São Paulo, domingo, 26 de setembro de 2010

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IN LOCO

Uma pedra no meio do caminho

por ROBERTO KAZ

O arquipélago de São Pedro e São Paulo, entre o Brasil e a África, é menor que um estádio de futebol  –mas responde por 6% do território nacional

O livro "O Arquipélago de São Pedro e São Paulo", publicado pela Marinha do Brasil, abre com um prólogo algo assustador, da arquiteta Cristina Engel: "Pescadores, cientistas e visitantes que já estiveram no arquipélago de São Pedro e São Paulo afirmam ser esse o local brasileiro mais inóspito para a vida humana. A ausência de água doce e vegetação, a violência dos mares no entorno, a grande quantidade de tubarões e caranguejos, os abalos sísmicos frequentes, as aves e seus piolhos e a distância da costa são elementos que desestimulavam qualquer tentativa de construção no local".
O relato é verídico. Em agosto, Serafina embarcou, em um navio da Marinha, rumo ao naco de pedra mais longínquo –e insólito– do território nacional. Localizado a 972 km de Natal (RN), a um terço do caminho entre o Brasil e a África, o arquipélago encerra em si um estranho paradoxo: com 17.000 m2 –menor que o estádio do Pacaembu–, ele responde por 6% da área total do país.
Descoberto ao acaso em 1511 pelas naus portuguesas São Pedro e São Paulo –das quais herdou o nome–, o arquipélago é um conjunto de dez ilhotas sem praia, terra, grama, árvore, sombra e água fresca. Belmonte, a única ilha plana –e, portanto, habitável–, tem o comprimento de um campo de futebol. Seu ponto mais alto, com 18 m, é o cume de uma cadeia montanhosa que começa 4 km abaixo do nível do mar. O arquipélago se tornou notório, em 2009, por ser o ponto mais próximo do local onde caiu o avião da Air France, que partira do Rio com destino a Paris (voo 447).
Em 1930, o governo brasileiro fez a primeira tentativa de ocupar as ilhas, erguendo um farol de navegação que aguentaria, intacto, apenas três anos (por estar sobre o encontro de duas placas tectônicas, São Pedro e São Paulo protagonizam constantes terremotos). Seguiu-se um período de desinteresse nacional, encerrado no fim dos anos 1990, com a construção de uma estação científica –uma casa para quatro pessoas, ao custo anual de R$ 2 milhões.
A princípio cara e descabida, a nova ocupação estava calcada em uma justificativa estratégica. Em 1994, entrara em vigor a Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos do Mar, que passou a reger a divisão econômica dos oceanos. O documento definia que uma ilha deserta daria ao país que a abrigava 20 km de área comercial no seu entorno. Se essa ilha fosse acrescida de um único cidadão local, o raio de exploração subiria para 320 km –resultando em uma área marítima quase duas vezes maior que o território do Estado de São Paulo.
A Marinha iniciou, então, uma série de estudos que checassem a viabilidade de habitar o local. Uma junta de oficiais, engenheiros e cientistas concluiu que o arquipélago não serviria aos propósitos de uma base naval, mas, por intocado que era, cairia como uma luva no campo de pesquisas naturais. Em 1998, para desgosto dos pássaros atobás, viuvinhas e dos caranguejos nativos, inaugurou-se a primeira estação científica. (Por ser habitada, a região tem dois CEPs: 59020-902 para a ilha São Pedro e 59020-903 para a ilha São Paulo. Serafina tentou enviar duas cartas à região, ambas devolvidas pelos Correios sob a alegação de "endereço insuficiente para entrega, falta a rua e o número".)
Nos últimos 12 anos, mais de 300 expedições com biólogos, geólogos e oceanólogos passaram pelo arquipélago. Atualmente, estão em curso 17 pesquisas ligadas à USP, à UFRJ e a outras dez universidades públicas brasileiras. Pelo acordo firmado com o Ministério de Ciências e Tecnologia, a Marinha arca com os custos de manutenção da casa e transporte (geralmente um navio pesqueiro fretado, que acompanha os pesquisadores durante toda a viagem). Em contrapartida, mantém a região habitada sem precisar deslocar seu pessoal. O tenente Marco Antonio Carvalho, coordenador do Programa arquipélago, resume: "Aquilo é um tremendo laboratório a céu aberto. E se estiver vazio, ficamos sujeitos à contestação internacional".
Em 2008, após a primeira estação científica ser avariada por uma tempestade marítima, a Marinha construiu uma segunda casa –com sala, quarto, cozinha, banheiro, laboratório, energia solar, água dessalinizada e telefone. A data foi lembrada por uma equipe de pesquisadores no livro de bordo da estação: "Temos a satisfação de iniciar a nova fase inaugurando a casa, agora com laboratório e internet".
O livro de anotações –um caderno de folha A4, desmilinguido pela maresia– é a Carta Magna do arquipélago, escrito a centenas de mãos por todos os pesquisadores que lá estiveram. Nele estão relatados os problemas vividos pela expedição 265 ("O gerador ensaiou pifar; o dessalinizador parou de produzir água doce"), as recomendações dadas pela expedição 287 ("Adotamos três filhotes de atobá. Quando estão com fome, chegam na varanda e ficam pedindo comida") e os protestos proferidos pela expedição 291 ("Nem preciso de muito esforço para perceber que três atobás, feliz ou infelizmente, foram condicionados a receber comida na porta de casa").
O caderno mostra também o esforço de três alunos da USP para instalar uma antena na ponta mais a leste do arquipélago (e o deleite de dois alunos da UFRJ, ao verem o projeto ruir: "Na virada do ano, o mar virou. A antena dos malucos da USP caiu no mar e melhorou o visual, pois podemos vislumbrar o nascer do sol").
No começo de 2009, o arquipélago recebeu a visita de um catamarã que partira da Letônia rumo ao Brasil. Os pesquisadores escreveram: "Eles nos trouxeram um pão ‘delicioso’, peixe e um guia turístico que conta um pouco da história da Letônia. Nos ensinaram alguns costumes, como ‘РHЖCKHE WNPOTЪI’, mas a parte mais legal foi o ИCKYCCTBEHHЪLE KOHCEPBAHTЪI И CTAБИПИЗ-TOPЪI!!!" (como o texto não apresentava tradução, Serafina optou por manter o mistério).
Não era a primeira visita internacional. Em abril de 2006, o italiano Alex Bellini, conhecido em seu país como "il navigatore solitario" (o navegador solitário) chegou sozinho, remando, à estação científica. Bellini havia deixado Gênova, na Itália, nove meses antes, a bordo do "Rosa de Atacama II", um barco com cama, luz e rádio, mas sem um detalhe comum aos transatlânticos: motor. Como calculara mal a viagem até Fortaleza, ele se viu sem comida no meio do oceano.
Da Itália, uma equipe de apoio o informou a respeito do arquipélago: "Era pequeno demais para constar do meu mapa", lembrou, em entrevista por e-mail. Animado pela notícia, Bellini remou cinco dias com fome até ancorar no conjunto de ilhas. Não sabia se haveria alguém lá: "O que importava era a existência de terra firme. Na pior das hipóteses, eu encontraria um pássaro ou peixe para comer". Disse que a visão da estação científica foi "o fim do meu pesadelo".
Era um sábado, 1º de abril. O geólogo Victor Marcolan ouviu, por rádio, que o navio pesqueiro que o acompanhava havia encontrado um náufrago. "Como ele só falava italiano e inglês, ninguém se entendia", lembrou. Enquanto sua parceira de pesquisa, Lindaray Costa, perguntava à Marinha que procedimento adotar (pedir passaporte, registro do barco e local de destino), Marcolan convidou o visitante a conhecer a estação. "Ele comeu um pote inteiro de margarina em cinco minutos", contou. Os dois pesquisadores ficaram se entreolhando, estarrecidos, diante daquele homem semisselvagem (mas que rodava o mundo patrocinado por um banco italiano), que não fazia barba, cabelo e bigode havia quase um ano. "Imagine a cena", disse Marcolan, "você está no meio do oceano e aparece um cara remando. Robinson Crusoé perdia fácil para ele."

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