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HISTÓRIA
"Estou com câncer, e daí?"
Produtora de cinema conta em textos bem-humorados como convive com o tratamento contra o câncer de mama
DENISE MENCHEN
DA SUCURSAL DO RIO
"Digamos que sejam a Santa
Maria, a Pinta e a Nina", diz
Clélia Bessa, 45, em sua sala na
produtora de cinema Raccord,
no Jardim Botânico, zona sul
do Rio. A imagem das três naus
que trouxeram Colombo à
América em 1492 é evocada em
resposta à pergunta sobre o número de tumores que, em maio,
uniram essa curitibana criada
no Amazonas e radicada no Rio
de Janeiro à legião de mulheres
com câncer de mama no país
-apenas em 2008, serão
49.400 novos casos, segundo
estimativas do Inca (Instituto
Nacional do Câncer).
Ela ri da associação e logo
emenda: "Agora é que me ocorreu isto! Isso dá tema para o
blog". O blog em questão é o
"Estou com Câncer, e Daí?"
(http://estoucomcanceredai.blogspot.com), criado em
meados de outubro. Com atualização quase diária, a página
traz textos leves e bem-humorados sobre o convívio com a
doença -diagnosticada em
uma visita de rotina ao ginecologista- e o tratamento.
"Foi minha maneira de encaixar o golpe", explica Bessa,
que não gostava da mitificação
em torno do assunto. "O câncer
ainda não saiu do armário", diz.
A inspiração para o diário virtual veio com a descoberta do
livro "Câncer, e Agora?", da
americana Kris Carr, na seção
de auto-ajuda de uma livraria.
Envolveu-se tanto com a história da jovem que luta contra um
tipo raro de câncer no fígado
que até perdeu o horário do cinema. "Uns quatro dias depois,
comecei a escrever enlouquecidamente", lembra.
Foi aí que brotou, entre outros, o texto em que ela relata
como contou à filha de 12 anos
que estava doente.
"Ela já estava odiando meu
ex, achando que eu estava assim, meio triste, por causa dele... Era bom conversar logo antes que ela começasse a odiar os
homens naquele momento e
nunca mais resolvesse a questão. Terapia por anos", diz no
início do texto, que segue com o
relato do jantar em que foi feita
a revelação, em uma conversa
em que até Flora, "bicho ruim"
da novela "A Favorita", foi citada para mostrar que muitas
pessoas sobrevivem à doença
(Patrícia Pillar, que interpreta a
personagem, teve câncer de
mama em 2001).
"Assim fomos conversando e
eu contando que ia usar peruca,
uma de cada cor, e blá, blá, blá,
blá. Demos risadas e tirei um
peso das costas. Por uma semana, eu podia pedir qualquer coisa que ela fazia. O tempo foi
passando, ela acostumando e
agora é: pô mãe, só pq vc está
com câncer?! Eu heim, dá um
tempo! E bate a porta me deixando falando sozinha. A vida
segue, inclusive minha filha está passando para a adolescência
e eu não posso esquecer disso",
completa Clélia, que escreve de
forma coloquial e com abreviações típicas do mundo virtual.
Em outro momento, a produtora de filmes como "Mais Uma
Vez Amor" (2005) e "Como Ser
Solteiro" (1998) relata que, com
um curativo no seio, envolveu-se com um desconhecido em
uma viagem à Bahia.
"Naquela situação, só me restava contar, aquilo ia longe.
Olha, estou com curativo, fiz
uma biópsia, estou assim, assado, vou começar o tratamento,
e pronto, disse, estou com câncer de mama. Ele, ham, ham? E
o que é que tem? Qual é o problema de estarmos aqui? Vamos continuar o papo no café
da manhã, mas em vez de bater
na porta do teu quarto eu te cutuco, que tal?", relata.
Era a primeira vez que ela se
envolvia com alguém desde o
diagnóstico e, na sua avaliação,
o resultado não poderia ter sido
melhor. "O R [como ela o chama no blog] me lembrou que eu
continuava sendo a mesma,
que tudo era passageiro, que eu
continuava uma mulher sexy e
interessante, que esta situação
era transitória e que eu não poderia me esconder atrás dela",
escreveu.
Roteiro
O estilo franco conquistou os
amigos e, aos poucos, atrai também desconhecidos. "Já me escreveram da Austrália, do Peru
e da Alemanha", conta Bessa.
Sua sócia na produtora até já
cogita transformar os relatos
em roteiro de cinema. "Aqui tudo sempre vira roteiro", brinca
Bessa, para logo desconversar:
"Mas tem tanta história para
contar, não sei se a gente vai
contar essa".
No blog, porém, os relatos
devem continuar. "Quero escrever até colocar a prótese",
diz. Isso deve ocorrer apenas
em julho do ano que vem.
Atualmente, ela ainda está na
fase da quimioterapia -a primeira das nove sessões foi em
julho, e a última está prevista
para o fim do mês.
Após o término dessa etapa,
Clélia passará por uma cirurgia
para a retirada da mama esquerda, onde estão os tumores
(dois carcinomas lobulares infiltrantes e um ductual e lobular infiltrante), e possivelmente
também da direita, como medida preventiva. Depois, ainda terá que enfrentar a radioterapia
antes de realizar a implantação
das próteses de silicone. "Até
julho os meus seios serão a coisa mais importante da minha
vida", brinca.
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