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Trabalhos do crítico Homi Bhabha tratam da identidade contemporânea
O projeto pós-colonial
PAULA MONTERO
O crítico indobritânico Homi K. Bhabha é um dos mais influentes autores da
corrente intelectual que, em meados dos
anos 80, ficou conhecida como pós-colonialismo. Apesar da imprecisão desse
conceito, ele pretende definir um certo tipo de debate cultural no qual os pensadores originários dos países da periferia se
propõem a uma crítica radical das formas
culturais herdadas do sistema colonial.
Publicado pela primeira vez em 1994
em Londres, "O Local da Cultura" reúne
ensaios produzidos entre 1985 e 1992. Esses trabalhos seminais podem ser considerados o esforço mais sistemático para
definir o projeto pós-colonial. Trabalhando prioritariamente no campo da
teoria literária, a obra de Bhabha contribui, de maneira bastante original e crítica, para o debate contemporâneo sobre
as identidades.
O principal objeto de reflexão do autor
neste trabalho é o discurso colonial. Essa
escolha não é inocente; supõe uma série
de implicações que vale a pena esclarecer.
De início, designa um lugar de onde se
pode falar: o pós-colonialismo pretende
ser um contradiscurso daqueles que foram objeto da dominação colonial e que
se elabora no exílio, ou seja, no coração
da metrópole. Além disso, ao privilegiar
os textos em detrimento de todas as outras ordens de realidade que materializaram e reproduziram o colonialismo, o
autor singulariza a cultura como o lugar
por excelência da resistência aos discursos hegemônicos. Finalmente, inspirado
no trabalho já clássico de Edward Said sobre a imagem do Oriente criada pelos intelectuais do Ocidente, o autor lembra
que os saberes coloniais nasceram da força.
Na qualidade de professor universitário
de crítica literária, propõe uma reflexão
que ultrapasse os limites da textualidade,
ao supor que existe uma filiação entre a
escrita, as instituições da sociedade e o
poder. Sua contribuição teórica mais importante situa-se, portanto, nesse deslocamento do político para o campo da estética e no deslindamento dos mecanismos culturais subversivos do poder colonial.
Na introdução de seu livro, Bhabha situa a influência perturbadora da literatura na sua faculdade de revelar aquilo que
não pode ser nomeado. A linguagem literária, ao fazer falar o inominado, obriga,
segundo o autor, a uma revisão radical
dos juízos éticos. Mas não é dada à literatura em geral essa capacidade; na verdade, são os autores da diáspora, marcados
por histórias de desenraizamento e reterritorializações, típicas do sistema colonial
que os produziu, os personagens centrais
dessa crítica. E isso porque eles falam não
do ponto de vista da nação, mas a partir
do espaço de fronteira: "Vidas na fronteira: a arte do presente" é o subtítulo do capítulo que abre o livro.
A fronteira é pois uma das noções mais
importantes dessa obra. Mas não nos enganemos: ela não é uma linha que separa
duas culturas; é um espaço onde se articulam as diferenças, onde se produz o hibridismo corrosivo das identidades nacionais. A fronteira não é um lugar, mas
sim um espaço entre lugares, espaço não
linear e descontínuo que não coincide
com a geografia. O conceito advindo dessa definição -a fronteira como um "entre-lugar"- é chave para que possamos
compreender como o autor formula sua
teoria dos processos de significação cultural.
A partir da noção de entre-lugar como
o "locus" privilegiado da produção cultural, Bhabha pretende descrever a emergência de um sujeito colonizado, produto
da interação cultural produzida nas fronteiras, onde os significados e valores são
(mal) lidos e os signos apropriados de
maneira equivocada. Esses sujeitos hifenizados, ambivalentes, híbridos, colocam
o problema das diferenças culturais em
termos novos: os elementos das diferenças são incomensuráveis e portanto não
se pode esperar, nessa relação entre um
eu e um outro, a superação dialética que
nos levaria a uma síntese cultural.
Está posto nesse posicionamento uma
crítica à noção antropológica de diversidade cultural e ao projeto liberal do multiculturalismo. Ao fazer da diversidade
cultural o objeto por excelência de sua reflexão, a antropologia teria contribuído
para apresentar uma idéia de cultura como tradição, como sistema estável de referência idêntico a si mesmo e intocado
antes do contato.
O Local da Cultura
Homi K. Bhabha
Tradução: Myriam Ávila, Eliana de Lima Reis
e Glaucia Gonçalves
Ed. da UFMG (Tel. 0/xx/31/499-4650)
400 págs., R$ 35,00
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O enquadramento temporal relativista,
ao tomar a diferença como valor, dá origem às noções liberais do multiculturalismo e do intercâmbio cultural. Em vez do
relativismo, o autor reivindica a diferença
cultural, processo de significação que
produz campos de força. Nenhuma cultura é unitária nem simplesmente dualista na sua relação do eu com o outro. Todos os sistemas culturais são construídos
no que ele chama -apropriando-se da
teoria semiótica- de "terceiro espaço": a
produção de sentido de um ato comunicativo nunca se realiza na relação simples
de um eu com um você, mas supõe, ao
contrário, a presença implícita de um
"terceiro espaço" que representa as condições gerais da linguagem e uma estratégia performativa.
A crítica a esse tipo de dualismo binário
está na base de seu belo ensaio sobre
Franz Fanon, poeta e pensador antilhano
cuja obra inspirou os críticos ao colonialismo francês. Homi Bhabha reconhece
na crítica de Fanon ao discurso da soberania nacional -que supõe as virtudes
da coesão social, da autonomia das consciências e da racionalidade histórica-
um avanço positivo da reflexão sobre o
colonialismo.
Para Fanon, a condição colonial mina o
mito do conceito unitário do homem, já
que ela impede a realização do processo
de identificação do eu por meio do espelho da alteridade. O branco recusa ser o
outro do colonizado, pois não o reconhece. No entanto, o autor critica em Fanon o
próprio desejo de reconhecimento. A superação radical do colonialismo significa
o abandono da noção de identidade e da
esperança dialética de superação da diferença cultural que essa noção alimenta.
Reivindicar o hibridismo cultural (e não
a identidade) significa recusar a metáfora
do espelho como o caminho da produção
das identidades, significa mover o enquadramento da identidade do campo da visão (imagem dos traços culturais) para o
campo da escrita (discursos da diferença).
Apesar de instigante na interpelação
que faz aos modos correntes de enquadrar o problema da diferença e de alguns
conceitos caros à antropologia, o trabalho de Homi Bhabha peca pelo hermetismo linguistico e pelo excesso de virtuosismo teórico. Ler os seus ensaios representa uma mortificada tarefa de decifração que muitas vezes não acrescenta muito ao já dito.
Apesar de cuidadoso, o trabalho de tradução intimidou-se diante desse estilo
deliberadamente obscuro e preferiu muitas vezes a literalidade à interpretação,
tornando algumas frases incompreensíveis em português. O próprio título padece, a meu ver, desse excesso de rigidez,
traindo o pensamento do autor, que por
"location" pretendia enfatizar o caráter
relacional da cultura. A escolha do termo
"local", que em português remete à idéia
de um espaço físico ocupado, reifica a
imagem visual da cultura que o autor
pretendia superar. O objetivo maior da
obra é definir a posição da cultura, lugar
onde uma coisa está colocada quando
contraposta na sua relação com as outras.
No desvendamento teórico dessa posição
está a subversão pretendida pelo autor.
Paula Montero é professora de antropologia na USP.
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