São Paulo, Sábado, 14 de Agosto de 1999
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Ensaios discutem o lugar da filosofia na cultura contemporânea
Faces do pragmatismo

CAETANO E. PLASTINO

Este livro reúne trabalhos apresentados no Seminário Internacional de Filosofia Analítica e Pragmatismo, promovido pela Universidade Federal de Minas Gerais, em agosto de 1997. Dele participaram Richard Rorty, Susan Haack e Bjorn Ramberg, além de pesquisadores brasileiros de diferentes áreas e tendências. O resultado é uma ampla e rica discussão em torno do pragmatismo contemporâneo, envolvendo questões filosóficas relativas à ética, à ciência e à linguagem.
No artigo inicial, Rorty observa que existem muitas maneiras de dizer o que está acontecendo, mas nenhuma delas representa mais exatamente o modo como a realidade é em si mesma. "Chegar mais perto da realidade soa para nós como uma metáfora desgastada". Sem dúvida, alguns modos de falar são mais úteis que outros, mas daí não se segue que as descrições mais úteis correspondem ao que realmente acontece, enquanto as menos úteis dizem respeito ao que parece acontecer.
Com o abandono da distinção metafísica entre aparência e realidade e também da noção de verdade como correspondência com a realidade, poder-se-ia supor que Rorty considera a verdade como relativa a nossos propósitos e situações. Mas não é o caso. Rorty não propõe uma definição pragmatista de "verdade" como "o que é bom em matéria de crença" (William James) ou como "assertibilidade garantida" (John Dewey). É claro que utilizamos nossas crenças atuais para decidir como aplicar o termo "verdadeiro", mas isso não quer dizer que um enunciado é verdadeiro quando estamos de acordo a seu respeito. A intenção de Rorty é antes trivializar o termo "verdadeiro" e exibir sua transparência: atribuir verdade à sentença "a neve é branca" é atribuir brancura à neve, como diz Quine. Portanto, ao contrário do que afirma Haack (pág. 63), Rorty não confunde o que é verdadeiro com o que passa por verdadeiro.
Mas, se a justificação é sempre relativa à situação e aos propósitos de uma audiência, e se além disso é o único critério que temos para aplicação do termo "verdadeiro", então não podemos assegurar que nossas práticas de justificação, mais cedo ou mais tarde, conduzirão à verdade absoluta. Segundo Rorty, compreendemos nosso progresso científico, moral ou político sempre a partir de nossas perspectivas, não havendo "maneira de não privilegiarmos nossos propósitos e interesses atuais". Desse modo, o progresso que fizemos não consiste num processo dirigido a um fim último e perfeito (Verdade, Bondade, Beleza, Justiça), mas em sermos "muito mais capazes do que nossos ancestrais de servir aos propósitos que queremos servir e de lidar com as situações com as quais cremos nos defrontar".
A esse respeito, é marcante a influência de Thomas Kuhn, que destacou a importância das mudanças revolucionárias no desenvolvimento da ciência, proporcionando novos problemas e novos usos da linguagem. Para Rorty, também na filosofia as conquistas realmente heróicas são "aquelas que nos permitem ver tudo de um novo ângulo, que induzem uma mudança de gestalt".
Ocorre que essas conquistas inovadoras não são encorajadas pela "diligente obediência a um método", pela argumentação racional atrelada ao vocabulário corrente. Com efeito, é a imaginação que contribui para a "criação de uma nova forma de vida cultural, de um novo vocabulário", de descrições alternativas de nós mesmos e do mundo.

O bom navio e os corsários
As vigorosas investidas de Haack dirigem-se principalmente contra a proposta de Rorty de considerar a filosofia como um gênero literário identificado pela tradição, de transformar a investigação séria que busca a verdade objetiva em uma conversação diletante que tenta chegar a um acordo contingente.
De fato, Rorty não tem "nenhum argumento para oferecer, nem qualquer perspectiva sobre que forma a filosofia deve tomar". Ele entende que, muitas vezes, as tentativas de definir a essência e a missão da filosofia apenas refletem as preferências de alguém que procura "excomungar filósofos que não deseja ler" e delimitar o território em que reconhece legitimidade profissional.
No caso de Haack, a opção é por uma filosofia científica. Citando Peirce, trata-se de "resgatar dos corsários sem lei do mar da literatura o bom navio Filosofia para o serviço da Ciência". Ao contrário da atitude científica, o estudo com um "espírito literário" caracteriza-se pela "indiferença do pensador em relação ao valor de verdade das proposições que propõe".

Filosofia Analítica, Pragmatismo e Ciência
Organização: Paulo R. Margutti Pinto e outros Editora UFMG (Tel. 0/xx/31/499-4650) 344 págs., R$ 30,00



A figura delineada por Rorty do intelectual liberal que assume uma atitude irônica e distanciada em relação a suas próprias crenças é examinada em várias passagens do livro. Segundo Paulo Margutti Pinto, o "ironista rortyano" parece aproximar-se perigosamente de um tipo de ceticismo que nada tem a ver com o pragmatismo autêntico. Por sua vez, Paulo Ghiraldelli Jr. ressalta que esse ironista, ao mesmo tempo em que cultiva a "herança liberal de horror à intolerância e, portanto, de abominação moral de seus frutos (a crueldade e a barbárie)", descarta os grandes discursos com objetivos fundacionistas (por exemplo, aqueles acoplados às cartas de direitos humanos).
Um detalhado exame das leituras de Rorty pode ser encontrado no artigo de Ramberg. De um lado, os "deflacionistas" tendem a ser simpáticos às posições de Rorty em questões particulares e tomam a aparência de radicalidade como sendo em grande parte resultado de seu pendor por efeitos retóricos dramáticos. De outro, os "demonizadores" consideram-no um pensador radical que se opõe profundamente a certas concepções vigentes das tarefas da filosofia. O próprio Ramberg formula uma terceira interpretação, segundo a qual a filosofia seria vista como uma atividade tipicamente argumentativa, mas cujo propósito primordial é a compreensão e não o acordo.
Decerto Rorty mostra-se contrário à idéia de que a filosofia é uma espécie distinta de atividade intelectual que "fundamenta" o resto da cultura. Mas ele também rejeita explicitamente a acusação de haver declarado "o fim da filosofia". O ponto que enfatiza é que "a preocupação moral do filósofo deveria ser a continuação da conversação ocidental, em vez da insistência num lugar para os tradicionais problemas da filosofia moderna dentro dessa conversação".
A conversação proposta neste livro, em que se ponderam diversas implicações político-culturais da filosofia contemporânea, torna sua leitura extremamente oportuna e estimulante.


Caetano Ernesto Plastino é professor do departamento de filosofia da USP.

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