São Paulo, domingo, 25 de abril de 2010 |
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CAPA Rita Lee por trás do espelhopor MARCUS PRETO A Rita como ela é Serafina passa um fim de semana com a artista e assiste à mutação da mulher de 62 anos -noveleira, carente, insegura- na rainha do rock nacional"Eu devia ter dado outro nome pra ela. Ter separado bem onde começa uma e termina a outra, como fez a Fernanda Montenegro [o nome de batismo da atriz é Arlette Pinheiro]. Não dá pra dizer 'eu sou uma e a Rita Lee é outra' -estamos juntas o tempo inteiro. Eu tenho controle, não é mediunidade. Mas eu não sou 'ela'. Sou boazinha, obedeço, tenho medo de ser rejeitada. E a Rita Lee é o oposto disso. Tem domínio absoluto da situação -o que me mata de inveja. Pra ser sincera, acho que gosto mais dela do que de mim. Belo Horizonte, 17 de abril de 2010 12h17 Olhou o relógio na cabeceira: já passava um pouco do meio-dia. Fez as contas e concluiu que ainda carregaria essa sensação desconfortável por pelo menos mais dez horas, até finalmente pisar no palco do estádio mineiro onde faria a estreia de seu show. Já sabe bem como esse processo funciona: sofre sozinha até entrar em cena, o último momento em que é ela mesma. Atrás das cortinas, como uma Cinderela, transforma-se em alguém que sabe exatamente o que fazer dali em diante. Alguém que, ao contrário dela, não tem medo de barata. Não tem muita autocrítica nem sente o fisgar das duas hérnias de disco. O palco pode até desabar. "Alguém dentro de mim é mais eu do que eu mesma", escreveu em uma canção, pensando nisso. Alguém que o Brasil conhece melhor do que ela. Rita Lee, aquela do palco, gosta de mentir a idade -para mais. Anuncia sempre ter 65 anos, contra os 62 comprovados no documento de identidade da Rita original. Odeia cigarro. Diz que ele lhe rouba o fôlego, que limita o desempenho cênico. Já a outra Rita não se importa com isso. De todos os vícios que já constaram de sua longa lista, o tabaco é o único do qual não pretende se livrar jamais. De todo modo, não fuma no quarto -nem em casa, nem no quarto do hotel. Calçou os chinelos e levou o maço para o banheiro, onde acendeu o primeiro do dia. 13h13 Volta para a cama. Os lençóis, trouxe de casa. Também as fronhas e dois dos quatro travesseiros que usa -o par que apoia a cabeça é seu. Os controles remotos estão sempre por perto, mas a televisão -como o ar-condicionado- permanece desligada. Ela prefere retomar o livro que estava lendo em casa, um romance policial do americano Harlan Coben. As histórias dele são boas, ela acha. Mas todas sofrem do mesmo problema: o desfecho previsível deixa a desejar. Seu escritor preferido nessa seara é, de longe, Rex Stout, que morreu em 1975. Em seus livros, não há como adivinhar o assassino antes que o autor o revele, e é disso que ela gosta. Mas, pena, já leu a obra completa de Stout. Não ouve música. "Meu, o [maestro] Rogério Duprat é que estava certo. Um dia, ele me disse: 'Rita, descobri que não gosto de música, mas agora é tarde demais'. Fiquei igualzinha. Não acompanho nada dessas novidades -nem aqui dentro, muito menos lá fora. Os gringos, quando investem num lançamento que, acreditam, irá vender, cercam-se dos melhores produtores, arranjadores, instrumentistas, figurinistas, bailarinos etc. Não dá para sair um trabalho ruim. A Lady FormiGaga -reparou como ela tem cara de formiga?- é fabricada, sim, mas desempenha bem o papel. A piada é se dizer uma mulher contestadora. Alguém tem que lembrar a ela que Sinead O'Connor também se dizia uma mulher guerreira. Afff... Passados cinco capítulos do livro, Roberto chega para o almoço: comida vegetariana, como é regra. O carro passaria às 17h para levá-los à passagem de som. Comeram e cada um voltou para o seu quarto. Ela acendeu outro cigarro. Ao mesmo tempo, vestiu uma touca plástica (os cabelos tinham sido lavados na noite anterior), arrancou a camiseta e a calcinha que usa para dormir e entrou no banho. A água quente ajudou a relaxar um pouco, mas não deu conta de liquidar com a ansiedade. As toalhas, vale frisar, também vieram de casa. 17h33 A Gungun a quem ele se dirige é outra das personalidades de Rita, "uma órfã de três anos e meio, carente e chatinha", segundo definição da própria. Há outras, que surgem em diferentes ocasiões, cada uma com características bem delineadas. A roqueira vampira Lita Ree, a solteirona Regina Célia ("que, dizem, teve um romance com Ulisses Guimarães"), o corintiano mulherengo Aníbal ("ele morre de tesão na Gal Costa"). Além, é claro, da própria Rita Lee, a principal de todas elas. "Como você pode ser uma pessoa só? Ninguém é. Mas as pessoas não se dão conta de que estão usando um personagem pra cada situação -um com o marido, um com a sogra, um com o chefe... E uma persona equilibra a outra, elas se cuidam e se provocam o tempo todo. Quer um exemplo? Rompi os tendões do ombro, recentemente -essas coisas de corpo usado, a parte chata da velhice. Estava fazendo aquele papel de vítima, cheia de autopiedade, 'não quero mais nada, é hora de aposentar'. E, como não podia tocar [o violão], fiquei morrendo de medo de fazer show daquele jeito. Mas, quando a Rita Lee se viu no palco com aquela tipoia, tirou vantagem total da situação. Usou o ombro quebrado como piada, charme, riu da própria cara. E depois pra eu voltar pra casa fazendo a coitadinha de novo? Ninguém acreditava mais no meu drama, né?" 18h01 "Eu sei a boca que ela gosta, a roupa... É um divãzinho de Freud que ninguém faz ideia. O que às vezes me assusta é a importância que as pessoas dão pra Rita Lee [a do palco]. Vêm me dizer: 'Ah, você mudou a minha vida, escutei 'Ovelha Negra' e resolvi sair da casa do meu pai, por sua causa eu casei, separei...' Fico pensando: será que conto a verdade? Que não sou quem elas pensam que sou, que não tenho a segurança da Rita Lee, que mal sei o que fazer da minha vida e não sirvo pra guiar a de ninguém? Mas acabo nunca falo nada disso. 21h45 22h19 Entra em cena aos pulos. "Um belo dia resolvi mudar/ Fazer de tudo o que eu queria fazer/ Me libertei daquela vida vulgar/ Que eu levava estando junto a você..." O povo delira com a entrada de uma, enquanto a outra, aliviada, volta sozinha ao camarim e retoma o capítulo da novela. Texto Anterior: FINO: Mauro Refosco, o forrozeiro que caiu no gosto do esquisitão Thom Yorke |
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