São Paulo, domingo, 15 de março de 2009

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HISTÓRIA

Ele vive com dois corações há 16 anos


Laerte Rodela, 57, tinha insuficiência cardíaca e passou por uma cirurgia rara

Caio Guatelli/Folha Imagem
Laerte Rodela, um dos poucos sobreviventes do transplante

CLÁUDIA COLLUCCI
DA REPORTAGEM LOCAL

Naquele outubro de 1992, o bancário aposentado Laerte Rodela, de Garça (SP), resolveu se despedir da vida em grande estilo. Foi para a Oktoberfest, em Blumenau (SC), e bebeu todo o chope que viu pela frente.
"Achava que tinha chegado ao fim da linha. Estava com uma grave insuficiência cardíaca, na fila para um transplante de coração, e tinha muito medo de morrer. Pedia a Deus a chance de viver pelo menos mais dez anos para ver meus filhos crescerem", diz o pai de Laerte Jr., 31, Gustavo, 27, e Ellen, 30.
Na época, o que esse corintiano roxo não poderia imaginar é que, 16 anos depois, estaria não só vivo mas também com dois corações pulsando no peito.
Rodela é um dos poucos sobreviventes de uma cirurgia rara chamada de transplante heterotópico, na qual é implantado um segundo coração no lado direito do paciente. No último dia 4, um homem de 53 anos passou por uma cirurgia semelhante no InCor (Instituto do Coração), mas morreu uma semana depois de falência múltipla dos órgãos.
Segundo o cardiologista do hospital Beneficência Portuguesa, José Pedro da Silva, responsável pelo transplante heterotópico de Rodela, essa cirurgia é indicada para pacientes com doença cardíaca e pressão pulmonar muito alta. Nesse caso, sozinho, o coração doado não suporta a pressão da artéria pulmonar, e as chances de o paciente morrer são altas.
O início do drama de Rodela tem data e hora marcada: 25 de novembro de 1987, às 20h30. Aos 35 anos, estressado, acima do peso, sedentário e com um forte histórico familiar de doenças cardíacas, ele sofreu um infarto durante uma partida de futebol. Foi trazido às pressas para São Paulo, onde se submeteu a um cateterismo. Quatro anos depois, ganhou uma ponte de safena.
Por conta de complicações da cirurgia, o bancário desenvolveu insuficiência cardíaca e hipertensão pulmonar. "Comecei a emagrecer, me cansava fácil e fiquei muito pálido. Foi quando soube que não havia outra saída para mim senão o transplante."
Morando a 423 km de São Paulo, Rodela foi aconselhado a ficar na capital enquanto aguardava um novo coração.
"Mudei com minha mulher [Marcia] para a casa de um parente e meus filhos ficaram com minha sogra em Garça. Foi uma fase muito difícil. Sentia muita saudade deles, ficava angustiado com a espera e não parava de pensar: será que esse órgão vai chegar a tempo?"
Chegou. Em 5 de abril de 1993, já sob o efeito da anestesia, ele lembra ter visto chegar na sala de cirurgia a bolsa que guardava o novo coração que lhe salvaria a vida.
O órgão veio de um jovem de 28 anos, que morreu em São Paulo. "Todo dia 5 de abril, comemoro a nova vida que ganhei e agradeço à família do doador pelo gesto da doação."
Outra emoção que ele não esquece foi o dia em que retiraram da sua boca o tubo do respirador artificial. "Pensei: tô vivo! Agora ninguém me segura." Susto mesmo ele teve nos dias seguintes ao transplante, quando descobriu que seu peito abrigava dois corações.
Alheio aos detalhes técnicos do transplante, ele só pensava em como seria a vida com dois corações. "Tinha sonhos estranhos, como se eu fosse duas pessoas. Uma hora era eu com meu coração, outra hora era o outro eu com o coração doado."
Rodela superou o conflito com a ajuda de uma psicóloga e de um sonho revelador. "Sonhei que meus dois corações saíam de mim e se uniam em um só, com a bênção de Nossa Senhora. Depois disso, me senti completo", diz ele, católico que vai à missa todos os domingos.
Tão completo que, após o transplante, já aposentado pelo Banco do Brasil, resolveu fazer todos os exercícios que nunca havia feito na vida: andava de bicicleta, nadava, jogava tênis. E, de quebra, elegeu-se vereador pelo PT. "Queria provar que era capaz. Petista, católico e corintiano. Realmente eu precisava de dois corações."
Hoje, aos 57 anos, Rodela está mais moderado. Faz caminhadas diárias, frequenta academia e o clube da cidade, mas também aproveita o tempo livre para levar e buscar o neto Pedro, 11, no colégio e jogar tranca com os amigos.
Reclama um pouco dos efeitos colaterais do remédio que toma para evitar a rejeição do órgão. "Desenvolvi neuropatia periférica [disfunção que provoca perda da sensibilidade]. Em compensação, nasceu mais cabelo", brinca.
Planos para o futuro? "Quero viver bem e com qualidade. Quando fiz o transplante, esperava viver dez anos [a média de sobrevida do transplantado cardíaco]. Já vivi 16. Agora, o que vier é lucro."


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