmente objetos intercambiáveis de interlocução. Um autor assume importância histórica se suas obras foram lidas, discutidas, assumidas ou negadas veementemente.
Ainda a respeito do liberalismo, vale a pena citar mais uma vez Pocock, à guisa de conclusão: "Não questiono tanto a realidade histórica do "liberalismo" ou do "individualismo possessivo" quanto questiono as interpretações "liberais", ou mais propriamente antiliberais, da história, em que tudo gira em torno, aproximando-se ou distanciando-se, de uma dominação monolítica de idéias "liberais" em algum ponto do século 19. Sempre vejo a formulação de tais idéias como problemática e precária e me sinto até mesmo disposto a admitir a hipótese de que a ideologia "liberal" ou "burguesa" tenha sido aperfeiçoada menos por seus defensores do que por seus adversários, que o fizeram na intenção de destruí-la. O que aconteceu no século 18 não foi uma transformação unidirecional do pensamento, no sentido de uma aceitação do homem "liberal" ou mercantil, mas um acerbo, consciente e ambivalente diálogo. No academicismo contemporâneo, os marxistas são os "whigs" e, seus críticos, os que exercem uma dialética".
E, em nota de rodapé, Pocock cochicha: "Neste ponto, na leitura original deste ensaio, ouviu-se o professor Macpherson observar que ele tinha sido chamado de muitas coisas na vida, mas nunca disso. Continuo não me arrependendo". Dessa vez, lance previsível para Pocock e inesperado para Macpherson, mas, de qualquer maneira, só por isso, valeu o ingresso. É preciso reconhecer que o autor de "A Teoria Política do Individualismo Possessivo" não foi deselegante a ponto de esconder a bola, apenas resmungou e continuou jogando, porque a platéia a seu favor queria a expulsão do adversário.


Milton Meira do Nascimento é professor de ética e filosofia política no departamento de filosofia da USP e autor de "Opinião Pública e Revolução" (Edusp/ Nova Stela).

Linguagens do Ideário Político
J.G.A. Pocock
Sérgio Miceli (org.)
Tradução: Fábio Fernandez
Edusp (Tel. 0/xx/11/309-14008)
456 págs., R$ 72,00


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