São Paulo, Sábado, 14 de Agosto de 1999
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Iluminuras publica tradução de poemas do principal lírico de língua alemã da segunda metade do século
As refrações de Paul Celan

VINICIUS DANTAS

É com esperança que o leitor certamente folheará "Cristal", o volume de poemas de Paul Celan selecionados e traduzidos por Claudia Cavalcanti. Isso não só por encontrar em português um pouco do principal poeta da segunda metade do século, como por pressentir que a partir dessa iniciativa editorial pode estar em jogo uma aproximação maior a essa obra -necessária, mas por enquanto falha e pouco sistemática.
De fato, a falta de diálogo com a obra de Celan por parte de poetas e tradutores brasileiros deve-se a muitos fatores, verdadeiros constrangimentos objetivos a inibir a recriação. Em primeiro lugar, à natureza de sua poesia, cuja discrição não alardeia o quanto se apropria do arsenal da vanguarda modernista e o transforma; nela, os silêncios, as quebras tipográficas, as associações etimológicas, as sobreposições de referências intertextuais, refluem numa fisicalidade cheia de sentido, em que os procedimentos perdem o estardalhaço e o poema enuncia o pensamento.

Poemas curtos
Aí converge toda a tradição lírica de língua alemã, de Hölderlin e Rilke, com sua capacidade de condensar pensamento em relações entre palavras, sem nunca apelar para uma autoridade conceitual ou filosófica exterior ao andamento próprio do verso. Mas mesmo essa tradição também se encontra fundida com a escrita religiosa -do judaísmo, do cristianismo, do luteranismo, e outras-, o que acirra a crise do sujeito lírico, individualista e laico, pelo confronto com a autoridade do sagrado.
A gravidade do resultado artístico tampouco faz concessão ao efeito, não adula o leitor nem oferece chaves interpretativas prontas, sejam de uma estética ou de um movimento artístico. A eleição do poema curto se converte por sua vez numa contração de sentido sem qualquer propósito de eficiência verbal ou sonora, sem que isto implique abdicação reflexiva, pois em Celan o mínimo de significante tende paradoxalmente a gerar o máximo de significação.
Nada disso se conhece na poesia brasileira, nem mesmo nos seus picos, o que dificulta a recriação que pode até converter o experimento celaniano num metaforismo descabelado, num surrealismo tardio, num estilo gnômico de atmosfera "poética". São riscos inevitáveis advindos de uma noção atrasada de invenção literária e também, por que não, da inexistência de um conhecimento filosófico menos especializado e meramente universitário.
Outros obstáculos se devem à pouca familiaridade com as fontes literárias do escritor -a poesia do Leste europeu, a tradição judaica, a cabala, a filosofia heideggeriana, a dialética negativa e outras teologias igualmente negativas. Afora uma diferença de atitude política: a poesia de Celan fala para uma humanidade inalcançável, incerta de sua própria humanidade. "Ferido-de-realidade", como ele se diz, o sujeito dessa poesia traz para dentro da língua essa incerteza, uma vez que o diálogo, ao qual se propõe, também carrega consigo o sofrimento da memória e a ameaça permanente de regressão.
Toco aqui noutro ponto: a progressiva clareza desse hermetismo intratável. Celan parece estar se tornando acessível, como se a dificuldade do sentido poético fosse se deixando permear pelo esforço coletivo de entendimento, beneficiando-se de algum modo da contribuição exegética dos estudiosos, filólogos, biógrafos e filósofos que vêm se dedicando à explicação da obra. É interessante constatar que seu modo de poetar acaba desencadeando por força própria uma corrente oposta e igual de esclarecimento, que restaura, para a compreensão pública, os pontos de partida abolidos por uma escrita lacunar.

A negatividade de Celan
Entretanto, essa corrente esclarecedora também pode represar a dificuldade de seu dizer, amarrando-o a uma hermenêutica de fundamento linguístico, judaístico, psicanalítico ou filosófico, cada qual querendo reinterpretar a negatividade celaniana despojada de referência histórica, cada qual querendo resgatar a positividade do irrepresentável e do indizível, alçada a uma atitude ética em abstrato.
Ainda que eu não possa afirmar com certeza, Paul Celan talvez seja hoje o poeta contemporâneo mais traduzido e estudado em todo o mundo, tendo atravessado, como o lume de "Stretto", a noite dessa língua alemã cifrada e filologicamente inventada, antes de chegar a outras plagas e culturas. Mas não é só isso, a qualidade dessa poesia talvez resida na sua surpreendente capacidade de responder ao presente, falando a fundo aos sobreviventes de outro totalitarismo, o do mercado.

Cristal
Paul Celan Seleção e tradução: Claudia Cavalcanti Iluminuras (Tel. 0/xx/11/3068-9433) 192 págs., R$ 24,00



Cabalmente, a vida hoje "globalizou" com tanta intensidade a miséria e o terror que, vítimas de outra liga de barbárie e progresso técnico, nos tornamos o "tu" que esses poemas apostrofam, como se a poética da Shoah se reatualizasse no coração do presente. O lírico da Bucovina, que construiu sua obra para refutar o nazismo e superar o emudecimento e a liquidação, cultuando a memória dos mortos, tende a abrigar nela, em sua trama linguística, uma outra experiência que mantém vivo o núcleo de sua poética.
De Baudelaire disse Walter Benjamin que escrevera um livro para um leitor que ainda não existia na época das "Flores do Mal"; a repercussão constante (desde sua estréia, seja frisado) e cada dia maior da poesia de Celan convalida o destino vagaroso da lírica que aos poucos descobre sua universalidade, consolidando-a noutro tempo. Se não for um exagero, o conselho que Celan deu a Israel Chalfen ("Leia! Basta ler e reler e reler, o entendimento vem por si mesmo") já contém a percepção de quanto é o próprio leitor com sua experiência que realiza o poema, assim como o alto lirismo aos poucos tem expandido seu núcleo histórico.
As traduções de Claudia Cavalcanti parecem brotar fáceis e calorosas, preferindo que a voz de Celan soe natural e o menos aberrante possível. Essa lição de fluência (a mesma das traduções publicadas em Portugal por João Barrento e Yvette Centeno) permite que a tradutora "naturalize" um andamento que é tortuoso, opaco, inacessível, fazendo que o leitor busque a tranquilidade do fim do verso, ao invés de perder-se na implosão interna da sintaxe -no seu abafamento respiratório.
Mas aqui não vai uma crítica, afinal o trabalho árduo da tradutora tem qualidades e não foge dos pontos de tensão do original. Ela não busca sonoridades por sonoridades, encantando-se com similaridades aleatórias do léxico de chegada com o alemão, ou buscando recriações imaginosas que exorbitam o poema (quando ousa, o faz abonada pelas possibilidades do original, explicitando o trocadilho: "Eis-me na flor da hora murcha" por "Ich steh im Flor der abgeblühten Stunde", literalmente algo como "Permaneço na floração (ou profusão) da hora fanada", pois a expressão "im Flor" contém a idéia de conjunto de flores e de auge do florir); ela domina as dificuldades do texto e sabe quão escarpada é a equivalência buscada.
Por isso procura compreender o poema, atendo-se na transposição às relações semânticas, em vez de se afoitar na recriação brilhante, mas vazia. Esse cuidado se patenteia nas recriações dos compostos, que chovem a três por dois no original, sempre na fronteira entre as potencialidades do alemão e a imaginação personalíssima do escritor.
Claudia Cavalcanti adotou o critério bom de criar o vocábulo composto ou então, conforme o caso, desdobrá-lo cursivamente num sintagma nominal. Prefere não praticar circunlóquios para desmontar as metáforas chapadas de Celan, como o faz Michael Hamburger nas traduções para o inglês com a intenção de contextualizar o inopinado das imagens, cuja funcionalidade os poemas sonegam.
Se o preceito da economia e do ir-direto tem as vantagens do enxuto, a característica maior do escritor, que é a exploração obsessiva da sintaxe, desaparece. A incerteza de um dizer ameaçado de dentro se manifesta na tortura expressiva de Celan pela proliferação de partículas como conjunções, pronomes e adjuntos, complicando os nexos e subvertendo a lógica sintática. Claudia explora menos esse aspecto do que poderia, talvez para não expor a ferida comunicativa.
Algum escolho encontro em certas passagens mais difíceis, desafiadoramente impossíveis para o tradutor, como o memorável "vernichtet/ichten" (o verbo neológico "ichten" -um "dichten", poetar, trovar, amputado- sai de dentro do cosmo aniquilado, "vernichtet", como a ação de algo sobre o eu, "ich", flexionado na terceira pessoa do imperfeito de "ichen" -egoar? egoir?-, ou também como pedaço da própria ação de aniquilar, "vernichten") do poema "Uma Vez" ("Einmal"): "Um e Infindo,/ destruído,/ eu-truído" ("Eins und Unendlich,/ vernichtet,/ ichten").
Ou então às vezes parece que a tradutora não persegue o significado preciso, recorrendo a uma designação mais folgada. Por exemplo: pelo púbico vira vulva; menestrel, cantor; comer ou dar de comer, degustar (todos na pág. 19), e assim vai... Todas essas nuanças podem ser defensáveis dado o sibilismo do original, porém tendem sempre para a subjetivização, como se a marcação cerrada da retórica celaniana fosse vaga. Atenua-se desse modo o saber da precisão, obscura e antipoetizante, do maior poeta de nosso tempo, cuja busca da realidade prima por apagar a materialidade de coisas que já nem coisas são ou de abstrações que são concretas em demasia.


Vinicius Dantas é poeta, ensaísta e tradutor.


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