São Paulo, Sábado, 14 de Agosto de 1999 |
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Iluminuras publica tradução de poemas do principal lírico de língua alemã da segunda metade do século As refrações de Paul Celan
VINICIUS DANTAS
Cabalmente, a vida hoje "globalizou" com tanta intensidade a miséria e o terror que, vítimas de outra liga de barbárie e progresso técnico, nos tornamos o "tu" que esses poemas apostrofam, como se a poética da Shoah se reatualizasse no coração do presente. O lírico da Bucovina, que construiu sua obra para refutar o nazismo e superar o emudecimento e a liquidação, cultuando a memória dos mortos, tende a abrigar nela, em sua trama linguística, uma outra experiência que mantém vivo o núcleo de sua poética. De Baudelaire disse Walter Benjamin que escrevera um livro para um leitor que ainda não existia na época das "Flores do Mal"; a repercussão constante (desde sua estréia, seja frisado) e cada dia maior da poesia de Celan convalida o destino vagaroso da lírica que aos poucos descobre sua universalidade, consolidando-a noutro tempo. Se não for um exagero, o conselho que Celan deu a Israel Chalfen ("Leia! Basta ler e reler e reler, o entendimento vem por si mesmo") já contém a percepção de quanto é o próprio leitor com sua experiência que realiza o poema, assim como o alto lirismo aos poucos tem expandido seu núcleo histórico. As traduções de Claudia Cavalcanti parecem brotar fáceis e calorosas, preferindo que a voz de Celan soe natural e o menos aberrante possível. Essa lição de fluência (a mesma das traduções publicadas em Portugal por João Barrento e Yvette Centeno) permite que a tradutora "naturalize" um andamento que é tortuoso, opaco, inacessível, fazendo que o leitor busque a tranquilidade do fim do verso, ao invés de perder-se na implosão interna da sintaxe -no seu abafamento respiratório. Mas aqui não vai uma crítica, afinal o trabalho árduo da tradutora tem qualidades e não foge dos pontos de tensão do original. Ela não busca sonoridades por sonoridades, encantando-se com similaridades aleatórias do léxico de chegada com o alemão, ou buscando recriações imaginosas que exorbitam o poema (quando ousa, o faz abonada pelas possibilidades do original, explicitando o trocadilho: "Eis-me na flor da hora murcha" por "Ich steh im Flor der abgeblühten Stunde", literalmente algo como "Permaneço na floração (ou profusão) da hora fanada", pois a expressão "im Flor" contém a idéia de conjunto de flores e de auge do florir); ela domina as dificuldades do texto e sabe quão escarpada é a equivalência buscada. Por isso procura compreender o poema, atendo-se na transposição às relações semânticas, em vez de se afoitar na recriação brilhante, mas vazia. Esse cuidado se patenteia nas recriações dos compostos, que chovem a três por dois no original, sempre na fronteira entre as potencialidades do alemão e a imaginação personalíssima do escritor. Claudia Cavalcanti adotou o critério bom de criar o vocábulo composto ou então, conforme o caso, desdobrá-lo cursivamente num sintagma nominal. Prefere não praticar circunlóquios para desmontar as metáforas chapadas de Celan, como o faz Michael Hamburger nas traduções para o inglês com a intenção de contextualizar o inopinado das imagens, cuja funcionalidade os poemas sonegam. Se o preceito da economia e do ir-direto tem as vantagens do enxuto, a característica maior do escritor, que é a exploração obsessiva da sintaxe, desaparece. A incerteza de um dizer ameaçado de dentro se manifesta na tortura expressiva de Celan pela proliferação de partículas como conjunções, pronomes e adjuntos, complicando os nexos e subvertendo a lógica sintática. Claudia explora menos esse aspecto do que poderia, talvez para não expor a ferida comunicativa. Algum escolho encontro em certas passagens mais difíceis, desafiadoramente impossíveis para o tradutor, como o memorável "vernichtet/ichten" (o verbo neológico "ichten" -um "dichten", poetar, trovar, amputado- sai de dentro do cosmo aniquilado, "vernichtet", como a ação de algo sobre o eu, "ich", flexionado na terceira pessoa do imperfeito de "ichen" -egoar? egoir?-, ou também como pedaço da própria ação de aniquilar, "vernichten") do poema "Uma Vez" ("Einmal"): "Um e Infindo,/ destruído,/ eu-truído" ("Eins und Unendlich,/ vernichtet,/ ichten"). Ou então às vezes parece que a tradutora não persegue o significado preciso, recorrendo a uma designação mais folgada. Por exemplo: pelo púbico vira vulva; menestrel, cantor; comer ou dar de comer, degustar (todos na pág. 19), e assim vai... Todas essas nuanças podem ser defensáveis dado o sibilismo do original, porém tendem sempre para a subjetivização, como se a marcação cerrada da retórica celaniana fosse vaga. Atenua-se desse modo o saber da precisão, obscura e antipoetizante, do maior poeta de nosso tempo, cuja busca da realidade prima por apagar a materialidade de coisas que já nem coisas são ou de abstrações que são concretas em demasia. Vinicius Dantas é poeta, ensaísta e tradutor. Texto Anterior: Marco Aurélio Nogueira: Dois intelectuais emblemáticos Próximo Texto: José Antonio Arantes: O poeta da impermanência Índice |
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