São Paulo, domingo, 28 de fevereiro de 2010

Próximo Texto | Índice

HISTÓRIA

Viver entre dois polos

A diretora de teatro Ticiana Studart tem transtorno bipolar e escreveu um livro sobre sua trajetória

Luciana Whitaker/Folha Imagem
Ticiana Studart, 48, que passou 11 meses sem sair da cama antes de partir para um tratamento na Argentina que mudou sua vida

FLÁVIA MANTOVANI
EDITORA-ASSISTENTE DO EQUILÍBRIO

"Abençoado seja este dia 18 de junho de 2007." Assim a atriz e diretora teatral Ticiana Studart, 48, começa a história de Paula, personagem que criou para contar, em livro, sua própria trajetória de luta contra o transtorno bipolar.
Foi nessa data que Ticiana, após 11 meses sem sair da cama, partiu rumo a Buenos Aires para se submeter ao tratamento que mudou sua vida. Até então, ela estava imersa em uma depressão profunda e ficava o dia todo deitada, de olhos fechados, tendo delírios. "Não tinha vontade de me levantar. Quando tomava banho, meu corpo coçava, eu tinha que jogar álcool e botar ataduras. Tinha dores nas costas de tanto ficar deitada. Estava ficando realmente louca", afirma ela.
Na época em que começou a ter o problema, dirigia a peça "Tudo sobre Mulheres", com Beth Goulart, Marina Lima e Clarice Niskier. "Fiz a peça aos trancos e barrancos. Sou superprofissional, mas faltava, ficava agitada. Não sei como estreei. Estava no fim da linha, caí e não levantei mais."
Aquela foi a pior crise que a diretora já tivera, mas os sinais da doença apareceram bem mais cedo. Aos oito anos, ela já ia ao psicólogo -o que não era comum na década de 1960. "Eu era uma criança problemática, ansiosa e muito agressiva. Virei uma pessoa difícil de lidar. Competia muito, arrumava confusão por nada." Muito cedo, passou a usar drogas ilícitas, como cocaína. "Elas me davam alívio da bipolaridade. Eu usava a droga para melhorar da depressão, mas depois voltava a ficar deprimida."
Como ocorre nos casos de bipolaridade, Ticiana alternava momentos de depressão com os de mania. Nos períodos de euforia, sofria de grande irritabilidade. Tinha pensamentos obsessivos. "Se eu perdia uma caneta, parava tudo e ficava procurando por ela, e só queria aquela", exemplifica.
Tinha, também, compulsão por compras. "Meu pai havia me deixado uma herança e eu fiquei extasiada. Saí comprando o mundo", lembra.
Em uma fase, trancava-se no quarto para comprar joias em leilões que passavam pela TV. "Tinha um grande prazer em ficar dando os lances. No dia seguinte, sentia uma grande depressão. Eu não queria comprar, mas comprava. É o que os médicos chamam de impulso e contraimpulso. O impulso sempre ganha", afirma ela, que perdeu grande parte do patrimônio nessas compulsões.
Fatores externos, como momentos bons ou difíceis pelos quais passava, contribuíam para que entrasse nas fases de mania ou de depressão -mas, muitas vezes, não era necessário que nada acontecesse para que ela ficasse alterada.

Internação
Ticiana foi a um sem-número de psiquiatras e recebeu diversos diagnósticos: transtorno de personalidade borderline, distimia, sequelas da dependência química. "Eles me enchiam de antidepressivos, coisa que o bipolar não costuma aceitar. Quando tomava esses remédios, meu pensamento ficava enormemente agitado. Sentia dor e pressão na cabeça, medo, tinha crises de pânico", diz.
Chegou a tomar choques elétricos -que a deixaram com um problema de memória que ela só foi resolver recentemente, com o acompanhamento de uma neurologista. Atingiu os 94 kg -hoje, pesa 69 kg- e perdeu muitos amigos e parceiros de trabalho.
Quem a tirou do fundo do poço foi o psiquiatra Eduardo Kalina, o mesmo que tratou o ex-jogador de futebol Maradona. Ticiana ficou um mês internada em sua clínica, na Argentina. "Ele cuida do paciente como um todo. A primeira medicação funcionou imediatamente. Em 72 horas estava muito melhor."
Seus colegas de clínica tinham problemas como depressão, dependência de drogas e bulimia. Vários tinham tentado suicídio. "Eles eram argentinos e foi aquela loucura para tentar entender a língua. No início eu não tinha disposição para falar, mas, aos poucos, fui me soltando. Vi que estava na minha turma, no lugar certo."
Um ano depois da internação, Ticiana teve uma recaída e voltou à Argentina com crises de pânico. Hoje, trata-se com um psiquiatra do Rio de Janeiro, onde mora, e viaja a Buenos Aires a cada quatro meses.
Kalina disse à diretora que não tomasse nada que alterasse seu humor -o que inclui refrigerantes de cola, café e chá mate. Ela não levou a orientação a sério e foi parar em uma clínica por excesso de cafeína. "Não acreditei nele. Tomava dez copos de Coca-Cola por dia, além de muito café. Fiquei transtornada. Hoje só bebo água e café descafeinado", afirma.
Mas o mais difícil para Ticiana é seguir a orientação de evitar fazer várias atividades ao mesmo tempo. "Eu sou dinâmica. Tenho tendência a tocar vários projetos de uma vez: ensaiar peça, dar aula, cuidar da casa. Não estou mais fazendo isso", conta.

Banalização
Atualmente, ela se dedica a lançar seu livro -"Fora do Normal" (ed. Record, 224 págs., R$ 34,90)- e busca patrocínio para uma nova peça.
Diz que vê uma banalização da bipolaridade. "Virou brincadeira, todo mundo vira bipolar a qualquer alteração de humor. Isso é totalmente diferente de ter o transtorno. Só quem sofre sabe o barulho que é."
Por outro lado, acredita que muita gente tenha o problema sem saber. Foi o que aconteceu, por exemplo, com seu pai, que, segundo Ticiana. tinha sintomas fortes de bipolaridade, mas nunca foi diagnosticado.
Ela afirma, ainda, que enfrenta a melhor fase de sua vida. Das 21 cápsulas que tomava diariamente no início, sobraram 12. "Sou uma pessoa normal, contida, limpa."
Mas Ticiana sabe que não há milagres. "Queria ser mais caótica. Sou muito perfeccionista, saio perfilando livros, separando tudo por cor. Sei que o problema não tem cura, mas me considero bastante estável. Hoje estou apta para viver."


Próximo Texto: Frases
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.