São Paulo, domingo, 09 de novembro de 2008

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HISTÓRIA

"Estou com câncer, e daí?"

Produtora de cinema conta em textos bem-humorados como convive com o tratamento contra o câncer de mama

DENISE MENCHEN
DA SUCURSAL DO RIO

"Digamos que sejam a Santa Maria, a Pinta e a Nina", diz Clélia Bessa, 45, em sua sala na produtora de cinema Raccord, no Jardim Botânico, zona sul do Rio. A imagem das três naus que trouxeram Colombo à América em 1492 é evocada em resposta à pergunta sobre o número de tumores que, em maio, uniram essa curitibana criada no Amazonas e radicada no Rio de Janeiro à legião de mulheres com câncer de mama no país -apenas em 2008, serão 49.400 novos casos, segundo estimativas do Inca (Instituto Nacional do Câncer).
Ela ri da associação e logo emenda: "Agora é que me ocorreu isto! Isso dá tema para o blog". O blog em questão é o "Estou com Câncer, e Daí?" (http://estoucomcanceredai.blogspot.com), criado em meados de outubro. Com atualização quase diária, a página traz textos leves e bem-humorados sobre o convívio com a doença -diagnosticada em uma visita de rotina ao ginecologista- e o tratamento.
"Foi minha maneira de encaixar o golpe", explica Bessa, que não gostava da mitificação em torno do assunto. "O câncer ainda não saiu do armário", diz.
A inspiração para o diário virtual veio com a descoberta do livro "Câncer, e Agora?", da americana Kris Carr, na seção de auto-ajuda de uma livraria. Envolveu-se tanto com a história da jovem que luta contra um tipo raro de câncer no fígado que até perdeu o horário do cinema. "Uns quatro dias depois, comecei a escrever enlouquecidamente", lembra.
Foi aí que brotou, entre outros, o texto em que ela relata como contou à filha de 12 anos que estava doente.
"Ela já estava odiando meu ex, achando que eu estava assim, meio triste, por causa dele... Era bom conversar logo antes que ela começasse a odiar os homens naquele momento e nunca mais resolvesse a questão. Terapia por anos", diz no início do texto, que segue com o relato do jantar em que foi feita a revelação, em uma conversa em que até Flora, "bicho ruim" da novela "A Favorita", foi citada para mostrar que muitas pessoas sobrevivem à doença (Patrícia Pillar, que interpreta a personagem, teve câncer de mama em 2001).
"Assim fomos conversando e eu contando que ia usar peruca, uma de cada cor, e blá, blá, blá, blá. Demos risadas e tirei um peso das costas. Por uma semana, eu podia pedir qualquer coisa que ela fazia. O tempo foi passando, ela acostumando e agora é: pô mãe, só pq vc está com câncer?! Eu heim, dá um tempo! E bate a porta me deixando falando sozinha. A vida segue, inclusive minha filha está passando para a adolescência e eu não posso esquecer disso", completa Clélia, que escreve de forma coloquial e com abreviações típicas do mundo virtual.
Em outro momento, a produtora de filmes como "Mais Uma Vez Amor" (2005) e "Como Ser Solteiro" (1998) relata que, com um curativo no seio, envolveu-se com um desconhecido em uma viagem à Bahia.
"Naquela situação, só me restava contar, aquilo ia longe. Olha, estou com curativo, fiz uma biópsia, estou assim, assado, vou começar o tratamento, e pronto, disse, estou com câncer de mama. Ele, ham, ham? E o que é que tem? Qual é o problema de estarmos aqui? Vamos continuar o papo no café da manhã, mas em vez de bater na porta do teu quarto eu te cutuco, que tal?", relata.
Era a primeira vez que ela se envolvia com alguém desde o diagnóstico e, na sua avaliação, o resultado não poderia ter sido melhor. "O R [como ela o chama no blog] me lembrou que eu continuava sendo a mesma, que tudo era passageiro, que eu continuava uma mulher sexy e interessante, que esta situação era transitória e que eu não poderia me esconder atrás dela", escreveu.

Roteiro
O estilo franco conquistou os amigos e, aos poucos, atrai também desconhecidos. "Já me escreveram da Austrália, do Peru e da Alemanha", conta Bessa. Sua sócia na produtora até já cogita transformar os relatos em roteiro de cinema. "Aqui tudo sempre vira roteiro", brinca Bessa, para logo desconversar: "Mas tem tanta história para contar, não sei se a gente vai contar essa".
No blog, porém, os relatos devem continuar. "Quero escrever até colocar a prótese", diz. Isso deve ocorrer apenas em julho do ano que vem. Atualmente, ela ainda está na fase da quimioterapia -a primeira das nove sessões foi em julho, e a última está prevista para o fim do mês.
Após o término dessa etapa, Clélia passará por uma cirurgia para a retirada da mama esquerda, onde estão os tumores (dois carcinomas lobulares infiltrantes e um ductual e lobular infiltrante), e possivelmente também da direita, como medida preventiva. Depois, ainda terá que enfrentar a radioterapia antes de realizar a implantação das próteses de silicone. "Até julho os meus seios serão a coisa mais importante da minha vida", brinca.


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