São Paulo, domingo, 23 de maio de 2010

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GASTRONOMIA

O melhor cozinheiro do mundo

por JOSIMAR MELO, EM COPENHAGUE

como o dinamarquês René Redzepi levou seu restaurante, o Noma, ao posto de número um do planeta usando somente produtos locais e atraindo as atenções para a cozinha nórdica

Você chega ao restaurante (e não sabe ainda, mas pode intuir) que dali a dois dias será aclamado o melhor dos 50 melhores do mundo. Já na entrada, avista a equipe trabalhando na cozinha –e começa a sonhar com as delícias que lhe serão apresentadas a seguir. Então senta à sua mesa, banhada (às 19h do início da primavera no Hemisfério Norte) pela luz oblíqua do sol do Norte, que resolveu dar as caras neste começo de noite de Copenhague. E então recebe sua primeira iguaria da noite: um copo d’água.

Um copo d’água?

Sim. Ao menos é o que parece. Até que lhe expliquem –e você constate levando aos lábios o líquido de tênue sabor vegetal e uma longínqua doçura– que na realidade se trata da seiva de bétula (uma árvore aparentada ao carvalho), recolhida num bosque da região, e que só é obtida, e servida, durante 20 dias por ano, no raiar da primavera.

A segunda iguaria não surpreende menos. Ainda como parte dos drinques de boas-vindas, você recebe um copo de cerveja –mas uma cerveja feita, somente nesta época do ano, com aquela mesma "água" que você acabou de tomar. E, para completar os sabores do bosque que despertaram seu paladar, você ganha ainda um galhinho com três pequenos brotos, que vai retirar com os dentes para comer. São brotos de faia, que vieram do mesmo bosque. Pronto, você chegou à Dinamarca. O show pode começar.

Esse início de jantar no Noma, recém-eleito o número um pelo prêmio S.Pellegrino 50 Melhores Restaurantes do Mundo, diz muito da arte e da mente do chef e sócio René Redzepi. Ele é um defensor dos ingredientes de sua terra. Mas está longe de ser mero divulgador dos pratos regionais e tradicionais. Ali no Noma não se come smorgasbord (mesa de frios típica da Escandinávia), arenque marinado no pão ou ensopado de rena. Sua cozinha é moderna, tem técnicas apuradas, e surpreende desde o momento em que nos sentamos à sua mesa (depois da água e da cerveja, recebemos o que pareciam ser pedaços de tecido sedoso que acariciavam os dedos antes de inundar a boca com uma refrescante acidez e o perfume das pétalas de rosa em conserva que o recobriam –não era um tecido, claro, mas uma massa preparada com uma frutinha de beira-mar. Daquele mar).

Não é a velha cozinha típica local, mas é uma cozinha que ele define com muita simplicidade: uma cozinha nórdica. "Aqui na Europa, quem queria alta gastronomia olhava para França, Itália, Espanha. Todos os chefs só viam os produtos do sul da Europa, como se não tivéssemos produtos com valor gastronômico", conta o chef, em seu escritório flutuante entre os barquinhos do píer em frente ao restaurante. "Era uma pena. Nós temos ingredientes. Aqui, em dez minutos de carro estamos em uma fazenda. Temos água por toda a volta. Temos uma relação íntima com a natureza", prossegue.

FREUD EXPLICA

Se a natureza não explica a busca de René pelos produtos locais, Freud poderia ajudar. Filho de mãe dinamarquesa, René tem pai albanês, que viveu na Macedônia onde era fazendeiro –e o chef não deixou de mencionar, em nossa conversa, as virtudes de estar próximo da terra e de seus frutos, que hoje moldam sua cozinha.

Mas nem sempre foi assim. Aos 32 anos (sempre diz que tem 33, mas só os completará em dezembro), René começou sua carreira na cozinha francesa (no restaurante Pierre André, em Copenhague) e a praticou por anos. As coisas começaram a mudar em 1998, quando, depois de passar pelo Le Jardin des Sens, estrelado restaurante francês de Montpellier, foi ao El Bulli, do chef Ferran Adrià, por quatro anos eleito o melhor do mundo pelo mesmo júri que agora premiou René. (Adrià ficou em segundo desta vez, além de levar o título de cozinheiro da década.)

"Fui para lá sem saber o que esperar. E saí marcado principalmente por um grande senso de liberdade. Antes, meu mundo era a cozinha francesa. Aí vi um cara fazendo qualquer coisa que quisesse, não importava o que o establishment gastronômico pensasse. Aí me coloquei a questão, o que fazer agora, qual o futuro?" Foi quando ele partiu para os Estados Unidos, para trabalhar com Thomas Keller (chef do French Laundry, na Califórnia, e do Per Se, de Nova York). René estava curioso para ver como um grande chef redefiniria uma cozinha como a americana, sem tradição de alta gastronomia. Ficou lá por três anos.

O Noma nasceria em 2004, fruto de sua associação com o empresário e gourmet Claus Meyer, um dos divulgadores do que ele chamou de "nova cozinha nórdica" –uma corrente que conta hoje com vários chefs escandinavos, em cidades como Estocolmo e Oslo, além de Copenhague. Eles ocuparam um espaço no térreo da North Atlantic House, um enorme e antigo armazém de alimentos de 250 anos transformado hoje em centro cultural.

Para esse novo projeto, desde o início René e seu sócio pensaram em fazer cozinha nórdica –evidentemente, com a visão moderna que ganhou em suas andanças. "Com minha cozinha, eu quero transmitir um sentido de tempo presente. Quero que as pessoas, ao comerem aqui, sintam que não estão em São Paulo, Paris ou Sofia, estão em Copenhague –e nesta época do ano", diz ele.

Por isso os produtos locais. Por isso os produtos sazonais. Carnes de animais de caça, moluscos de corredeiras que deságuam no mar, legumes de curta incidência no clima inclemente da Dinamarca. Os molhos não são reduzidos com vinho, pois naquele canto da Terra se produz cerveja, não vinho. Os cremes e manteiga encontram sua redenção, pois a Dinamarca não produz azeite de oliva, mas sim laticínios. A cozinha do Mediterrâneo é deliciosa, mas é do Mediterrâneo, não dos mares do Norte.

A primeira coisa que fascina no Noma é isso –encontrar tantos sabores novos, até em ingredientes, como camarões ou beterraba, que não são exclusivos de lá, mas que certamente têm sabores particulares, próprios daquele "terroir". Depois, comer no Noma é também assistir ao espetáculo de um artista que usa técnica e precisão, que ousa (como os chefs de vanguarda com quem conviveu), mas sempre a serviço de realçar a excelência dos produtos (os pratos têm aparência simples, com poucos elementos).

Esse parece um caminho cada vez mais valorizado na gastronomia contemporânea. Quando estive em novembro último no El Bulli (que será fechado depois da temporada do ano que vem, para virar um centro de pesquisa), deleitei-me com produtos escandalosamente locais (obviamente reinventados por Ferran Adrià): lebres e tordos da temporada de caça, cogumelos da estação, mariscos de águas frias, produtos que abundam na Catalunha (onde fica o restaurante) naquela época do ano.

Talvez, não por acaso, o mesmo júri do prêmio S.Pellegrino, composto por 806 especialistas espalhados por todo o mundo, tenha também promovido o D.O.M., restaurante paulistano do chef Alex Atala, da 24ª para a 18ª posição: Atala vem se tornando conhecido exatamente por sua militância na recuperação ou redescoberta de produtos brasileiros (especialmente da Amazônia) no contexto de uma cozinha de vanguarda.

O prêmio, organizado por iniciativa da revista britânica "Restaurant", não é evidentemente a palavra definitiva sobre o tema –como o Oscar não o é sobre o cinema, nem o guia "Michelin" sobre os restaurantes. Mas, por sua amplitude e pela representatividade do júri (composto apenas de especialistas –chefs de cozinha, donos de restaurantes e jornalistas de gastronomia), é certamente um bom indicador de tendências. E, depois de um longo jantar no Noma e alguns encontros com o chef pelo mundo, posso dizer que o jovem René Redzepi cabe bem nesse papel de personificar um futuro da gastronomia que já está em andamento.

Josimar Melo é membro do Comitê organizador do prêmio S.Pellegrino 50 Melhores Restaurantes do Mundo –mas jura que ao jantar no Noma quatro semanas atrás, ainda não sabia que o restaurante se sagraria o número um do mundo apenas dois dias depois.

Quero que as pessoas, ao comerem aqui, sintam que não estão em São Paulo, Paris ou Sofia, estão em Copenhague

"Aqui na Europa, quem queria alta gastronomia olhava para França, Itália, Espanha"

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Ele disse, ela disse
Companhia do crítico Josimar Melo em seu jantar no Noma, a chef brasileira radicada em Tóquio relata sua versão da refeição

POR MARI HIRATA
Especial para Serafina

Ir a um restaurante e tudo sair perfeito é um evento quase tão raro quanto o Big Bang. Há tantos fatores emaranhados que o encaixe necessário entre eles beira o inexequível. Local agradável, luz perfeita, o espaço, a cadeira, a altura da mesa, o serviço e o principal: cada prato, sua quantidade, apresentação e sabor, tudo tem de estar em absoluto equilíbrio. Mas a vida esta aí para provar que o impossível acontece.

Começou em um fim de tarde, com um céu quase irreal. Apesar da sobriedade da fachada, ao entrar no restaurante, me senti em casa: a cozinha fica logo na entrada e, ao chegar, todos os cozinheiros estão sorrindo para você, desejando boas-vindas.

Depois de sermos instalados em uma mesa, a primeira coisa a ser servida foi um copo d’água. Beber aquele líquido gelado foi um choque, nunca havia experimentado uma água tão gostosa –na realidade, era a seiva fresca da bétula.

Teve início então uma profusão de pratos. Tudo parecia tão natural, mas meus olhos de cozinheira sabiam identificar dias de preparo e dezenas de mãos envolvidas apenas na montagem de cada um.

Você não sente em nenhum momento cozimento demasiado, especiarias exageradas ou ingredientes estranhos entre si. Tudo vem do bosque e ainda está "vivo" –as ervas não têm nenhum vestígio de sabor plástico nem de gás de conservação.

Há tempos eu não fazia uma refeição em um restaurante estrelado sem foie gras, azeite (trufado ou não) e ingredientes da moda como o yuzu, o limão japonês, ou o vinagre balsâmico.

O Noma só serve ingredientes locais. Logo, não vi nada do que estou acostumada, como tomate, alho, limão... E, no entanto, nada pareceu estranho, nem aos olhos nem ao paladar. Será que tive antepassados vikings?

Mari Hirata é chef de cozinha em Tóquio

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Um por todos e todos por um

O frisson da entrega do prêmio aos 50 melhores restaurantes do mundo tem um quê de Oscar. Mas, representando o restaurante vencedor de 2010, na cerimônia de 26 de abril em Londres, não havia ninguém de "black tie". O que havia eram sete pessoas, das quais cinco portando, por cima das camisas, camisetas estampadas com um rosto negro riscado por enorme sorriso de dentes brancos.

"Nós deveríamos ser oito pessoas aqui", começou a discursar René Redzepi, chef e sócio do vencedor Noma, antes mesmo de qualquer agradecimento ou menção ao prêmio. "Somos uma equipe. E um dos caras é extremamente importante para nós. É um lavador de pratos chamado Ali. Ele é de Gâmbia. Ali não recebeu o visto de entrada [na Inglaterra]. Uma pena. Mas ele está aqui."

O agradecimento/protesto (saudado com rumorosos aplausos) combina com o espírito irreverente e jovial da equipe do Noma. Esse é, por exemplo um restaurante onde os pratos são levados à mesa pelos próprios cozinheiros. Onde há um espírito de fraternidade no ar (coisa difícil no ambiente normalmente tenso, de precisão e detalhes, da alta cozinha).

"Ali é a pessoa mais velha do restaurante, tem 54 anos. É uma figura paterna, sempre sorridente e encorajadora, parte indispensável da equipe", explicaria depois o chef, parte da garotada, como ele, na faixa dos 30 anos.

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