São Paulo, Sábado, 14 de Agosto de 1999
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Trabalhos do crítico Homi Bhabha tratam da identidade contemporânea
O projeto pós-colonial

PAULA MONTERO

O crítico indobritânico Homi K. Bhabha é um dos mais influentes autores da corrente intelectual que, em meados dos anos 80, ficou conhecida como pós-colonialismo. Apesar da imprecisão desse conceito, ele pretende definir um certo tipo de debate cultural no qual os pensadores originários dos países da periferia se propõem a uma crítica radical das formas culturais herdadas do sistema colonial.
Publicado pela primeira vez em 1994 em Londres, "O Local da Cultura" reúne ensaios produzidos entre 1985 e 1992. Esses trabalhos seminais podem ser considerados o esforço mais sistemático para definir o projeto pós-colonial. Trabalhando prioritariamente no campo da teoria literária, a obra de Bhabha contribui, de maneira bastante original e crítica, para o debate contemporâneo sobre as identidades.
O principal objeto de reflexão do autor neste trabalho é o discurso colonial. Essa escolha não é inocente; supõe uma série de implicações que vale a pena esclarecer. De início, designa um lugar de onde se pode falar: o pós-colonialismo pretende ser um contradiscurso daqueles que foram objeto da dominação colonial e que se elabora no exílio, ou seja, no coração da metrópole. Além disso, ao privilegiar os textos em detrimento de todas as outras ordens de realidade que materializaram e reproduziram o colonialismo, o autor singulariza a cultura como o lugar por excelência da resistência aos discursos hegemônicos. Finalmente, inspirado no trabalho já clássico de Edward Said sobre a imagem do Oriente criada pelos intelectuais do Ocidente, o autor lembra que os saberes coloniais nasceram da força.
Na qualidade de professor universitário de crítica literária, propõe uma reflexão que ultrapasse os limites da textualidade, ao supor que existe uma filiação entre a escrita, as instituições da sociedade e o poder. Sua contribuição teórica mais importante situa-se, portanto, nesse deslocamento do político para o campo da estética e no deslindamento dos mecanismos culturais subversivos do poder colonial.
Na introdução de seu livro, Bhabha situa a influência perturbadora da literatura na sua faculdade de revelar aquilo que não pode ser nomeado. A linguagem literária, ao fazer falar o inominado, obriga, segundo o autor, a uma revisão radical dos juízos éticos. Mas não é dada à literatura em geral essa capacidade; na verdade, são os autores da diáspora, marcados por histórias de desenraizamento e reterritorializações, típicas do sistema colonial que os produziu, os personagens centrais dessa crítica. E isso porque eles falam não do ponto de vista da nação, mas a partir do espaço de fronteira: "Vidas na fronteira: a arte do presente" é o subtítulo do capítulo que abre o livro.
A fronteira é pois uma das noções mais importantes dessa obra. Mas não nos enganemos: ela não é uma linha que separa duas culturas; é um espaço onde se articulam as diferenças, onde se produz o hibridismo corrosivo das identidades nacionais. A fronteira não é um lugar, mas sim um espaço entre lugares, espaço não linear e descontínuo que não coincide com a geografia. O conceito advindo dessa definição -a fronteira como um "entre-lugar"- é chave para que possamos compreender como o autor formula sua teoria dos processos de significação cultural.
A partir da noção de entre-lugar como o "locus" privilegiado da produção cultural, Bhabha pretende descrever a emergência de um sujeito colonizado, produto da interação cultural produzida nas fronteiras, onde os significados e valores são (mal) lidos e os signos apropriados de maneira equivocada. Esses sujeitos hifenizados, ambivalentes, híbridos, colocam o problema das diferenças culturais em termos novos: os elementos das diferenças são incomensuráveis e portanto não se pode esperar, nessa relação entre um eu e um outro, a superação dialética que nos levaria a uma síntese cultural.
Está posto nesse posicionamento uma crítica à noção antropológica de diversidade cultural e ao projeto liberal do multiculturalismo. Ao fazer da diversidade cultural o objeto por excelência de sua reflexão, a antropologia teria contribuído para apresentar uma idéia de cultura como tradição, como sistema estável de referência idêntico a si mesmo e intocado antes do contato.

O Local da Cultura
Homi K. Bhabha Tradução: Myriam Ávila, Eliana de Lima Reis e Glaucia Gonçalves Ed. da UFMG (Tel. 0/xx/31/499-4650) 400 págs., R$ 35,00



O enquadramento temporal relativista, ao tomar a diferença como valor, dá origem às noções liberais do multiculturalismo e do intercâmbio cultural. Em vez do relativismo, o autor reivindica a diferença cultural, processo de significação que produz campos de força. Nenhuma cultura é unitária nem simplesmente dualista na sua relação do eu com o outro. Todos os sistemas culturais são construídos no que ele chama -apropriando-se da teoria semiótica- de "terceiro espaço": a produção de sentido de um ato comunicativo nunca se realiza na relação simples de um eu com um você, mas supõe, ao contrário, a presença implícita de um "terceiro espaço" que representa as condições gerais da linguagem e uma estratégia performativa.
A crítica a esse tipo de dualismo binário está na base de seu belo ensaio sobre Franz Fanon, poeta e pensador antilhano cuja obra inspirou os críticos ao colonialismo francês. Homi Bhabha reconhece na crítica de Fanon ao discurso da soberania nacional -que supõe as virtudes da coesão social, da autonomia das consciências e da racionalidade histórica- um avanço positivo da reflexão sobre o colonialismo.
Para Fanon, a condição colonial mina o mito do conceito unitário do homem, já que ela impede a realização do processo de identificação do eu por meio do espelho da alteridade. O branco recusa ser o outro do colonizado, pois não o reconhece. No entanto, o autor critica em Fanon o próprio desejo de reconhecimento. A superação radical do colonialismo significa o abandono da noção de identidade e da esperança dialética de superação da diferença cultural que essa noção alimenta. Reivindicar o hibridismo cultural (e não a identidade) significa recusar a metáfora do espelho como o caminho da produção das identidades, significa mover o enquadramento da identidade do campo da visão (imagem dos traços culturais) para o campo da escrita (discursos da diferença).
Apesar de instigante na interpelação que faz aos modos correntes de enquadrar o problema da diferença e de alguns conceitos caros à antropologia, o trabalho de Homi Bhabha peca pelo hermetismo linguistico e pelo excesso de virtuosismo teórico. Ler os seus ensaios representa uma mortificada tarefa de decifração que muitas vezes não acrescenta muito ao já dito.
Apesar de cuidadoso, o trabalho de tradução intimidou-se diante desse estilo deliberadamente obscuro e preferiu muitas vezes a literalidade à interpretação, tornando algumas frases incompreensíveis em português. O próprio título padece, a meu ver, desse excesso de rigidez, traindo o pensamento do autor, que por "location" pretendia enfatizar o caráter relacional da cultura. A escolha do termo "local", que em português remete à idéia de um espaço físico ocupado, reifica a imagem visual da cultura que o autor pretendia superar. O objetivo maior da obra é definir a posição da cultura, lugar onde uma coisa está colocada quando contraposta na sua relação com as outras. No desvendamento teórico dessa posição está a subversão pretendida pelo autor.


Paula Montero é professora de antropologia na USP.


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