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HISTÓRIA
Viver entre dois polos
A diretora de teatro Ticiana Studart tem transtorno bipolar e escreveu um livro sobre sua trajetória
Luciana Whitaker/Folha Imagem
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Ticiana Studart, 48, que passou 11 meses sem sair da cama antes de partir para um tratamento na Argentina que mudou sua vida
FLÁVIA MANTOVANI
EDITORA-ASSISTENTE DO EQUILÍBRIO
"Abençoado seja este dia 18
de junho de 2007." Assim a
atriz e diretora teatral Ticiana
Studart, 48, começa a história
de Paula, personagem que
criou para contar, em livro, sua
própria trajetória de luta contra o transtorno bipolar.
Foi nessa data que Ticiana,
após 11 meses sem sair da cama,
partiu rumo a Buenos Aires para se submeter ao tratamento
que mudou sua vida. Até então,
ela estava imersa em uma depressão profunda e ficava o dia
todo deitada, de olhos fechados, tendo delírios. "Não tinha
vontade de me levantar. Quando tomava banho, meu corpo
coçava, eu tinha que jogar álcool e botar ataduras. Tinha dores nas costas de tanto ficar deitada. Estava ficando realmente
louca", afirma ela.
Na época em que começou a
ter o problema, dirigia a peça
"Tudo sobre Mulheres", com
Beth Goulart, Marina Lima e
Clarice Niskier. "Fiz a peça aos
trancos e barrancos. Sou superprofissional, mas faltava, ficava
agitada. Não sei como estreei.
Estava no fim da linha, caí e não
levantei mais."
Aquela foi a pior crise que a
diretora já tivera, mas os sinais
da doença apareceram bem
mais cedo. Aos oito anos, ela já
ia ao psicólogo -o que não era
comum na década de 1960. "Eu
era uma criança problemática,
ansiosa e muito agressiva. Virei
uma pessoa difícil de lidar.
Competia muito, arrumava
confusão por nada." Muito cedo, passou a usar drogas ilícitas,
como cocaína. "Elas me davam
alívio da bipolaridade. Eu usava
a droga para melhorar da depressão, mas depois voltava a
ficar deprimida."
Como ocorre nos casos de bipolaridade, Ticiana alternava
momentos de depressão com
os de mania. Nos períodos de
euforia, sofria de grande irritabilidade. Tinha pensamentos
obsessivos. "Se eu perdia uma
caneta, parava tudo e ficava
procurando por ela, e só queria
aquela", exemplifica.
Tinha, também, compulsão
por compras. "Meu pai havia
me deixado uma herança e eu
fiquei extasiada. Saí comprando o mundo", lembra.
Em uma fase, trancava-se no
quarto para comprar joias em
leilões que passavam pela TV.
"Tinha um grande prazer em ficar dando os lances. No dia seguinte, sentia uma grande depressão. Eu não queria comprar, mas comprava. É o que os
médicos chamam de impulso e
contraimpulso. O impulso
sempre ganha", afirma ela, que
perdeu grande parte do patrimônio nessas compulsões.
Fatores externos, como momentos bons ou difíceis pelos
quais passava, contribuíam para que entrasse nas fases de
mania ou de depressão -mas,
muitas vezes, não era necessário que nada acontecesse para
que ela ficasse alterada.
Internação
Ticiana foi a um sem-número de psiquiatras e recebeu diversos diagnósticos: transtorno
de personalidade borderline,
distimia, sequelas da dependência química. "Eles me enchiam de antidepressivos, coisa
que o bipolar não costuma aceitar. Quando tomava esses remédios, meu pensamento ficava enormemente agitado. Sentia dor e pressão na cabeça, medo, tinha crises de pânico", diz.
Chegou a tomar choques elétricos -que a deixaram com
um problema de memória que
ela só foi resolver recentemente, com o acompanhamento de
uma neurologista. Atingiu os
94 kg -hoje, pesa 69 kg- e perdeu muitos amigos e parceiros
de trabalho.
Quem a tirou do fundo do poço foi o psiquiatra Eduardo Kalina, o mesmo que tratou o ex-jogador de futebol Maradona.
Ticiana ficou um mês internada em sua clínica, na Argentina.
"Ele cuida do paciente como
um todo. A primeira medicação
funcionou imediatamente. Em
72 horas estava muito melhor."
Seus colegas de clínica tinham problemas como depressão, dependência de drogas e
bulimia. Vários tinham tentado
suicídio. "Eles eram argentinos
e foi aquela loucura para tentar
entender a língua. No início eu
não tinha disposição para falar,
mas, aos poucos, fui me soltando. Vi que estava na minha turma, no lugar certo."
Um ano depois da internação, Ticiana teve uma recaída e
voltou à Argentina com crises
de pânico. Hoje, trata-se com
um psiquiatra do Rio de Janeiro, onde mora, e viaja a Buenos
Aires a cada quatro meses.
Kalina disse à diretora que
não tomasse nada que alterasse
seu humor -o que inclui refrigerantes de cola, café e chá mate. Ela não levou a orientação a
sério e foi parar em uma clínica
por excesso de cafeína. "Não
acreditei nele. Tomava dez copos de Coca-Cola por dia, além
de muito café. Fiquei transtornada. Hoje só bebo água e café
descafeinado", afirma.
Mas o mais difícil para Ticiana é seguir a orientação de evitar fazer várias atividades ao
mesmo tempo. "Eu sou dinâmica. Tenho tendência a tocar
vários projetos de uma vez: ensaiar peça, dar aula, cuidar da
casa. Não estou mais fazendo
isso", conta.
Banalização
Atualmente, ela se dedica a
lançar seu livro -"Fora do Normal" (ed. Record, 224 págs., R$
34,90)- e busca patrocínio para uma nova peça.
Diz que vê uma banalização
da bipolaridade. "Virou brincadeira, todo mundo vira bipolar
a qualquer alteração de humor.
Isso é totalmente diferente de
ter o transtorno. Só quem sofre
sabe o barulho que é."
Por outro lado, acredita que
muita gente tenha o problema
sem saber. Foi o que aconteceu,
por exemplo, com seu pai, que,
segundo Ticiana. tinha sintomas fortes de bipolaridade, mas
nunca foi diagnosticado.
Ela afirma, ainda, que enfrenta a melhor fase de sua vida. Das 21 cápsulas que tomava
diariamente no início, sobraram 12. "Sou uma pessoa normal, contida, limpa."
Mas Ticiana sabe que não há
milagres. "Queria ser mais caótica. Sou muito perfeccionista,
saio perfilando livros, separando tudo por cor. Sei que o problema não tem cura, mas me
considero bastante estável. Hoje estou apta para viver."
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