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Arquitetura fascista
RENATO ANELLI
Perfurar o epíteto de "arquitetura fascista" que recobre a obra do
arquiteto italiano Marcello Piacentini é o objetivo deste livro de
Marcos Tognon, publicação de sua pesquisa desenvolvida em
1993 no mestrado em história da arte e da cultura (Unicamp).
Questionar os limites dessa classificação sócio-política não significa se refugiar no campo disciplinar. Trata-se de uma obra que
não prescinde do estudo da sua relação com o fascismo para a
sua compreensão. O desafio está em entender como esse novo
capítulo da linhagem clássica da arquitetura se constituiu e por
meio de quais estratagemas conquistou a preferência na representação do regime fascista.
00As pesquisas recentes sobre a arquitetura italiana nas duas décadas de Mussolini revelam uma complexidade ausente dos estudos que relacionam automaticamente os regimes totalitários
com versões monumentais do classicismo. No caso italiano, a
oposição entre modernos antifascistas e acadêmicos fascistas
não mais se sustenta. É sempre desconfortável lembrar, que
frente à desmoralizada democracia italiana do início dos anos
20, o fascismo foi um movimento com ampla adesão popular.
Após massacrar as alternativas de esquerda, o fascismo gozou
por anos de unanimidade, inclusive entre os arquitetos, fossem
eles racionalistas ou acadêmicos.
00A disputa ocorreu entre vários agrupamentos de arquitetos
pela hegemonia na representação do regime. Paradoxalmente, a
primeira proposta de uma arquitetura como "arte de Estado"
veio dos racionalistas em 1931, pela ação de Pietro Maria Bardi,
em sua "Petição a Mussolini Pela Arquitetura". Nesse manifesto,
Bardi defendia que os jovens do Movimento Italiano de Arquitetura Racional (e não a classe de profissionais consolidados, liderados por Piacentini) deveriam ser os legítimos representantes
do espírito modernizador fascista. Quando, em 1937, Mussolini
finalmente resolveu adotar um estilo oficial, não optou pelo racionalismo e sim pelo classicismo de Piacentini. Além de ser coerente com o poder interno à corporação dos arquitetos, a opção
de Mussolini foi motivada pela declaração do Império Italiano
após a invasão de Etiópia. Um império deveria ter um estilo que
remetesse, sem mediações, à grandeza do Império Romano.
00Por um motivo externo ao campo disciplinar, encerrou-se um
período de coexistência durante o qual Piacentini exerceu o papel de árbitro no meio profissional, manipulando com destreza a
distribuição de projetos oficiais entre as diversas correntes de arquitetura. Continha o vanguardismo dos jovens racionalistas e
combatia o conservadorismo dos velhos acadêmicos, delineando um campo em que haveria espaço para aqueles que reconhecessem sua liderança na modernização da arquitetura italiana.
Depois de 1937, e especialmente após a rendição italiana em
1943, vários arquitetos ex-adeptos do fascismo partiram para a
oposição, alguns deles pagando com a vida as suas ilusões na
modernidade do regime.
00Após a queda do "Duce", Piacentini foi absolvido nos processos que se seguiram ao final da guerra, refugiando-se na trincheira do profissionalismo -ele teria apenas atendido às demandas
desse comitente, independente de sua ideologia política. Durante a década de 50, manteve-se no poder na Faculdade de Arquitetura de Roma, mas não conseguiu jamais se livrar do rótulo de
"arquiteto do fascismo", que o acompanhou por todo o declínio
de seu prestígio profissional.
00Com o esgotamento desse embate, iniciou-se uma revisão da
historiografia da arquitetura italiana dentro da qual o trabalho
de Marcos Tognon se situa. Piacentini já apresentava uma importante arquitetura nos anos anteriores ao fascismo, com contribuições inestimáveis no âmbito do urbanismo e da capacitação profissional, para citar apenas dois entre vários dos seus atributos que foram transmitidos aos seus alunos em Roma, alguns
dos quais se tornariam importantes arquitetos no Brasil -Gregori Warchavchik, Rino Levi, Lina Bo. Todos os depoimentos revelam um professor experiente, ativo introdutor da obra de arquitetos modernos em suas aulas. Mas, ao contrário de seus alunos, Piacentini permaneceu mais próximo à forma clássica, inclusive na sua retórica cívica e monumental.
00A pesquisa de Tognon se dedica a entender um capítulo da
obra arquitetônica de Piacentini, reconstituindo a trajetória dos
seus projetos no Brasil. O acurado estudo das suas propostas para a cidade universitária do Rio de Janeiro e dos trabalhos para o
conde Matarazzo, em São Paulo, traz documentos de arquivos
italianos e brasileiros, identifica a contribuição de Piacentini e
nos introduz a seu colaborador nas obras brasileiras, o arquiteto
romano Vittorio Mopurgo.
00Além de permitir uma comparação com os projetos de Le
Corbusier e Lúcio Costa, a publicação do projeto de Piacentini
para a cidade universitária revela várias coincidências com as
proposições urbanísticas pós-modernas, que chegaram ao Brasil
na década de 80. Já estão ali as praças porticadas, os eixos de simetria, a hierarquia dos espaços abertos, valores que pretendiam embasar um urbanismo que superasse as insatisfações
com a cidade funcionalista. Não parece ser casual que tenha sido
esse o momento de revalorização historiográfica da obra desse
arquiteto. Mas o débito do pós-modernismo para com a "arquitetura fascista" é um assunto para outros estudos.
00A publicação é fiel ao rigor com o qual foi desenvolvida a pesquisa: a argumentação é fundamentada em documentos originais, parte deles incorporada ao texto mediante uma preciosa
iconografia (garimpada nos arquivos e cuidadosamente identificada e analisada) e de um vasto conjunto de notas e anexos, capazes de alimentar o leitor com dados seminais para outras pesquisas. Sua qualidade demonstra o quanto é infundado o atual
preconceito editorial que vem alijando o público de conhecer excelentes trabalhos de pesquisa acadêmica na área de história da
arquitetura. A publicação de trabalhos com essa qualidade é fundamental para a construção de um campo de conhecimento disciplinar que combata a crescente banalização da arquitetura no
Brasil.
Arquitetura Italiana no Brasil - A Obra de Marcello Piacentini
Marcos Tognon
Editora da Unicamp (tel. 0/xx/19/ 788-1015)
278 págs., R$ 33,00
Renato L. S. Anelli é professor do departamento de arquitetura e urbanismo da USP (São
Carlos).
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