São Paulo, domingo, 26 de outubro de 2008

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FINA

Memélia para todos

por TOM CARDOSO, do RIO

Maria Amélia Buarque de Holanda, 98, a mulher que não acredita em tristeza, depressão e preguiça

O historiador Sérgio Buarque de Holanda se notabilizou por ter apontado na personalidade do homem brasileiro a controvertida figura do homem cordial. Mas, de cordialidade, quem entende mesmo é Maria Amélia Buarque de Holanda, sua viúva. Que o diga o presidente Lula, que, há poucos meses, aproveitou a passagem pelo Rio e bebeu da cachaça Paraty da anfitriã -ambos vinham de um rigoroso período de abstinência. Ela, proibida de beber pelo médico e pela família (um quartel-general de sete filhos, 14 netos e 11 bisnetos); ele, pela liturgia do cargo. "Falamos sobre tudo, menos de política. Aliás, aqui em casa, ninguém fala a sério sobre nada, eu proíbo", avisa Maria Amélia, 98 anos de cordialidade.

Uma fratura no ombro, após uma queda, e um marcapasso, impediram-na de bater perna por Copabacana -ela não sai de casa desde dezembro do ano passado, quando brindou os cem anos do amigo Oscar Niemeyer. Um retiro desses faria da mais hiperativa das velhinhas uma deprimida em potencial. Em Maria Amélia, porém, a alegria é senhora. "Mamãe não acredita em tristeza, depressão e preguiça", conta a filha Miúcha, 70. "Eu nunca me queixei da velhice. Gente chata se queixa muito, né?", diz Maria Amélia.

O apartamento na avenida Atlântica, de frente ao mar, onde passou a morar depois da morte de Sérgio, em 1982, é a extensão carioca do que foi o casarão da família Buarque de Holanda, no bairro do Pacaembu, em São Paulo. Lá, Maria Amélia cuidou dos sete filhos, do marido e dos amigos do marido. Em São Paulo, intelectual não vai à praia, come. E todos, Antonio Candido, Caio Prado Júnior, Fernando Henrique Cardoso se deliciaram com o cuscuz paulista ("o autêntico, com sardinha e camarão", avisa Maria Amélia) e com o estrogonofe preparados pela matriarca.

O trabalho de Maria Amélia na cozinha aumentou com o nascimento dos netos e bisnetos. Já não tem a mesma disposição para preparar uma feijoada (na cozinha, ela costuma dispensar a ajuda da empregada), mas tem caprichado nos doces. Sua especialidade é o kiss me, feito com gema de ovo e açúcar, que ela manda todos os anos no aniversário de seu médico, Clementino Fraga Filho. Mimo que não interrompeu mesmo quando ele a proibiu de beber sua cachacinha.

SAMBA NO PÉ
O apartamento em Copacabana vive cheio. Na primeira quinzena do mês de agosto já haviam passado por lá um historiador napolitano, de olho num exemplar de "Raízes do Brasil" escrito em italiano, e alguns sambistas, a maioria amigos de seus filhos. Com os dois pés na música popular, Maria Amélia foi quem apresentou o samba aos filhos. Gostava de cantar "Amor de Malandro", de Ismael Silva, (aquele que diz: "Se ele te bate, é porque gosta de ti"). Piano não toca mais -doou o seu, que ficava em um canto da sala, para o filho Chico Buarque, mas não perdeu o samba no pé. Adora ouvir a amiga Teresa Cristina, sambista revelação da Lapa, cantar, a capela, sambas de Wilson Batista e Candeia -em troca da canja, dá aulas "informais", no sofá de casa, sobre Mario de Andrade para Cristina, estudante de letras.

Quando os amigos e parentes se vão, Maria Amélia, que mora apenas com uma acompanhante, torna-se uma ótima companheira de si mesma. Está lendo "Tempos Interessantes", a autobiografia do escritor Eric Hobsbawn e revendo, no DVD, a trilogia de "O Poderoso Chefão", de Francis Ford Coppola. Continua acompanhado de perto o Fluminense, time de coração da família. "Dos meus filhos, só o Álvaro é revoltado: torce para o Botafogo", brinca. A filha Maria do Carmo, a Piií, que acompanha a conversa, interrompe Maria Amélia, lembrando que seu time é o América, mas ouve de bate-pronto: "Ah, mas o América não conta, não incomoda ninguém. Está perdoada".

Memélia, como é chamada por todos, raramente perde o bom humor, mesmo quando o filho Chico Buarque foi perseguido por um paparazzo e fotografado no mar do Leblon aos beijos com uma jovem mulher casada, provocando a ira do marido traído e a alegria das revistas de celebridades. "Toda pessoa famosa passa por isso. É preciso conviver com a falta de privacidade, não tem muito jeito". Maria Amélia não gosta de falar de Chico. Tem a resposta pronta quando alguém insiste em saber um pouco mais sobre a intimidade do filho mais famoso: "Eu tenho sete filhos e não apenas um". O próprio Chico, conta Maria Amélia, detesta ser paparicado pela mãe. "Ele não gosta dessa história de a mamãe ficar contando as proezas do filhinho talentoso."

Uma das fundadoras do PT, junto com o marido Sérgio, Maria Amélia mantém firmes suas convicções políticas. Mesmo quando Lula enfrentou sua pior crise, com os escândalos do "mensalão", ela não perdeu a fé. "Continuo confiando 100% nele". Não é o que tem dito Chico Buarque, que já se manifestou publicamente decepcionado com alguns setores do PT. Se a crítica do compositor ao governo aumentar, o presidente pode parodiar o próprio compositor e sair cantarolando pelos corredores da Esplanada: "Você não gosta de mim, mas sua mãe, gosta..."

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