São Paulo, domingo, 27 de julho de 2008

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FINA

Elizabeth Roudinesco

por CARLA RODRIGUES

Madame divã

Avessa a falar de si, a psicanalista francesa Elisabeth Roudinesco baixa a guarda, LEMBRA a infância e comenta temas mundanos como rugas e plástica

"Ah, é um perfil", reagiu com desconforto Elisabeth Roudinesco ao saber que a conversa não versaria sobre psicanálise, história ou filosofia, seus temas favoritos. Para uma mulher que teve sua primeira experiência no divã aos nove anos, ela fala pouco de si.

Sem anel ou aliança que indique compromisso, discreta, elegantemente vestida de preto mesmo numa ensolarada manhã de sábado, à beira da piscina de uma pousada em Paraty (onde ficaram hospedados os escritores convidados da última Flip), ela parece indiferente ao tema vaidade. Até querer saber se era verdade que no Brasil existia um grande número de mulheres que recorria à cirurgia plástica. Sim, é verdade, o Brasil só está atrás dos EUA nesse quesito. Ela duvida um pouco, diz que observou nas ruas e não foi o que viu.

O assunto surge no momento em que começa a ser fotografada. Faz questão da maquiagem -na verdade, só uma leve camada de base que ela mesma tratou de passar, muito rapidamente- e, despida do discurso de historiadora ou de psicanalista, empolga-se pela discussão sobre rugas. "Uma amiga fez uma plástica muito boa. Na minha idade essa é uma questão que se coloca. Sempre penso nisso quando me vejo na televisão", conta, enquanto estica o próprio pescoço, em momento único de descontração.

Durante toda a conversa ela sempre busca um jeito de trocar os temas pessoais pelas idéias. Convidada a falar sobre a vida pessoal, é fria e distante. Quando diz o que pensa, é desenvolta e entusiasmada. E, quando é crítica, é ainda mais veemente. "Sempre estive na fronteira", diz, recorrendo a um argumento de Derrida, para quem só é possível ser fiel a um autor sendo infiel, distanciando-se do seu pensamento e não apenas o reproduzindo -uma espécie de ousadia no mundo acadêmico freqüentado por ela, pautado mais pela subserviência aos grandes mestres do que pela coragem das idéias próprias.

FILHA DE MÃE SEPARADA

Sua infância foi marcada por duas mulheres fortes e revolucionárias: a mãe, Jenny, e a tia materna, Louise. Corria o conservador ano de 1952 quando Jenny se divorciou do pai de Elisabeth, o médico Alexandre Roudinesco, para, em 1953, casar-se novamente com o professor de matemática Pierre Aubry. "Eu era a única menina na escola cuja mãe era uma mulher divorciada. Isso era difícil naquele tempo", lembra.

Elisabeth tinha nove anos quando sua mãe a levou para o divã da psicanalista Françoise Dolto, colega de Jenny e de Jacques Lacan. Era uma tentativa de ajudar a menina a enfrentar a difícil separação dos pais, tema que se tornou marca da obra da mãe, especialista em psicanálise infantil. "Não tenho muitas lembranças dessa primeira experiência com a psicanálise", diz Elisabeth. Mas a memória ainda é viva em relação às dificuldades que enfrentou na escola. "Minha mãe era separada, neurologista, psicanalista e chefe de um hospital. Nenhuma dessas coisas era comum."

Além da experiência no divã, desde muito cedo sua vida foi pontuada pela história da psicanálise na França, que ela depois veio a contar em livro. De um lado, seu pai era um crítico ferrenho da obra de Freud, a quem acusava de ser charlatão. De outro, sua mãe se formou psicanalista, e isso acabou com o casamento.

Historiadora, autora de 14 livros traduzidos em 30 idiomas, 12 deles lançados em português, esta francesa de 63 anos -completará 64 no dia 10 de setembro- guarda com orgulho sua independência. Mas, ainda que se esforce para preservar sua vida privada, seus livros a expõem.

Em "A Família em Desordem", por exemplo, discute, entre outros temas, o Pacto Civil de Solidariedade (PACS), em vigor na França desde 1999, que permite aos casais -hétero ou homossexuais- legalizar a união em contrato específico.

"É mais fácil se unir, mas também se separar", ela diz. Não que tenha sido esse seu objetivo ao se "pactuar" -tradução mais fiel do neologismo "pacsée"- com seu editor e companheiro Olivier Bétourné, com quem vive há 20 anos. Sete anos mais jovem do que ela, Olivier fundou, em 1990, a editora Albin Michel, responsável pela publicação das obras de Roudinesco.

Se a iniciativa de formalizar a união através do PACS foi de Olivier, as reflexões sobre suas conseqüências na sociedade francesa são dela. "É prático, porque os impostos são mais baratos, a previdência social é facilitada e garante direitos aos dois."

DINHEIRO E LOUCURA

Seu bisavô, Leopold Javal, foi um banqueiro rico cuja fortuna remonta ao século 19, quando os Javal se mudaram para Paris. Mas, apesar da importância do patrimônio da família, é a loucura, mais do que o dinheiro, que marca seu passado familiar. Seus três tios maternos morreram tragicamente, dois deles internados em manicômios, e explicariam o interesse de sua mãe pela psicanálise. Da família Javal Elisabeth herdou, além do interesse pela loucura, o confortável patrimônio que tem hoje.

Muito criticada pelos psicanalistas por reduzir sua visão da psicanálise aos aspectos históricos, ela mesma também adota um tom crítico ao pensamento francês ao qual sempre esteve filiada. "Hoje vivemos uma crise das idéias. Faz-se a história de tudo, o que indica que não estamos sendo capazes de produzir idéias novas", diz, mesmo sendo ela também uma historiadora. Contradição? De jeito nenhum. Apenas mais um dos sinais da "fidelidade infiel" de quem está acostumada a viver na fronteira.

"Uma amiga fez uma plástica muito boa. Na minha idade essa é uma questão que se coloca"

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