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Meu Deus é a questão

Marceneiro, "filosofinho", mecânico amador e "cientista rigoroso", Isaías Pessotti, 88, não esquece de sua formação religiosa

edson Silva/Folhapress
O professor aposentado da USP Isaías Pessotti, em seu Ford 1929, na garagem da casa dele, em ribeirão
O professor aposentado da USP Isaías Pessotti, em seu Ford 1929, na garagem da casa dele, em ribeirão

DARIO DE NEGREIROS
COLABORAÇÃO PARA A FOLHA,DE RIBEIRÃO PRETO

"Eu sou um marceneiro", diz Isaías Pessotti, professor aposentado de psicologia da USP de Ribeirão Preto.

Aos 88 anos, ele reforma a parte mecânica de dois Ford 1929 e conta ter construído a maioria dos móveis de sua casa, dentre eles a grande mesa de madeira ao redor da qual estamos sentados.

Quando menino, ele já construía toquinhos usados para dar sustentação a pernas de cadeiras, na fábrica de móveis de seu tio.

Em 1955, graduou-se em filosofia na antiga Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da rua Maria Antônia, em São Paulo. E, aos 22 anos, aceitou o convite que recebeu de uma professora para "colaborar com a cadeira de psicologia". Mas não apareceu na faculdade para assumir o cargo.

"Bonito, né, Isaías? Bonito o que você fez! Você não falou que queria continuar colaborando com a cadeira?" perguntou a professora, segundo ele. Pessotti, que acabaria sendo professor de psicologia durante toda a sua vida profissional, respondeu espantado: "Sim, professora, mas eu pensei que era só para fazer toquinho!".

Até hoje diz sentir falta da rua Maria Antônia, lugar que o faz falar sobre a decadência do ensino superior no Brasil.

"Naquela época, você saía da faculdade apto a procurar o teu caminho, tuas ideias, redigir teu texto." Hoje, afirma, ninguém quer dar aula na graduação, atividade que daria mais trabalho e menos possibilidade de progressão na carreira do que lecionar na pós-graduação.

E quais as consequências disso? "Nós temos médicos, engenheiros e psicólogos cada vez menos preparados."

'VOU SER MINISTRO'

Não é de hoje que Pessotti se interessa pelo destino do ensino público no Brasil.

Depois de assumir, de fato, a cadeira da rua Maria Antônia, Pessotti ainda seria professor de Psicologia na UnB (Universidade de Brasília). Mas na época ele já tinha ambições muito maiores.

"Eu queria mexer na educação pra valer. Eu falei: vou lá, vou articular e vou virar ministro da Educação." Mas, em 1965, um ano após o golpe militar, seus planos seriam naufragados pela ditadura. "Deu zebra", resume.

"A universidade foi destruída pelos militares. No mesmo dia, mais de 270 docentes se demitiram", conta.

Pessotti foi, então, para a Itália, onde lecionaria nas universidades de Urbino, Pádua e Milão.

Em 1967, chegava a Ribeirão Preto, "uma delícia de cidade" que, segundo ele, só piorou. "De lá pra cá, a qualidade de vida caiu. A cidade cresceu e, hoje, está poluidíssima, esburacada, praticamente abandonada", diz.

Apesar de nunca ter sido ministro da Educação e dizer que não tem nenhum tipo de militância política, o professor mostra que gosta de falar sobre o tema.

"A administração municipal cuida da avenida Nove de Julho para cima, até o Ribeirão Shopping. Ali está tudo bonitinho. Para baixo [da cidade], ou para os lados, salve-se quem puder!", afirma.

Mas não é só contra o poder municipal que Pessotti se coloca. "A quem pertence Ribeirão? Aos ribeirão-pretanos?", questiona. "Não! Às empreiteiras, que fazem o que querem com a cidade. Destroem todo o cinturão verde. É loteamento atrás de loteamento", diz.

Questionado sobre o governo federal, afirma: "Nós lutamos tanto para colocar no país uma esquerda esperando que ela fosse anticorrupção. No mínimo!".

Mas ainda que enxergue tantos problemas políticos, sociais, ambientais e acadêmicos, Pessotti não se diz pessimista. E chega a se empolgar com os mais recentes movimentos sociais, desde os surgidos em Ribeirão, até os que despontaram em outras cidades e continentes.

"Eu acho muito saudáveis esses movimentos: Panelaço [que luta contra o aumento salarial dos vereadores de Ribeirão], Ocupa Sampa [movimento que ocupou o viaduto do Chá, em São Paulo], a Primavera Árabe." A referência dele é sobre três movimentos que foram, todos eles, catalisados pelas redes sociais.

"Facebook? Estou começando a entrar agora, acho ótimo!". E explicita, concisamente, por que esse tipo de militância política o empolga: "O poder já não é mais aceito impunemente."

ÓDIO AO PODER

Pergunto a Pessotti se ele é contra todo poder instituído. Diante da questão, que já poderia ser considerada radical, o professor vai ainda mais longe.

"Se você quiser um denominador do meu pensamento, de tudo o que eu tenho feito e dito como professor, como pesquisador, como 'filosofinho', este denominador é o meu ódio ao poder."

Ódio a qualquer tipo de poder, destaca, explicando logo em seguida, com o didatismo que lhe é característico, o que entende por aquilo a que se opõe.

"Quem tem pão, tem poder sobre aquele que precisa de pão. O professor, que tem nota para dar, tem poder sobre o aluno, que precisa de nota", exemplifica. "Ou seja, o poder é sempre a exploração da necessidade alheia."

Mas Pessotti não é um anarquista. Ele diz acreditar na necessidade de um "contrato social", que garanta o direito de todos.

E, após caracterizar o filósofo alemão Karl Marx, pai do comunismo, como "brilhante, necessário, indispensável", a questão: o professor acredita na democracia? "Não vejo outra saída."

CIÊNCIA E LITERATURA

Cientista rigoroso, "materialista", Pessotti não esquece de sua formação religiosa, no seminário franciscano São Fidélis, em Piracicaba, no interior de São Paulo.

"A minha formação franciscana determina a minha filosofia de vida poderosamente. Eu estou permanentemente consciente da transitoriedade de tudo", conta, fazendo questão de citar, ao lado de São Francisco de Assis, o pensador grego Heráclito (535 a.C. - 475 a.C.), famoso por dizer que, como tudo passa, ninguém pode se banhar duas vezes nas mesmas águas, no mesmo rio.

"Tudo está passando. E as verdades vão se comendo", concorda Pessotti.

A experiência de ser um "cientista rigorosíssimo", por exemplo, foi um rio que passou em sua vida. E que já não lhe encanta mais.

"A ciência é importantíssima. Mas gráficos e tabelas já não me dizem mais nada", afirma. Talvez por isso tenha buscado a literatura, com o livro "Aqueles Cães Malditos de Arquelau" (Editora 34, 312 págs., R$ 49), que diz ter escrito por desaforo.

"Eu estava isolado, contra o mundo, me achando um gênio incompreendido. Então eu me fechei em casa, com muita cerveja, e falei: agora esse pessoal vai ver quais são os meus interlocutores. Pura neurose!", diz.

Ocorre que tal neurose lhe renderia "um sucesso danado", como diz, além do prêmio Jabuti de 1994, considerado um dos mais importantes da literatura brasileira.

MEU DEUS É A QUESTÃO

Da filosofia à psicologia, da ciência à literatura, depois de 60 anos na academia, o que restou das crenças religiosas de Pessotti?

"Professor, o senhor acredita em Deus?"

"Um Deus que toma conta do mundo, que toma notas, que vai julgar, que pune, castiga? Não acredito em nada disso, óbvio. Isso aí é invenção humana."

Mas há um outro Deus, não menos criado pelo homem, no qual Pessotti acredita e que define como sendo "uma invenção necessária".

"É muito difícil admitir que toda essa harmonia do universo não tem uma origem. Uma origem, tem. Pode ser o Big Bang [explosão que teria gerado o universo], se quisermos." Mas, fiel à sua crença, continua questionando.

"E antes dele? E antes? Esse ponto de interrogação, que foge sempre, é Deus".

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