São Paulo, domingo, 03 de agosto de 2008

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REPORTAGEM

Surfistas de dia útil

por ROBERTA SALOMONE

SERAFINA ACOMPANHA PAULISTANOS QUE descem para o litoral no meio da semana SÓ PARA SURFAR 45 minutos antes da jornada de trabalho na capital

São 4h30 de uma quarta-feira. Amigos conversam num posto de gasolina na avenida Cidade Jardim, em São Paulo. Quem passa pode até pensar que estão vindo de alguma festa, mas a cara de sono entrega: eles acabaram de acordar. E juntos vão encarar a estrada até o Guarujá para surfar por menos de uma hora. Na volta, enfrentarão trânsito para chegar ao trabalho no horário.

Parece um devaneio adolescente, mas trata-se de apenas mais um "BV", ou bate-volta, evento que transforma profissionais paulistanos bem-sucedidos em amadores do surfe nas madrugadas frias do litoral sul do Estado. No fim de maio, a reportagem da Serafina acompanhou a aventura de um grupo desses, formado basicamente por publicitários.

Os sete, com idade entre 24 e 38 anos, trabalham duro, em média 12 horas por dia e muitas vezes nos fins de semana. A rotina puxada, no entanto, não impediu que eles trocassem diversos e-mails entusiasmados antes do encontro. Pela internet, acompanharam as mudanças do tempo e cada informação disponível sobre as condições para o surfe no Guarujá. A previsão era que, naquela manhã específica, as ondas na região alcançariam 1,4 metro e a temperatura da água estaria entre 19 e 21oC.

"Isso deixa a gente cheio de expectativa, mas já aconteceu de chegar e o mar estar flat [sem ondas]", diz o pernambucano Miguel Bemfica, 38. Iniciante no surfe, ele trabalha numa das maiores agências do país e já ganhou seis Leões em Cannes, o mais importante prêmio da publicidade no mundo.

Não ter onda é, sem dúvida, um grande risco para quem resolve embarcar numa viagem dessas. Mas nenhum dos sete demonstra preocupação com essa possibilidade. "Se a gente pensar assim, nem levanta da cama", diz o diretor de arte Renato Butori, 28, que nunca dorme direito na noite anterior ao "BV" com medo de perder a hora. Nesse dia, ele tinha acordado às 3h40.

Enquanto decidem quem vai em cada carro, Caio Mattoso esfrega as mãos. Faz frio, mas ele resolveu sair de casa calçando sandálias e já vestindo a roupa de neoprene com que vai cair no mar. "Pra quem mora numa cidade sem praia, os 'BVs' são uma carta de alforria", diz o paulista de 24 anos.

FORMAÇÃO RUIM

Divididos em três carros, os amigos iniciam o percurso de 87 quilômetros. A estrada está vazia, mas há trechos com bastante neblina. O sono é vencido com músicas de Ben Harper, Lemon Jelly e Sublime. As conversas são sobre trabalho.

Numa pequena mala, Marcus Meireles, 36, carrega frutas, barrinhas de cereal e bebida energética para a turma. Baiano criado no Rio de Janeiro, Marcus mora em São Paulo há nove anos e ganhou prêmios em diversos festivais internacionais. "Para mim, o 'BV' não funciona apenas para sair da rotina. Busco qualidade de vida", explica Marcus, que também faz pilates e musculação.

São 6h quando, finalmente, chegamos ao Guarujá. O céu está escuro e a primeira parada é a praia do Tombo. Todos andam até a areia e olham, em silêncio, para o mar. "A formação das ondas está ruim", comenta o jornalista da turma, Felipe Baracchini, 24, sete anos de surfe e três de "BV". Resolvem ir até Pitangueiras. Conferem as ondas e partem para a terceira opção: a praia das Astúrias, onde decidem ficar.

É nesse momento que tudo toma velocidade. Porque, pior que um mar flat, o maior inimigo de um bate-volta é o tempo. Na calçada, tiram a roupa e passam parafina nas pranchas. Quem tem bolso na bermuda guarda a chave do carro. Quem não tem arruma um esconderijo.

Na areia, Robério Braga, 37, faz um rápido alongamento. Essa é a segunda vez que ele, dono de uma produtora e diretor de filmes de grandes marcas de cerveja e refrigerante, participa de um "BV". "Minha semana vai ter outra cara agora", diz. Perto dali, Tomás Correa, 31, redator de uma multinacional presente em 84 países, corre de um lado para o outro. Pouco antes do sol nascer, todos estão no mar. São 6h30.

BANHO DE GATO

Os sete parecem se divertir no pico que escolheram. Mas os olhos não saem do relógio. Eles têm apenas 45 minutos para surfar. Em cima de cada onda serão apenas míseros segundos.

Marcus é o primeiro a sair da água, às 7h25. Logo em seguida aparecem Robério e Miguel. Do porta-malas do carro, eles tiram garrafas de água mineral e jogam na cabeça. Tentam tirar o sal do cabelo e a areia do corpo. "É a única maneira de tomar banho", garante Marcus, trocando a roupa no meio da rua.

Pegar a estrada de volta para São Paulo é a parte mais desgastante da "trip". O trânsito é inevitável e as blitze são comuns. Apesar da pressa, o assunto dentro do carro é só surfe.

"Acordar antes das 4h para ficar menos de uma hora no mar e voltar para trabalhar não é para qualquer um. A maioria desiste logo depois de fazer o primeiro "BV". Não tem como a gente não se sentir até um pouco herói", confessa Tomás.

Na entrada da cidade, os engarrafamentos são o grande pavor. Já são quase 9h quando a avenida Bandeirantes começa a estressar os surfistas. Mas o trânsito não dura muito e, antes das 9h30, todos estão de volta ao posto de gasolina, onde se encontraram cinco horas antes.

Sorrindo, os amigos se despedem e cada um segue para seu trabalho. "A sensação de felicidade que o 'BV' nos traz faz o dia render como nenhum outro", finaliza Renato. "Hoje vi duas tartarugas no mar. Você acha que alguém no meu trabalho vai acreditar nisso?"


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