São Paulo, sábado, 14 de novembro de 1998

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Um outro Raul Bopp

SEBASTIÃO UCHOA LEITE

A recente publicação da "Poesia Completa" de Raul Bopp vem suprir uma das várias lacunas editoriais na área de poesia no Brasil. E das mais importantes, por se tratar de um nome básico do modernismo brasileiro e um dos representantes do movimento da antropofagia. Com esta edição, exemplar em vários sentidos, inclusive pelo moderno aspecto gráfico, a impressão que se tem é a de que Raul Bopp teve, pela primeira vez, a obra perfeitamente mapeada. O conjunto dessa obra apresenta agora uma organização mais lógica, bem estruturada, longe da impressão de disjecta membra que as edições anteriores suscitavam.
Deve-se isso, é claro, à acuidade do organizador, que não se deixou levar pela imagem convencional de um poeta que conquistou certa audiência marcada por uma aura "folclórica". Desde a "pré-história" dela, com os "Versos Antigos", intercalando-se um novo segmento com "Como se Vai de São Paulo a Curitiba", até a parte final dos "Parapoemas", obteve-se não meramente uma ordem sequencial, mas uma nova imagem lógico-estrutural dessa "poética" peculiar, que sai renovada nesta reavaliação. Sai "outro" poeta.
Que outro poeta? Em primeiro lugar, as denominações (folclórico, regional ou mesmo antropofágico) ficam parecendo, senão irreais, insuficientes para a compreensão do todo. Bopp é poeta moderno, mas é, antes de qualquer coisa, se tiver de ter um traço qualificativo, mítico, em algumas de suas linhas dominantes. Esta mítica é mais abrangente do que a delineação dos elementos puramente folclóricos da obra. Eles emergem mais claramente na obra principal, "Cobra Norato", mas o sentido mítico subjacente à criação poética nesse texto e noutros vai além desses componentes. Ele é composto de elementos como as idéias de árvores e raízes -que traduzem o sentido de organicidade inerente à criação natural-, a idéia de viagem, compreendendo a ida em si e o alcance de um determinado ponto, e a idéia de integração que corre em dois planos interconectados, o cósmico e o social.
Essas idéias foram disseminadas por toda a obra de Bopp e já se encontravam delineadas antes que o texto em que confluíram, "Cobra Norato", se definisse completamente. Neste sentido, é fundamental a intercalação, nessa reunião completa, do texto "Como se Vai de São Paulo a Curitiba". Juntamente com quatro poemas, quase no fim de "Versos Antigos" ("No Amazonas", "Cidade Selvagem", "Mãe Febre" e "Pântano"), ele coloca os fundamentos da poética mítica que explodirá em "Cobra Norato", inclusive em termos de linguagem, exceto o humor que penetraria o texto maior de Bopp e nele teria uma função crucial.
Em "No Amazonas" o sujeito do poema morde "a nuca das grandes árvores", como num rito iniciático para o grande encontro mítico, o tema final da integração em que "a selva é a grande oficina em que se forjam as estrelas". Veja-se a imagem já "noratiana": "E a água (outro elemento mítico) cresce, arrastando-se como uma enorme aranha pelo chão". Nos outros textos, a profusão metafórica já prevê o que virá depois na grande viagem. Quando se sai desses textos e se entra em "Como se Vai de São Paulo a Curitiba" a impressão é a de um corte abrupto da linguagem metafórica para uma linguagem mais realista e denotativa, de puras anotações casuais. No entanto, a narrativa já traz consigo alguns indícios que parecem preceder o salto mítico: o tema da viagem é plenamente explicitado, insinua-se já a estrutura dialógica que se afirmará depois e desemboca num final-sem-fim, em que as imagens reais já se tornam mágicas, ao entrar-se pela "arquitetura soturna do mato" onde "vagalumes beliscam a sombra" e "árvores, em trajes apressados, bisbilham e espiam da pontinha dos pés". Não parece, já, a linguagem noratiana? É hora de parar. De fato, o herói interrompe a viagem e "cai(o) pelos cobertores, com os olhos amassados de sono". Não é bem uma viagem mítica, mas quase, interrompida pelo sono, que é real.
Esta viagem será realmente o substrato de "Cobra Norato". Mas, como a trama mítica é escassa, a narrativa se parece mais com uma aventura da linguagem poética do que outra coisa qualquer. Como a trama se insere mais no plano do maravilhoso, onde a antropomorfização é lei natural e a metamorfose a tática espontânea de integração, o texto nos transmite de imediato a idéia de que a ficção poética pode tudo. A isso corresponde, mais ou menos, a "pele elástica" que o organizador vê como a estratégia de abrangência poética por excelência. Esta inclui, é claro, o jogo linguístico, um excesso metafórico e metamórfico que insere o poema num labirinto pós-barroco de imagens. Tudo resultado de uma "bricolage" superior, segundo ainda o organizador e outros. Em suma, não é um fluxo do inconsciente (como seria o da técnica surrealista), mas, ao contrário, uma hiperbólica valoração da linguagem do consciente.

A OBRA

Poesia Completa -
Raul Bopp
Organização: Augusto Massi.
José Olympio/ Edusp (Tel. 011/818-4149)
350 págs., R$ 29,80



"Cobra Norato" é uma espécie de montagem hiperpoética que, caso se transformasse numa máquina de invenção imagística para a continuidade da criação poética posterior, poderia se transformar num cacoete linguístico muito pouco digerível, como sucede em certos casos. A pouca digeribilidade resultaria de que a sucessão sem-fim de imagens de seres antropomorfizados e de infinitivos em diminutivos transmitiria fatalmente a idéia de infantilização sentimental da linguagem. Não é isso cortado pelo humor, que é um elemento relativizador por excelência? Adverte-nos que o jogo tem um fim. "Cobra Norato" é um universo fechado em si, é um poema do maravilhoso, dialógico, polifônico (Massi dixit) e sem pretensões. Por isso não é épico, como alguns querem, pois nele não há ações heróicas e conflitos externos, conforme as hipóteses clássicas do épico, aristotélica ou hegeliana.
"Urucungo" não é uma continuidade linguística nem semântica de "Cobra Norato", mas coisa diversa. Nesse conjunto persiste o elemento mítico, sobretudo o objetivo de integração do homem negro no seu próprio cosmos, a consciência das suas origens, e ao mesmo tempo emerge fortemente o aspecto social do tema da negritude. A poesia de Bopp se declara política no sentido amplo . Em alguns poemas a realidade da opressão e submissão emerge sob uma luz cruel, como na surpresa contundente (pela violência narrativa) de "Dona Chica", mas também em "Negro" e "Serra do Balalão", ou ainda na violência verbal do refrão "negra boba" de "Mucama', e outras sugestões. Enfim, afastamo-nos aqui da submersão nas águas míticas da poética noratiana, com as associações folclórico-míticas/ marioandradinas-macunaímicas, e emergem as variantes sociopolíticas, oswaldianas. Também se espelha nos poemas outra variante importante, a erótico-étnica (também dispersa na poesia negra de Jorge de Lima), sendo o aspecto erotismo/repressão mais claramente detonado em "Dona Chica".
Com "Urucungo" se tornam mais claros ainda os processos modernos da poesia boppiana, da evolução do "sermo nobilis" na direção da mistura coloquial linguística aos recursos da linguagem dialógica e da polifonia verbal e da alternância dos discursos direto e indireto à dissolução dos limites entre humor, ironia e discurso crítico.
Se até "Urucungo" ainda se pode discernir uma direção evolutiva na poética boppiana, por etapas sucessivas, esta linearidade se dissolve nos conjuntos "Poemas Brasileiros", "Diábolus" e "Parapoemas", em que a cronologia enlouquece, e as camadas sígnicas e processos linguísticos se superpõem. Dos "Poemas Brasileiros" se pode dizer que são uma síntese dos momentos anteriores das linguagens noratiana (mítico-indígena) e urucunguiana (mítico-negra-social). Participam desses dois climas poético-linguísticos em contextos similares, mas épocas diversas. Pende, porém, mais para o vetor sociopolítico do que para o vetor mítico, o que significa que o direcionamento urucunguiano venceu na linguagem boppiana. Suas ambições épicas se limitaram a resumos, como em "Princípio" (vetor mítico), "História" (vetor histórico ou sociopolítico) e "Mironga" e "História do Brasil em Quadrinhos" (sínteses dos dois vetores). O conjunto "Diábolus", porém, embora ainda devendo à linguagem urucunguiana, nos transporta para uma dimensão histórico-político mais maleável. "Estos Diábolos", uma maravilha erótico-paródica, tal como "Coco" fora uma maravilha erótico-sentimental, nos transporta para um clima de absoluta liberdade linguística, que pode parecer posterior, mas é, surpreendentemente, contemporâneo dos poemas de "Urucungo". São processos simultâneos.
Ainda haveria muito a dizer do curioso ziguezague linguístico de Raul Bopp, cuja consciência de linguagem se torna claríssima pelo exercício comparativo das diversas versões dos seus poemas, um presente crítico de Augusto Massi nesta edição da "Poesia Completa". Qualquer imagem naif do autor que ainda perdurasse aqui se dissolve à luz da leitura detalhista do processo, o que se transforma em rara lição crítica.


Sebastião Uchoa Leite é poeta, autor de "A Ficção da Vida" (34 Letras), e ensaísta, autor de "Jogos e Enganos" (34 Letras).



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