|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
Um outro Raul Bopp
SEBASTIÃO UCHOA LEITE
A recente publicação da
"Poesia Completa" de
Raul Bopp vem suprir
uma das várias lacunas
editoriais na área de poesia no
Brasil. E das mais importantes,
por se tratar de um nome básico
do modernismo brasileiro e um
dos representantes do movimento
da antropofagia. Com esta edição,
exemplar em vários sentidos, inclusive pelo moderno aspecto gráfico, a impressão que se tem é a de
que Raul Bopp teve, pela primeira
vez, a obra perfeitamente mapeada. O conjunto dessa obra apresenta agora uma organização mais
lógica, bem estruturada, longe da
impressão de disjecta membra
que as edições anteriores suscitavam.
Deve-se isso, é claro, à acuidade
do organizador, que não se deixou
levar pela imagem convencional
de um poeta que conquistou certa
audiência marcada por uma aura
"folclórica". Desde a "pré-história" dela, com os "Versos Antigos", intercalando-se um novo
segmento com "Como se Vai de
São Paulo a Curitiba", até a parte
final dos "Parapoemas", obteve-se não meramente uma ordem
sequencial, mas uma nova imagem lógico-estrutural dessa
"poética" peculiar, que sai renovada nesta reavaliação. Sai "outro" poeta.
Que outro poeta? Em primeiro
lugar, as denominações (folclórico, regional ou mesmo antropofágico) ficam parecendo, senão irreais, insuficientes para a compreensão do todo. Bopp é poeta
moderno, mas é, antes de qualquer coisa, se tiver de ter um traço
qualificativo, mítico, em algumas
de suas linhas dominantes. Esta
mítica é mais abrangente do que a
delineação dos elementos puramente folclóricos da obra. Eles
emergem mais claramente na
obra principal, "Cobra Norato",
mas o sentido mítico subjacente à
criação poética nesse texto e noutros vai além desses componentes.
Ele é composto de elementos como as idéias de árvores e raízes
-que traduzem o sentido de organicidade inerente à criação natural-, a idéia de viagem, compreendendo a ida em si e o alcance
de um determinado ponto, e a
idéia de integração que corre em
dois planos interconectados, o
cósmico e o social.
Essas idéias foram disseminadas
por toda a obra de Bopp e já se
encontravam delineadas antes
que o texto em que confluíram,
"Cobra Norato", se definisse
completamente. Neste sentido, é
fundamental a intercalação, nessa
reunião completa, do texto "Como se Vai de São Paulo a Curitiba". Juntamente com quatro poemas, quase no fim de "Versos
Antigos" ("No Amazonas",
"Cidade Selvagem", "Mãe Febre" e "Pântano"), ele coloca os
fundamentos da poética mítica
que explodirá em "Cobra Norato", inclusive em termos de linguagem, exceto o humor que penetraria o texto maior de Bopp e
nele teria uma função crucial.
Em "No Amazonas" o sujeito
do poema morde "a nuca das
grandes árvores", como num rito
iniciático para o grande encontro
mítico, o tema final da integração
em que "a selva é a grande oficina
em que se forjam as estrelas". Veja-se a imagem já "noratiana":
"E a água (outro elemento mítico) cresce, arrastando-se como
uma enorme aranha pelo chão".
Nos outros textos, a profusão metafórica já prevê o que virá depois
na grande viagem. Quando se sai
desses textos e se entra em "Como se Vai de São Paulo a Curitiba" a impressão é a de um corte
abrupto da linguagem metafórica
para uma linguagem mais realista
e denotativa, de puras anotações
casuais. No entanto, a narrativa já
traz consigo alguns indícios que
parecem preceder o salto mítico: o
tema da viagem é plenamente explicitado, insinua-se já a estrutura
dialógica que se afirmará depois e
desemboca num final-sem-fim,
em que as imagens reais já se tornam mágicas, ao entrar-se pela
"arquitetura soturna do mato"
onde "vagalumes beliscam a
sombra" e "árvores, em trajes
apressados, bisbilham e espiam da
pontinha dos pés". Não parece,
já, a linguagem noratiana? É hora
de parar. De fato, o herói interrompe a viagem e "cai(o) pelos
cobertores, com os olhos amassados de sono". Não é bem uma
viagem mítica, mas quase, interrompida pelo sono, que é real.
Esta viagem será realmente o
substrato de "Cobra Norato".
Mas, como a trama mítica é escassa, a narrativa se parece mais com
uma aventura da linguagem poética do que outra coisa qualquer.
Como a trama se insere mais no
plano do maravilhoso, onde a antropomorfização é lei natural e a
metamorfose a tática espontânea
de integração, o texto nos transmite de imediato a idéia de que a
ficção poética pode tudo. A isso
corresponde, mais ou menos, a
"pele elástica" que o organizador
vê como a estratégia de abrangência poética por excelência. Esta inclui, é claro, o jogo linguístico, um
excesso metafórico e metamórfico
que insere o poema num labirinto
pós-barroco de imagens. Tudo resultado de uma "bricolage" superior, segundo ainda o organizador e outros. Em suma, não é um
fluxo do inconsciente (como seria
o da técnica surrealista), mas, ao
contrário, uma hiperbólica valoração da linguagem do consciente.
A OBRA
Poesia Completa -
Raul Bopp
Organização: Augusto Massi.
José Olympio/ Edusp (Tel. 011/818-4149)
350 págs., R$ 29,80
|
"Cobra Norato" é uma espécie
de montagem hiperpoética que,
caso se transformasse numa máquina de invenção imagística para
a continuidade da criação poética
posterior, poderia se transformar
num cacoete linguístico muito
pouco digerível, como sucede em
certos casos. A pouca digeribilidade resultaria de que a sucessão
sem-fim de imagens de seres antropomorfizados e de infinitivos
em diminutivos transmitiria fatalmente a idéia de infantilização
sentimental da linguagem. Não é
isso cortado pelo humor, que é
um elemento relativizador por excelência? Adverte-nos que o jogo
tem um fim. "Cobra Norato" é
um universo fechado em si, é um
poema do maravilhoso, dialógico,
polifônico (Massi dixit) e sem pretensões. Por isso não é épico, como alguns querem, pois nele não
há ações heróicas e conflitos externos, conforme as hipóteses
clássicas do épico, aristotélica ou
hegeliana.
"Urucungo" não é uma continuidade linguística nem semântica de "Cobra Norato", mas coisa
diversa. Nesse conjunto persiste o
elemento mítico, sobretudo o objetivo de integração do homem
negro no seu próprio cosmos, a
consciência das suas origens, e ao
mesmo tempo emerge fortemente
o aspecto social do tema da negritude. A poesia de Bopp se declara
política no sentido amplo . Em alguns poemas a realidade da opressão e submissão emerge sob uma
luz cruel, como na surpresa contundente (pela violência narrativa) de "Dona Chica", mas também em "Negro" e "Serra do
Balalão", ou ainda na violência
verbal do refrão "negra boba" de
"Mucama', e outras sugestões.
Enfim, afastamo-nos aqui da submersão nas águas míticas da poética noratiana, com as associações
folclórico-míticas/ marioandradinas-macunaímicas, e emergem as
variantes sociopolíticas, oswaldianas. Também se espelha nos poemas outra variante importante, a
erótico-étnica (também dispersa
na poesia negra de Jorge de Lima),
sendo o aspecto erotismo/repressão mais claramente detonado em
"Dona Chica".
Com "Urucungo" se tornam
mais claros ainda os processos
modernos da poesia boppiana, da
evolução do "sermo nobilis" na
direção da mistura coloquial linguística aos recursos da linguagem dialógica e da polifonia verbal e da alternância dos discursos
direto e indireto à dissolução dos
limites entre humor, ironia e discurso crítico.
Se até "Urucungo" ainda se pode discernir uma direção evolutiva na poética boppiana, por etapas sucessivas, esta linearidade se
dissolve nos conjuntos "Poemas
Brasileiros", "Diábolus" e "Parapoemas", em que a cronologia
enlouquece, e as camadas sígnicas
e processos linguísticos se superpõem. Dos "Poemas Brasileiros"
se pode dizer que são uma síntese
dos momentos anteriores das linguagens noratiana (mítico-indígena) e urucunguiana (mítico-negra-social). Participam desses
dois climas poético-linguísticos
em contextos similares, mas épocas diversas. Pende, porém, mais
para o vetor sociopolítico do que
para o vetor mítico, o que significa
que o direcionamento urucunguiano venceu na linguagem boppiana. Suas ambições épicas se limitaram a resumos, como em
"Princípio" (vetor mítico),
"História" (vetor histórico ou
sociopolítico) e "Mironga" e
"História do Brasil em Quadrinhos" (sínteses dos dois vetores).
O conjunto "Diábolus", porém,
embora ainda devendo à linguagem urucunguiana, nos transporta para uma dimensão histórico-político mais maleável. "Estos
Diábolos", uma maravilha erótico-paródica, tal como "Coco"
fora uma maravilha erótico-sentimental, nos transporta para um
clima de absoluta liberdade linguística, que pode parecer posterior, mas é, surpreendentemente,
contemporâneo dos poemas de
"Urucungo". São processos simultâneos.
Ainda haveria muito a dizer do
curioso ziguezague linguístico de
Raul Bopp, cuja consciência de
linguagem se torna claríssima pelo exercício comparativo das diversas versões dos seus poemas,
um presente crítico de Augusto
Massi nesta edição da "Poesia
Completa". Qualquer imagem
naif do autor que ainda perdurasse aqui se dissolve à luz da leitura
detalhista do processo, o que se
transforma em rara lição crítica.
Sebastião Uchoa Leite é poeta, autor de "A
Ficção da Vida" (34 Letras), e ensaísta, autor de
"Jogos e Enganos" (34 Letras).
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
|