São Paulo, domingo, 23 de maio de 2010

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PASSAGEM

O jardim da realeza

por ROBERTO KAZ, DE TETBURY

Serafina visia o campo de flores e legumes criado pelo príncipe charles

Em abril de 2008, quando colocou os pés no gramado de Highgrove, residência oficial do príncipe de Gales, a jardineira Debs Goodenough soube que acabara de atingir o apogeu de sua carreira. Para Pelé, o sonho maior era ganhar uma Copa. Para Barack Obama, presidir os Estados Unidos. Para Debs Goodenough –e qualquer paisagista da Grã Bretanha– nada se equivaleria, em prestígio, a ser jardineiro-chefe do príncipe Charles –cargo esse que ela acabava de assumir.

A jardinagem está, para a Inglaterra, como os desfiles de escola de samba estão para o Brasil. O "Guardian" e o "Times", dois dos principais jornais do país, orgulham-se de ter colunistas especializados em crisântemos, hortênsias e bromélias. A BBC, o maior conglomerado televisivo do Reino Unido, transmite semanalmente os programas "Gardeners’ World" (o mundo dos jardineiros) e "The Edible Garden" (o jardim comestível). Todo mês de maio, os aficionados em flor expõem suas plantas mais nobres no Chelsea Flower Show, um evento que reúne 150 mil pessoas em Londres. É a Sapucaí da jardinagem.

Fiel às tradições, o príncipe de Gales participou da competição de flores em 2001, ganhando uma medalha de prata por seu jardim multicolorido, de influência islâmica, cultivado em Highgrove. O título era tudo menos protocolar. Embora Charles seja o próximo na linha sucessória ao trono da Inglaterra, raras coisas lhe dão mais prazer do que a placidez do plantio. O príncipe é patrono da Soil Association, organização que fiscaliza o cultivo de produtos orgânicos no país. Em parceria com outros autores, publicou três livros sobre jardinagem.

Enquanto os imperadores Julio César e Napoleão Bonaparte se dedicaram a conquistar a Europa, Charles decidiu que um dos maiores legados de seu principado seria um pequeno jardim orgânico, cultivado sem pesticidas e agrotóxicos. No livro "The Garden at Highgrove" (o jardim em Highgrove), ele explica: "Em Highgrove, tentei ao máximo criar uma espécie de arquivo de espécies raras de frutas, vegetais, árvores e plantas –um depósito que, espero, ajudará a manter a biodiversidade da qual a nossa sobrevivência depende". Em outro livro, "The Elements of Organic Gardening" (os elementos da jardinagem orgânica), ele justifica o porquê de tanto zelo: "Eu poderia ter encontrado uma casa e um jardim em condições perfeitas –fruto de sonhos e ideias alheias– mas preferi me debruçar sobre uma tela em branco, para ver se conseguiria preenchê-la com os sonhos do meu próprio jardim".

Por isso, quando colocou os pés naquele gramado, a jardineira Debs Goodenough soube que acabara de atingir o apogeu de sua carreira.

A JARDINEIRA

Batizada Debbie em homenagem à atriz Debbie Reynolds, Debs Goodenough é canadense. Filha de imigrantes do Leste Europeu, passou a infância em uma fazenda em Alberta, estado do Canadá próximo ao Alasca. Aprendeu jardinagem com a mãe, que além de cuidar da casa, dedicava-se ao plantio de flores nas horas vagas.

Decidida a estudar horticultura, Debs estagiou no Jardim Botânico de Denver, no interior dos Estados Unidos. Dali, rumou a Londres, para trabalhar no Jardim Botânico Real de Kew, o maior da Inglaterra, com um orçamento anual de US$ 80 milhões. O ano era 1983. Durante o estágio no setor de plantas de clima temperado, ela conheceu Simon Goodenough, supervisor do parque. Casaram-se e decidiram continuar na Inglaterra.

Em 1996, Debs foi convidada a cuidar dos jardins de Osborne House, o palácio de veraneio que pertencera à rainha Vitória no século 19. Dentre as missões estava aquela que, mais tarde, lhe valeria a indicação ao príncipe Charles: abolir o uso de fertilizantes no local. "Foram 12 anos", ela lembra. "Não deixei o jardim inteiramente orgânico, mas fiz o máximo possível."

No início de 2008, o convite chegou. David Howard, então jardineiro-chefe de Highgrove, anunciou sua aposentadoria para se dedicar ao setor de jardins privados. Com a abertura do cargo, o nome de Debs apareceu em uma lista, junto com outros candidatos. Durante um mês, ela foi entrevistada por assessores da realeza e, na última etapa, pelo próprio príncipe. "Uma decisão dessa importância tinha que ser tomada por ele", disse. Hoje, com a diplomacia exigida pelo posto, ela evita a exposição: "Vamos falar do jardim? O jardim é mais importante do que eu".

O JARDIM

Em 1980, um ano antes de se casar com Diana (1961-1997), o príncipe Charles comprou a residência de Highgrove, nos arredores de Tetbury, pequena cidade a 120 km de Londres. De acordo com seu livro "The Garden at Highgrove", o entorno de 37 hectares (cerca de 30 campos de futebol) não passava de "um jardim negligenciado, escondido atrás de um matagal, um pasto e alguns carvalhos". Era o cenário perfeito para que Charles desse voz a sua ambição orgânica.

Em "The Elements of Organic Garden", o príncipe relata a dificuldade que foi "convencer os outros de que não havia perdido a cabeça por querer fazer um jardim autossustentável". Ele conta: "Hoje, com a popularização do consumo de produtos orgânicos, pode ser difícil imaginar, mas, há 25 anos, era quase impossível achar alguém que estivesse disposto a abrir mão de pesticidas para cuidar de uma plantação ou um jardim".

No começo, como nem sequer tinha sementes, o príncipe foi presenteado com macieiras, pereiras e cerejeiras doadas pela Worshipful Company of Fruiteres, uma organização de incentivo à produção frutífera na Inglaterra. Passados 30 anos, ele se orgulha de não precisar mais recorrer a plantações externas. O jardim tem cultivo próprio de alho-poró, couve-de-bruxelas, batata-doce, beterraba, cenoura, framboesa, amora e quatro tipos de morango, entre várias frutas e legumes. A maior parte é produzida para consumo da Família Real. O excedente é vendido na loja do jardim, sob o selo "Duchy Original" (originais do ducado).

Quando Charles e sua atual mulher Camilla não estão em Highgrove, a propriedade é aberta a eventuais visitas da imprensa. Em maio, Serafina teve acesso exclusivo aos jardins, em uma caminhada de duas horas guiada por Debs Goodenough.

Aos 49 anos, Debs é uma mulher esbelta, de fala mansa e mãos robustas. Toda manhã caminha 15 minutos para percorrer a distância entre sua casa e Highgrove, onde comanda uma equipe de 12 jardineiros. "Acabamos de plantar 10 mil árvores de maçã", contou, orgulhosa.

Ela inicia o passeio por um corredor de árvores podadas simetricamente, que leva à porta de entrada da casa do príncipe. Explica que Highgrove está em constante mutação: "Sua Alteza Real gosta de editar o jardim. Coloca mais árvores aqui, mais cores acolá". Para provar, cita um exemplo, apontando para uma árvore: "Essa magnólia foi um presente dos príncipes William e Harry [filhos de Charles com Diana]. O príncipe se encarregou ele mesmo de plantá-la".

As divisões do jardim são temáticas, normalmente definidas pelo desenho ou pela cor das plantas. De acordo com Debs, violeta, azul e roxo são os tons mais usados pelo príncipe, que prefere participar do plantio a simplesmente ordenar que alguém o faça. Devido à variedade de espécies, grande parte das árvores é identificada por etiquetas.

À diferença dos jardins franceses, conhecidos pelo rigor formal, a criação botânica de Charles bebe em um caldeirão de influências. Há plantas da Ásia e da América do Sul; há esculturas em estilo grego e paredes com inscrições em hieróglifos; há um templo em homenagem à Rainha Mãe e uma estátua em homenagem a seu falecido cão; há vasos, bancos, portões e colunas ofertados por pessoas tão díspares quanto Elton John e o Sultão de Omã. Em "The Garden at Highgrove", o príncipe explica: "Um jardim é uma obra em constante progresso. Qualquer visita que faço a um canto do mundo acaba por me servir de inspiração".

O passeio termina após duas horas. Pelo resto do dia, nenhuma outra visita adentrará o jardim, que aguarda a chegada iminente do príncipe. Na despedida, Debs prefere tomar um caminho mais longo, para evitar pisar no gramado recém-cuidado. Ela justifica: "Vamos deixar para a Sua Alteza Real. Ele vai ficar feliz de ser o primeiro a passar por lá."

Visitas ao jardim poem ser agendadas de março a outubro, do Brasil, pelo telefone 44 20 7766 7310. O custo é de 15 libras (R$ 40) por pessoas e a espera, de dois meses

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