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O historiador inglês J.G.A. Pocock destrói
vários tabus da historiografia moderna
Tecidos da história
MILTON MEIRA DO NASCIMENTO
Mais conhecido como o autor de "The
Machiavellien Moment" (O Momento
Maquiaveliano), que em 1975 causou um
terremoto entre os historiadores do pensamento político e historiadores em geral, J.G.A. Pocock chega finalmente às
nossas livrarias numa edição preparada
especialmente para o Brasil ["Linguagens
do Ideário Político"], na qual se encontram artigos de algumas de suas obras
mais recentes, selecionados por Sérgio
Miceli, juntamente com o historiador
britânico.
Naquele trabalho, Pocock quebrava um
grande tabu, o de que o ideário político
republicano norte-americano, ancorado
como se imaginava no que se convencionou chamar de tradição do pensamento
britânico, possuía um referencial próprio
quanto às suas origens, independente de
qualquer outra tradição, e que isso deveria remontar aos séculos 17 e 18 europeus
e de língua inglesa. Para desapontamento
de muitos, esse ideário estava vinculado à
tradição do humanismo cívico renascentista italiano.
Nos textos que se encontram nesta coletânea -em que se mesclam análises sobre David Hume, Thomas Hobbes, John
Locke, Edmund Burke, Edward Gibbon,
Josiah Tucker e Richard Price e sobre a
história de alguns conceitos e movimentos do período da Ilustração britânica-,
esse trabalho de "demolição" faz emergir
a verve e o espírito de investigação que
caracterizam o método e o procedimento
de Pocock historiador. Embora eu não
devesse falar aqui de "intenção" de forma
um tanto leviana, sobretudo depois de ter
lido tantas páginas nas quais uma das
questões principais é exatamente a da
atribuição de intenções aos agentes da
história, certamente deve ter havido alguma intenção dos organizadores deste livro de incluir dois capítulos, os primeiros, nos quais os focos da discussão são
exatamente o procedimento e o "métier"
do historiador. E a esse ponto que endereçarei minha reflexão.
A primeira pergunta que me ocorre fazer ao próprio Pocock é a que ele mesmo
propunha aos autores que investigou:
"Como pode o autor saber o que pensa,
ou o que quer dizer, antes de ver o que
disse? O autoconhecimento é retrospectivo e cada autor é sua própria coruja de
Minerva". Em que consiste então o seu
ofício? O que é e o que faz o historiador? A
resposta vem como a indicação de algumas pistas: "A palavra discurso fornece o
meu ponto de partida. O conceito de uma
linguagem política implica, para mim,
que o que antigamente era conhecido -e
por uma questão de convenção ainda é-
como história do pensamento político é
agora mais precisamente descrito como
história do discurso político"; "suporemos, portanto, um campo de estudos
constituído por atos de discurso, sejam
eles orais, manuscritos ou impressos, e
pelas condições ou contextos em que esses atos foram emitidos".
É bom lembrar que essa resposta não
indica de forma nenhuma uma prescrição de como deve proceder o historiador,
mas se configura tão-somente como uma
descrição do que o próprio Pocock faz.
Percebemos, aos poucos, que nosso autor
vai se aproximando do terreno da teoria
da linguagem de Ferdinand de Saussure,
quando demarca o campo de investigação do historiador entre a "langue" ("língua"), entendida como o contexto linguístico, e a "parole" ("fala"), isto é, o conjunto dos atos de fala que se inscrevem numa linguagem dada e a pressupõem, mas podem também modificá-la.
Tecidos
Esse procedimento tem como
consequência uma concepção do
"métier" do historiador altamente sofisticada e que exige dele, acima de tudo, o domínio de várias
linguagens nas quais se inserem
os lances, os movimentos, às vezes esperados e às vezes completamente inesperados, pois, entre
os protagonistas da história há
aqueles que jogam de acordo
com as regras do jogo, e, outros,
que "saem correndo com a bola",
para escondê-la, como se dissessem: "Agora, ninguém joga
mais".
Diante desses lances inesperados, verdadeiras surpresas, com
as quais se depara no processo de
aprendizagem das linguagens de
que precisa para entender os discursos, os atos de fala, o historiador, necessariamente, se vê forçado a mudar aquelas hipóteses que
havia apresentado no início de
seu trabalho de investigação,
quando o caminho mais fácil seria o de procurar a qualquer custo
sustentá-la.
Discurso multilíngue
O tecido da história constrói-se
num processo interativo entre
contexto linguístico e atos de fala.
É esse o terreno que precisará ser
desbravado. E, quando o propósito do historiador é investigar as
origens da Europa moderna, assumindo a tarefa de aprender as
várias linguagens que compõem
esse tecido, ele constata que "o
discurso político no início da Europa moderna era multilíngue". É
essa constatação que permitirá o
movimento teórico de demolição
das historiografias que não se deram conta dessa teia, na qual se
encontram discursos entrecruzados e que levam o historiador a
descobrir cada vez mais camadas
novas, numa escavação que lembra o "métier" do arqueólogo.
"O historiador é, em larga medida, um arqueólogo. Ele está comprometido com a descoberta da
presença de vários contextos linguísticos nos quais o discurso foi
realizado em determinados momentos. Posso dizer a partir de
minha própria experiência que
ele irá se acostumando a encontrar muitas camadas desses contextos no interior do mesmo texto
e ficará constantemente surpreso
e fascinado com a descoberta em
textos conhecidos, onde sua presença passara desapercebida, de
linguagens que se tornaram familiares a partir de outras fontes."
O trabalho de Pocock ganha relevância quando põe em xeque
uma gama de conceitos que foram cunhados como verdadeiros
chavões e em torno dos quais se
pressupunha uma unidade de
sentido, quando na verdade são
polissêmicos e, além disso, não-hegemônicos, constituindo-se ao
lado de outros discursos, nos
quais outros conceitos também
apareceram e com tanta força ou
maior do que a que esses apresentam. É o que ocorreu, por exemplo, com o conceito de liberalismo e o "consenso" que se formou
quanto às suas origens e ainda
com o de propriedade, sempre
vinculado ao que C.B. Macpherson chamou de individualismo
possessivo, e também com a atribuição da paternidade desse liberalismo a John Locke e assim por
diante.
Esse questionamento só é possível porque o instrumental, ou melhor, o arsenal que Pocock coloca
em movimento lhe permite demonstrar que o "métier" do historiador não é tão simples como se
imagina. É necessário, portanto,
se perguntar sobre o significado
de uma série de expressões como
"a tradição liberal", "o liberalismo", "o neoliberalismo", o "individualismo moderno", "a liberdade moderna", "a propriedade".
Todos esses termos são, em geral,
tomados como favas contadas,
como se expressassem atos de fala
no interior de um mesmo contexto linguístico, como se falassem a
mesma linguagem, o que, evidentemente, só facilitaria o trabalho,
se fosse verdade.
Para complicar mais ainda a
questão, às vezes eles nem se encontram em parte alguma, mas
foram simplesmente forjados em
retrospectiva por um procedimento metodológico que constrói o objeto de antemão e cujos
resultados de pesquisa já se encontram pré-construídos. Tal investigação nunca encontrará surpresas, porque tem como pressuposto o fato de que as hipóteses
serão todas comprovadas e de
que os protagonistas da história
num determinado período falam
uma só língua.
As origens do liberalismo
Todas as vezes em que se procuram as origens do liberalismo, o
primeiro nome de referência é
John Locke e sua concepção da
propriedade, e se estabelece que
as premissas determinantes desse
período eram mercantilistas. O
que Pocock mostra é que o Locke
dos "Dois Tratados sobre o Governo Civil" não se encaixa nessa
perspectiva mercantilista, pois
sua abordagem se inscreve numa
tradição jurídica que considera a
propriedade como um direito sobre a coisa, e não a própria coisa
-"seu trabalho foi uma empreitada do século 17 e sua política
marca o encerramento de uma
época, mais do que o início de
uma outra".
A defesa do direito de propriedade não se presta necessariamente à construção do ideário
mercantilista. Isso pode ser verdade e, por vezes, ocorre de maneira também inusitada, já que a
noção de propriedade nos séculos
17 e 18 sempre esteve vinculada à
de autoridade, pois houve casos
em que "uma visão individualista
possessiva de sociedade foi promovida por membros de uma
classe dominante em processo de
recuperação, mais do que por
membros de alguma nova classe
que a estivesse substituindo".
Ademais, o surgimento da possibilidade de se obter bens simplesmente pela compra de ações
governamentais, portanto do
aparecimento da propriedade definida como o conjunto de bens
móveis, já no final do século 17,
abre um campo de debate e de
confronto no interior mesmo do
que sempre se chamou de "liberalismo", sobre o qual é preciso levantar suspeitas sobre o seu caráter monolítico. Enfim, as simplificações das interpretações históricas não resistem a um trabalho de
análise dos discursos que nos levam à descoberta de vários contextos linguísticos nos quais se inserem os atos de fala dos atores
históricos.
Também não resistem à história
do discurso político as abordagens estruturais, quando os intérpretes se põem na busca da unidade do texto, pois, "independentemente de se é possível ou não
demonstrar que o autor teve a intenção de desenvolver qualquer
princípio desse tipo, esses estudiosos podem ter deixado de encarar o texto como um problema
de reconstrução da "performance"
do autor e podem estar olhando
para ele somente como um problema de análise conceitual. Se
eles simplesmente afirmam que o
texto pode fazer sentido dessa
maneira e que não importa se o
autor ou o leitor anterior jamais
os interpretou dessa mesma maneira, eles estão nos dizendo que
sua empreitada filosófica não os
obriga a estudar as ações de nenhum agente histórico. Depois do
que eles terão apenas de se abster
-e isso pode não ser fácil- de
inadvertidamente falar como se
estivessem afinal descrevendo as
ações de agentes históricos e escrevendo história com a mão desocupada".
Jogos estéreis
De que valem os trabalhos ultraminuciosos realizados pelas eminentes figuras que atuam na Hume Society? São jogos completamente estéreis, embora imaginados como se fossem a coisa mais
importante do mundo. Mas isso
não é privilégio da Hume Society,
evidentemente. Também do nosso lado, por obra de um certo viés
francês mal assimilado, muitos
imaginam que a análise estrutural
de texto é o supra-sumo da atividade filosófica.
Enfim, os agentes históricos, autores ou conceitos, só assumem
importância se forem examinados em seus contextos linguísticos, se forem realmente objetos
intercambiáveis de interlocução.
Um autor assume importância
histórica se suas obras foram lidas, discutidas, assumidas ou negadas veementemente.
Ainda a respeito do liberalismo,
vale a pena citar mais uma vez Pocock, à guisa de conclusão: "Não
questiono tanto a realidade histórica do "liberalismo" ou do "individualismo possessivo" quanto
questiono as interpretações "liberais", ou mais propriamente antiliberais, da história, em que tudo
gira em torno, aproximando-se
ou distanciando-se, de uma dominação monolítica de idéias "liberais" em algum ponto do século
19. Sempre vejo a formulação de
tais idéias como problemática e
precária e me sinto até mesmo
disposto a admitir a hipótese de
que a ideologia "liberal" ou "burguesa" tenha sido aperfeiçoada
menos por seus defensores do
que por seus adversários, que o fizeram na intenção de destruí-la.
O que aconteceu no século 18 não
foi uma transformação unidirecional do pensamento, no sentido
de uma aceitação do homem "liberal" ou mercantil, mas um acerbo, consciente e ambivalente diálogo. No academicismo contemporâneo, os marxistas são os
"whigs" e, seus críticos, os que
exercem uma dialética".
E, em nota de rodapé, Pocock
cochicha: "Neste ponto, na leitura
original deste ensaio, ouviu-se o
professor Macpherson observar
que ele tinha sido chamado de
muitas coisas na vida, mas nunca
disso. Continuo não me arrependendo". Dessa vez, lance previsível para Pocock e inesperado para
Macpherson, mas, de qualquer
maneira, só por isso, valeu o ingresso. É preciso reconhecer que
o autor de "A Teoria Política do
Individualismo Possessivo" não
foi deselegante a ponto de esconder a bola, apenas resmungou e
continuou jogando, porque a platéia a seu favor queria a expulsão
do adversário.
Milton Meira do Nascimento é professor de ética e filosofia política no departamento de filosofia da USP e autor de
"Opinião Pública e Revolução" (Edusp/
Nova Stela).
Linguagens do Ideário Político
J.G.A. Pocock
Sérgio Miceli (org.)
Tradução: Fábio Fernandez
Edusp (Tel. 0/xx/11/309-14008)
456 págs., R$ 72,00
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